ANÁLISE

Interesse dos EUA na crise venezuelana não é motivado pelo petróleo

EUA aumentaram capacidade, produzem mais do que consomem e tendência deve continuar

São Paulo (SP) | |
Maduro participa da entrega de petróleo da PDVSA - AFP/Presidência da Venezuela

Este artigo pretende desmistificar as afirmações que apareceram em vários textos sobre a Venezuela, que sugerem que uma das explicações por trás da crise política no país seria um suposto interesse estratégico dos EUA nas reservas petrolíferas da nação sul-americana.

Durante décadas, prevaleceu nos debates sobre o futuro do petróleo a ideia de que a oferta não acompanharia a demanda. O famoso "pico do petróleo" referia-se a uma alta na oferta. Já na década de 1970, Ahmed Zaki Yamani, ministro do petróleo da Arábia Saudita, lembrou que a Idade da Pedra não acabou por falta de pedras.

A demanda por petróleo, de fato, não parou de crescer, passando de 56 milhões de barris por dia (mbpd) em 1973, ano do primeiro choque do petróleo, para atingir, no ano passado, pela primeira vez, a barreira de 100 mbpd. Nesse período, tivemos leve queda em apenas quatro anos, mas logo superadas: 1974, 1981, 2008 e 2020. O crescimento da demanda por petróleo foi, no entanto, menor que o crescimento da demanda por energia.

A população mundial dobrou, de cerca de 4 bilhões para mais de 8 bilhões nesse período, e houve crescimento econômico com forte aumento da demanda por energia em várias regiões do mundo, especialmente na China, desde o início deste século. Contudo, outras fontes cresceram mais, e com isso a participação do petróleo caiu de cerca de 50% do total da matriz energética mundial em 1973 para menos de um terço nos dias de hoje.

 

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Paradoxalmente, apesar desse constante crescimento da demanda nominal, as reservas comprovadas também não pararam de crescer: de 682,6 milhões de barris em 1980 para 1.732,4 milhões em 2020. Isso se explica pelo aumento da renda petrolífera e o consequente avanço da tecnologia para explorar poços antes desconhecidos ou tecnicamente inviáveis.

Hoje, superada a teoria do pico da oferta, estamos diante de um iminente pico da demanda e, mais adiante, de um pico na perspectiva da renda petrolífera. Esse processo foi impulsionado pela busca de diversificação pelos países consumidores e, em seguida, pela corrida para a descarbonização, diante dos impactos dos Gases de Efeito Estufa (GEE) pelo mundo afora.

É difícil afirmar com precisão o ano em que atingiremos o pico da demanda, mas todas as estimativas apontam que isso ocorrerá em menos de uma década. O mais recente relatório sobre o futuro do petróleo da Agência Internacional de Energia prevê um crescimento global até 2030, com uma demanda de 105,4 mbpd, frente a uma capacidade instalada de 113,8 mbpd. E esse crescimento é muito desigual, pois se refere aos países em desenvolvimento.

A demanda por petróleo dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) já está em declínio há algum tempo. Em 2007, representava 57% da demanda total, com 50,2 mbpd, caindo para 47%, com 47,5 mbpd, e uma expectativa de 42,7 mbpd em 2030. Pode haver variações, dependendo, por exemplo, do ritmo de eletrificação do transporte e/ou do crescimento econômico, mas a tendência está dada.

No meio de tudo isso, o mundo assistiu a um fenômeno totalmente inesperado: a tal "revolução energética" nos EUA, a partir da segunda metade da década de 2.000. O termo pode enganar quem estiver preocupado com os GEE, pois o país com maior poderio financeiro e tecnológico não colocou seus recursos à disposição para um processo acelerado de descarbonização, mas fez justamente o contrário.

O termo se refere ao boom de produção de petróleo e gás de xisto, respectivamente em inglês tight oil e shale gas. Em 2003, ano em que os EUA invadiram o Iraque em busca de petróleo, a demanda dos EUA era de 19,848 mbpd, contra uma produção interna de 7,368 mbpd. Vinte anos depois, em 2023, a demanda era de 18,984 mbpd, contra uma produção interna de 19,358 mbpd. Os EUA passaram de um país altamente dependente de importação de petróleo de países — nas palavras das próprias autoridades — "pouco amigáveis" para o maior produtor de petróleo e gás do mundo.

Os níveis de produção superaram o que era considerado o pico de produção de petróleo de 1972.

A isso se soma um crescimento, induzido em grande parte pela exploração não convencional, no Canadá, cuja produção foi de 3 mbpd para 5,65 mbpd no mesmo período. E grande parte dessa produção é destinada ao vizinho. Não obstante, a vontade de produzir mais ainda não parou e pouco depende de quem vencer as eleições em novembro. A expectativa é que os EUA adicionarão mais 4,6 mbpd à sua capacidade até 2030, equivalente a mais de 75% da expansão mundial. O mesmo vale para a produção de gás. Os EUA se tornaram inclusive grandes exportadores de Gás Natural Liquefeito (GNL). A partir de 2019, começaram a exportar para a Europa e, hoje, aproveitando da Guerra da Ucrânia, são responsáveis por quase metade das importações de GNL da União Europeia.

Esses dois fenômenos — o pico da demanda e a "revolução energética" nos EUA — alteraram completamente a geopolítica de petróleo, tendo a China como maior importador do mundo e também maior comprador de petróleo do Oriente Médio, onde há abundância de reservas exploráveis a um custo relativamente baixo. Foi essa realidade que incentivou Trump, na época em que estava na presidência, a postar vários tweets sugerindo que os EUA deveriam sair do Oriente Médio.

Isso significa que os EUA não têm mais interesses no petróleo mundo afora? Não. Em primeiro lugar, é necessário separar interesses estratégicos de interesses financeiros. Enquanto houver lugares onde seja possível apropriar a renda petrolífera, as grandes empresas estadunidenses estarão disputando e, em caso de problemas, contarão com o apoio de seu governo.

Outra questão são os interesses estratégicos, ligados, em última instância, à manutenção de sua posição hegemônica. Se é justo afirmar que os EUA, considerando também a produção canadense, são praticamente autossuficientes em petróleo, isso não significa que não há necessidade de importar. Isso porque há muitos tipos de petróleo.

A dependência de importação de petróleo da Rússia era mínima: em 2021, menos de 200 mil bpd. Mas era um tipo de petróleo pesado, que as refinarias estadunidenses precisam para fazer o mix necessário para sua produção de derivados. Por ironia da história, o país que, a curto prazo, poderia substituir esse petróleo russo era... a Venezuela. E não precisava derrubar o governo: Maduro aceitou imediatamente um acordo para que a Chevron tivesse autorização para produzir e exportar para os EUA. Com a assinatura do Acordo de Barbados, em outubro de 2023, os EUA emitiram a Licença Geral 44, que liberava todas as operações no setor de petróleo e gás na Venezuela. Essa liberalização geral foi cancelada em 18 de abril deste ano, mas isso não afetou as operações da Chevron, pois estas eram do interesse dos próprios EUA e ganharam um status à parte.

Com isso, a produção da Venezuela aumentou de 678 mil bpd em 2021 para 853 mil bpd no ano passado, muito distante da produção da década de 2.000, que chegava a flutuar em torno de 3 mbpd. E também muito longe da produção do Brasil, que chegou a 3,5 mbpd no ano passado. Ou seja, mesmo com o aumento da produção graças à autorização para produção pela Chevron, o Brasil produz quatro vezes mais barris de petróleo que a Venezuela e tem projetos para superar com tranquilidade os 4 mbpd nos próximos anos.

E, ainda a título de comparação, houve as descobertas de petróleo offshore (no mar) na Guiana, país vizinho da Venezuela, que já está com uma produção de cerca de meio milhão de bpd e deve, nos próximos anos, superar a produção venezuelana. A ExxonMobil é líder na exploração na Guiana, mas há também outros grandes players, como a chinesa CNOOC. A presença da ExxonMobil na Guiana não deve ser considerada estratégica, mas simplesmente uma grande oportunidade para a empresa se apropriar de uma renda extraordinária.

Sem dúvida, apesar da demagogia de Trump, os EUA têm interesses estratégicos em manter sua presença no Oriente Médio por dois motivos. Primeiro, porque é importante garantir o fornecimento aos seus aliados europeus e asiáticos. E é interessante controlar fontes de recursos que ainda são, por muitos anos, vitais para seu rival, no caso, a China.

O segundo motivo é um pouco mais complexo. O fato de o mundo estar com uma capacidade instalada superior à demanda quando atingirmos o pico da demanda não significa que o mundo não precisa mais explorar novos poços. Não sabemos a velocidade da queda da demanda nas próximas décadas. Há vários cenários.

O Energy Outlook da BP, publicado no final de janeiro do ano passado, previa três cenários para as próximas três décadas. No primeiro, a transição é lenta, com consumo acima de 100 mbpd durante muitos anos, chegando a 75 mbpd em 2050. Já no cenário "Net Zero", mais rápido, haverá uma redução para 20 mbpd em 2050. Mas, como o diabo está nos detalhes, mais rápido que o declínio da demanda será o esgotamento dos campos atuais, e mesmo na hipótese mais otimista, será necessário explorar novas áreas para atender a demanda.

Diante das incertezas e dos grandes investimentos necessários, com tempo de maturação de vários anos, as empresas petrolíferas buscam as melhores oportunidades entre as muitas disponíveis. Manter uma presença no Oriente Médio, mesmo para os EUA, ainda faz sentido, porque não sabem se as reservas no seu próprio território garantirão essa fartura nas próximas décadas. Lembrando que quase metade das reservas no mundo está no Oriente Médio, com um petróleo de boa qualidade e explorável a um custo relativamente baixo.

E, justamente por isso, não é o caso da Venezuela. Sim, no papel, o país seria o que possui as maiores reservas, mais até que a Arábia Saudita. Mas, como já sugeriu Yamani há cinquenta anos: a lucratividade do petróleo não acaba por falta de petróleo. A maior parte das reservas da Venezuela é de petróleo muito pesado, difícil e custoso de transportar e refinar. No mundo de hoje, não faz sentido imaginar que alguém possa ter um interesse estratégico nessas reservas. Aliás, a produção venezuelana está caindo vertiginosamente há dez anos, e nem a China nem a Rússia se interessaram em alterar esse quadro.

O que há no caso da Venezuela é, como explicado, um interesse qualitativo de pequena quantidade por parte dos EUA e várias oportunidades de interesse financeiro, mas também de baixo volume. Há, portanto, um potencial para voltar a produzir mais de um milhão de bpd, caso a situação política se acalme. Mas imaginar que a Venezuela voltará um dia a ser o grande e poderoso produtor que já foi é desconhecer as profundas mudanças pelas quais o mundo dos fósseis está passando.

Há outros interesses dos EUA que podem explicar sua ingerência nos acontecimentos políticos na Venezuela. Primeiro, o risco de que uma maior instabilidade possa gerar novos fluxos migratórios, que se somariam a um dos fenômenos que os EUA estão enfrentando e que gera forte disputa política. Segundo, se o governo Maduro conseguir afirmar sua posição sem acordo com grande parte dos países latino-americanos e os próprios EUA, isso significará uma maior dependência política, econômica e militar da China e da Rússia. E isso certamente é visto em Washington como contrário a seus interesses estratégicos.

 

Ou seja: It is not the oil, stupid!.

 

*Giorgio Romano Schutte é Professor Associado em Relações Internacionais e Economia Política Mundial da UFABC, membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB) e bolsista produtividade CNPq.

**Igor Fuser é Professor Associado em Relações Internacionais e Economia Política Mundial da UFABC, membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB), autor do livro “Energia e Relações Internacionais” da Editora Saraiva.

*** As opiniões contidas nesse artigo não refletem necessariamente as do Jornal Brasil de Fato

 

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho