Entrevista

'Negacionismo tem perdido forças com eventos climáticos extremos', diz Carlos Nobre

Se as temperaturas continuarem aumentando, haverá a sexta maior extinção de espécies do planeta, adverte o cientista

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Não é a ciência que é negacionista. É um grupo de pessoas, setores econômicos que lutam contra a busca das soluções absolutamente necessárias e urgentes de combater a emergência climática" - Foto: Rafa Dotti

O cientista Carlos Nobre tem más notícias para o futuro da humanidade. Se não iniciarmos, de imediato, uma redução na liberação de gás carbônico na atmosfera e, ao contrário, as emissões continuarem aumentando, o mundo se tornará inabitável, com os velhos, os bebês e as crianças pequenas morrendo primeiro. Nobre fala de cátedra. Foi um dos criadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, o Cemaden. 
    
Na condição de pesquisador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), foi um dos premiados com o Nobel, ao lado do ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore. Desde 1990, participou da elaboração de quatro relatórios do IPCC, sempre alertando sobre os riscos da exploração predatória da natureza, do aquecimento global e dos desastres do clima, como se viu este ano no Rio Grande do Sul


    
Com doutorado em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), dedicou sua carreira ao impacto climático do desmatamento na Amazônia. Ele lembrou que, se nada for feito e se continuarmos procedendo de modo irresponsável como agora, teremos a sexta maior extinção da história da Terra. 
   
"As outras cinco foram fenômenos geológicos, hidrológicos, climáticos. Essa será a primeira vez que um ser da nossa biodiversidade, ou seja, nós, humanos, vamos gerar uma extinção de espécies", diz. 
    
Nesta semana, Nobre esteve em Porto Alegre (RS) quando falou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre o tema Extremos climáticos: romper com o negacionismo, superar a crise. Brasil de Fato RS acompanhou sua conferência e conversou com ele. Confira:

Tivemos eventos climáticos extremos e frequentes nos últimos anos no Brasil e no planeta. Nunca mais viveremos naquele mundo que tínhamos, por exemplo, 10 anos atrás? 

O planeta todo bateu os recordes de temperatura em 2023 e continuam altos nos primeiros sete meses de 2024. O avanço da temperatura média passou de 1,5 grau desde junho de 2023. São 13 meses passando de 1,5 grau. E isso está fazendo também todos os eventos extremos acontecerem com muito mais frequência e baterem recordes, sejam chuvas excessivas prolongadas, como no Rio Grande do Sul, sejam secas, como tivemos no recorde histórico na Amazônia, além de uma das secas mais pronunciadas no Cerrado e do Pantanal com recorde de ondas de calor. 

Ondas de calor levam a um maior número de mortes por desastres naturais e também a incêndios florestais e ressacas nas zonas costeiras. Então, tudo isso acontece com muito mais frequência e, de fato, não há mais volta. A temperatura não tem mais condição de ser diminuída nos próximos anos.

Para não aumentarem ainda mais as temperaturas, precisamos reduzir rapidamente as emissões dos gases de efeito estufa. É um gigantesco desafio.


O primeiro cientista a perceber que estava aumentando a concentração do gás carbônico na atmosfera foi Svante August Arrhenius / Foto: Rafa Dotti

O Rio Grande do Sul teve uma enchente histórica, aquela de 1941. Demorou 80 anos para ocorrer algo similar. Podemos pensar que, agora, contaremos com cheias arrasadoras espaçadas em anos ou meses e não mais em décadas?

Eventos extremos como esse do Rio Grande do Sul de maio e junho, de fato, eram muito raros. Talvez acontecessem uma vez a cada século. Em 1859, teve um evento (grande) também e, depois, em 1941. Mas esse evento de 2024 bateu todos os séculos. Foi um volume e um prolongamento de chuvas até maior. Nunca tinha visto isso na história. Se não reduzirmos as emissões e as temperaturas continuarem a aumentar, esses eventos vão acontecer com cada vez mais frequência.

Desde 1941, passaram-se 83 anos. Tais eventos podem, se as temperaturas continuarem a aumentar, acontecer uma vez a cada década ou, no máximo, a cada duas décadas. 

Vão realmente ocorrer cada vez com maior frequência. Haja visto, por exemplo que, no ano passado, o Rio Grande do Sul bateu todos os recordes de chuvas e inundações. Foram vários eventos e depois também esse recorde de 2024. Em 2023, em setembro, houve aquele evento que, até então, tinha sido o recorde da bacia do rio Taquari. Temos que estar preparados.

Como vê o avanço das contestações à ciência, como o negacionismo climático?

Há negacionismo climático desde que a ciência começou a mostrar o risco avançado do aquecimento global. Isso chega a ser até perto de 50 anos, quando a ciência viu que as emissões dos gases de efeito estufa estavam já aquecendo o planeta e aquilo poderia se tornar muito crítico. Há 34 anos, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) fez o seu primeiro relatório do qual participei como participei de de vários outros também. 

O número de cientistas negacionistas, hoje em 2024, é inferior a 1%. Estima-se que haja cinco ou dez negacionistas a cada mil cientistas climáticos. Quer dizer, mais que 99,5% são cientistas que percebem o que está acontecendo e que, jogando-se gases de efeito estufa na atmosfera, não há como não aquecer o planeta. 

A física conhece isso há muito e muito tempo. O primeiro cientista a perceber que estava aumentando a concentração do gás carbônico na atmosfera foi Svante August Arrhenius, o sueco que ganhou o Prêmio Nobel em 1903. Foi ele que inventou a tabela periódica, mas também foi o primeiro cientista a demonstrar que, se dobrasse a concentração do gás carbônico na atmosfera, a temperatura aumentaria muito. 

O negacionismo climático envolve um número ridiculamente desprezível de cientistas. Mas, infelizmente, é um movimento que adquiriu uma outra dimensão. Não é a ciência que é negacionista. É um grupo de pessoas, setores econômicos que lutam contra a busca das soluções absolutamente necessárias e urgentes de combater a emergência climática. 

E qual é a principal forma de disseminar isso [o negacionismo], já que não se consegue disseminar isso no meio científico porque não há como ter artigos aceitos em revistas científicas de alta qualidade? Eles usam fake news há muitos anos, desde que o mundo acelerou demais o uso de sistemas como os celulares. Eles se tornaram os principais proponentes de fake news sobre mudanças climáticas, algo que é colocado mundialmente. 

Na minha opinião, eles estão perdendo força porque os extremos climáticos em 2023/24 bateram todos os recordes. Nunca a temperatura foi tão alta desde o último período interglacial, há 120 mil ou 130 mil anos. Não há como as pessoas negarem que o clima está mudando. E mesmo os que tinham dúvidas agora estão vendo essa realidade que afeta praticamente todas as pessoas. 

Um artigo da Nasa de 2022 voltou a ganhar destaque esse ano. Em um trecho ele pontua que "modelos climáticos nos dizem que certas regiões provavelmente excederão essas temperaturas nos próximos 30 a 50 anos. As áreas mais vulneráveis incluem o Sul da Ásia, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho por volta de 2050; e a China Oriental, partes do Sudeste Asiático e o Brasil por volta de 2070". Qual é o significado disso?

Há vários estudos, o primeiro deles de 2010 e, depois, esse estudo também mais recente da Nasa, mostrando que, se a gente continuar lançando os gases de efeito estufa na atmosfera, a temperatura vai continuar a subir. E vai chegar num limite - se continuarem as altas emissões -, lá por 2070, ou, se a gente conseguir reduzir um pouquinho as emissões, em 2100 - que [o aumento da] temperatura vai atingir mais de quatro graus. 

Com isso, inúmeras áreas do planeta, principalmente as regiões tropicais, mas também latitudes médias, durante o verão, atingem aquele limite do corpo humano. Quando a temperatura é muito alta, a umidade pode até ser baixa, mas o corpo humano não consegue perder calor, o que é chamado estresse térmico do corpo humano. 

Por exemplo, se atingir 35 graus e a umidade relativa for 100%, o ar está saturado de vapor d'água e não conseguimos perder calor. Se tivermos 45 graus de temperatura, 54% de umidade relativa também, o corpo não consegue perder calor. Nessa situação, que é o estresse térmico, o idoso, a idosa, os bebês, as crianças muito pequenas, não sobrevivem mais do que meia hora, uma hora. Pessoas muito saudáveis, adultos, [chegam a] duas ou três horas.

O mundo passando desses limites se torna inabitável, como o estudo da Nasa indicou. Mas esses estudos existem há tempos. O primeiro foi publicado em 2010. Isso mostra que não há solução, só adaptação aos extremos climáticos. Tais temperaturas não permitiriam aos humanos sobreviverem. Grande parte do planeta ficará quase que inabitável para nós e para centenas de milhares de outras espécies. 

Se atingirmos essas temperaturas - por exemplo, mais quatro graus - vamos gerar a sexta maior extinção de espécies do planeta. As outras cinco foram fenômenos geológicos, hidrológicos, climáticos. Essa será a primeira vez que um ser da nossa biodiversidade, ou seja, nós, humanos, vamos gerar uma extinção de espécies. É um dado muito preocupante. Por isso, não temos opção que não seja zerar as emissões o mais rápido possível e depois também passar a remover o gás carbônico da atmosfera.


"Para não aumentarem ainda mais as temperaturas precisamos reduzir rapidamente as emissões dos gases de efeito estufa. É um gigantesco desafio" / Foto: Rafa Dotti

O senhor afirma que a era de extremos "não tem mais volta". Quais são as medidas que devem ser tomadas agora, aquelas que não podemos mais esperar?

Se continuarmos aumentando as emissões, podemos chegar no final desse século com uma boa parte do planeta inabitável. Se [o aumento da] temperatura passar de quatro graus, só na altitude, em montanhas na Antártica, no Ártico, é que o clima ainda permitiria a vida humana. 

E o gás carbônico e o oxonitroso são gases que têm um período muito longo na atmosfera. Por exemplo, 15% do gás carbônico que a gente emite hoje vai estar na atmosfera por até mil anos.

É por isso que não há jeito de rapidamente reduzirmos esses extremos climáticos. Precisamos, sim, rapidamente reduzir as emissões. O Acordo de Paris lançava a ideia de não deixar [o aumento da] temperatura passar de 1,5 graus. Em 2023 e 2024, chegou a 1,5 graus. Não sabemos se ela, de fato, vai continuar [crescendo], mas é um risco muito grande de permanentemente atingir esse 1,5 graus nos próximos anos. Não tem mais volta mesmo. Esses fenômenos extremos vão estar acontecendo, a temperatura aumentando mais frequentemente e quebrando recordes por muitas e muitas décadas.

É conseguir rapidamente reduzir as emissões e depois passar a remover gás carbônico da atmosfera. Por exemplo, a restauração florestal remove muito gás carbônico via fotossíntese. Será um gigantesco desafio não deixar a temperatura passar de 1,5 graus. E, quem sabe, até 2100, conseguir remover muito gás carbônico da atmosfera e fazer com que baixe para um grau só. 

Temos que, em primeiro lugar e rapidamente, parar 70% da queima de combustíveis fósseis, além de cerca de 23% da agricultura e do desmatamento. Temos que zerar tudo isso e passar a desenvolver grandes projetos de restauração florestal para ir removendo o gás carbônico. E, com isso, teremos a possibilidade de não deixar a temperatura passar de dois graus nas próximas décadas. E, depois, quem sabe, até o final do século, chegar a um grau. Mas isso é muito difícil. Corremos um enorme risco.

O que os eleitores deveriam exigir daqueles em quem votam em termos de cuidados com o ambiente? 

É muito importante que todos os eleitores, principalmente pensando, agora, nessa próxima eleição aqui no Brasil, prefeitos e vereadores dos mais de cinco mil municípios brasileiros, que eles, independentemente de qualquer ideologia, que não elejam negacionistas. Que não elejam candidatos que não atuem para combater as emergências climáticas. O Brasil tem que ser o primeiro país de grandes emissões a zerar suas emissões. 75% das nossas emissões em 2022 foram oriundas do desmatamento e 25% da agricultura. E praticar a agricultura e a pecuária regenerativa. 

Um estado produtor de alimentos, como o Rio Grande do Sul, também deve passar para a agricultura e pecuária regenerativas. E rapidamente assumir a transição para as energias renováveis. 

O Brasil tem um gigantesco potencial de energias renováveis, caso da energia solar, da eólica, dos biocombustíveis, e até mesmo energias novas que o mundo começa a desenvolver agora, as que vêm do oceano. E o Rio Grande do Sul também tem um grande potencial tanto de energia solar, como, principalmente, de eólica. Esse é o caminho. 

Ao mesmo tempo, prefeitos e vereadores têm que começar a aprovar políticas muito rápidas para aumentar a resiliência das populações, proteger a biodiversidade, os ecossistemas. É isso. 

O Brasil tem pouquíssimas políticas do que chamamos adaptação aos extremos climáticos. É muito importante, novamente, que os eleitores escolham prefeitos e vereadores que tenham essa mesma visão de combater a emergência climática.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno