CRISE NA MORADIA

Política de moradia em SP é 'máquina de produção de sem-teto', diz Raquel Rolnik

Professora da USP fala sobre revitalização do centro, emergência habitacional e mudanças climáticas no BdF Entrevista

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Rolnik: vamos ter mais prédios vazios no centro, 22 órgãos do Governo de Estado já estão no centro e terão que sair de onde estão para ir para a nova PPP
Rolnik: vamos ter mais prédios vazios no centro, 22 órgãos do Governo de Estado já estão no centro e terão que sair de onde estão para ir para a nova PPP - Arquivo/Agência Brasil

Tido por uma parcela da população como um local abandonado, o centro da cidade de São Paulo é alvo frequente de promessas de “revitalização” e “requalificação” entre gestores públicos. Palco de muitos comércios e de uma enorme circulação de pessoas, de transporte público e ainda de uma pulsante cena cultural, a região também abriga 58,7 mil domicílios particulares sem uso, segundo dados do Censo 2022, divulgados neste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Cortiços e pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social também compõem o cenário, assim como programas que permeiam interesses do setor público e privado voltados para a construção de empreendimentos imobiliários para a classe média e alta. Ideias como o “Requalifica Centro” (Lei 17.577/21) da gestão municipal de Ricardo Nunes fazem parte desse quadro e é vista com ressalvas pela professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e coordenadora do LabCidade, Raquel Rolnik. 

“A ideia de revitalizar é que não tem vida, porque essas vidas que estão hoje ‘não importam’, então precisamos ter estímulos. Teve toda uma linha de que a ideia de estímulo é para estimular o mercado imobiliário a produzir mercadorias que são de interesse de espaços comerciais e residenciais no centro e então abrir uma fronteira para o mercado imobiliário. Isso foi feito através de várias políticas, o Requalifica é apenas uma delas”, diz Rolnik que foi diretora de planejamento da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, durante o primeiro governo Lula. 

Lançado pelo prefeito Ricardo Nunes em 2023, o “Requalifica Centro” concede incentivos fiscais para o retrofit, que seriam segundo a própria Prefeitura, “modificações realizadas em edificações dadas como antigas”. A lei ainda de 2021 permite à prefeitura de São Paulo conceder incentivos fiscais a construtoras interessadas em requalificar prédios antigos no centro da cidade. 

Alguns dos benefícios incluem o perdão da dívida do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), a isenção do IPTU pelos três primeiros anos após a conclusão da obra e a isenção do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Além disso, a prefeitura pode bancar até 25% dos gastos das companhias com as obras de retrofit, com um montante de R$ 1 bilhão públicos. O programa permite abrigar comércios e apartamentos destinados a estadias de longa e curta duração, como os aluguéis pela plataforma Airbnb. 

O artigo 33º do decreto de subvenção da Lei do Retrofit destina partes do montante de R$ 1 bilhão para projetos de habitação de interesse social, conhecidos como "HIS". No entanto, o parágrafo quarto deste artigo permite a revisão dos percentuais alocados, caso haja falta de recursos para uma ou mais categorias, o que pode levar à falta de financiamento para projetos de habitação social. Até maio deste ano nenhum projeto de interesse em habitação social havia saído do papel. Até junho 14 projetos de retrofit foram aprovados pela Prefeitura, totalizando 1.275 unidades habitacionais viabilizadas pela iniciativa privada.

Em consonância com o Requalifica está a transferência da sede administrativa do governo do Estado de São Paulo para o bairro de Campos Elíseos, como avalia Rolnik. De acordo com ela, metade da administração do Governo do Estado já está no centro, sobretudo, em volta da região do Pátio de Colégio e da Sé, onde já existem muitos órgãos. O projeto prevê a transferência de órgãos do estado para a Avenida Rio Branco. Ao menos 800 pessoas podem perder suas moradias. Também há a previsão de desativação do Terminal Municipal de Ônibus Princesa Isabel, onde transitam 18 linhas.

No entanto, um levantamento do LabCidade mostrou que dos 54 órgãos estaduais localizados na capital de São Paulo – entre secretarias, empresas e autarquias, com exceção de universidades e hospitais – 27 deles já estão instalados na área central. “Quer dizer que vai concentrar todos os órgãos em volta ali dos Campos Elíseos em novas torres e vai esvaziar aqueles prédios que eles ocupam hoje, ou seja, nós vamos ter mais prédios vazios no centro, porque são 22 órgãos do Governo de Estado que já estão no centro e que vão ter que sair de onde estão para ir para essa tal nova PPP.”

Na última terça-feira (6) o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), responsável pelo edital do concurso do plano, anunciou o projeto vencedor para a instalação da nova sede administrativa, dentre as 44 propostas recebidas, a aprovada foi a do escritório Ópera Quatro. Em carta pública divulgada pela entidade no dia anterior, o IAB defende que o projeto seja construído com participação social, sobretudo do Conselho Gestor da Zona de Especial Interesse Social (ZEIS) presente na área delimitada pelo plano urbanístico.

Rolnik pondera que é possível trabalhar com a vinda do Governo de Estado para Centro sem necessariamente “destruir um pedaço do Campos Elíseos” para construir uma nova sede. “Então, o que a gente percebe com isso é que a grande motivação não é exatamente a concentração do Governo de Estado, é uma espécie de cortina de fumaça que você põe na frente. A grande motivação é o negócio da PPP. Ou seja, são os negócios que você movimenta a partir de uma parceria público-privada”.

As construções de empreendimentos via PPPs abordadas pela urbanista ainda vem colocando pessoas que são removidas de moradias informais no centro em uma situação de “transitoriedade e precariedade permanente”, uma vez que ao não conseguirem acesso às moradias formais, são empurradas para novas habitações precárias. “A gente tem uma política que é uma verdadeira máquina de produção de sem-teto, máquina de produção de gente encortiçada”, afirma.

Dados divulgados pelo LabCidade revelam que pelo menos 18 mil pessoas vivem em cortiços na área central, em sua maioria negras (63%) e com ganhos mensais de até 2 salários mínimos (85%), que vivem em 1.084 cortiços. Os números são do Censo dos Cortiços, coletados em 2022 e ainda não divulgados oficialmente.

Rolnik é a convidada desta semana do BdF Entrevista. Na conversa a professora da USP que também é prefeita do campus Butantã denuncia a falta de planejamento do ente municipal e estadual de São Paulo para lidar com as mudanças climáticas. “Vamos sucumbir às temperaturas altas, às enchentes e isso tem a ver com o modelo de cidade que temos. Nós temos que repensar o modelo de cidade, está na hora de romper com esse paradigma.” Para ela, a crise da moradia, as mudanças climáticas e a mobilidade urbana serão pautas centrais da nova gestão municipal.

Confira alguns trechos da entrevista abaixo. No vídeo acima, você pode conferir a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: No ano passado a prefeitura de São Paulo começou a implementar o programa Requalifica Centro, que dá incentivos fiscais a construtoras interessadas em requalificar prédios antigos da região central da cidade. No edifício Renata esse programa foi implementado depois de adaptações. Ele deixou de ser um prédio corporativo para abrigar comércios e apartamentos destinados a estadias de curta e longa duração. Qual é a sua visão sobre esse projeto?

Raquel Rolnik: Eu acho que é bem importante, quando a gente fala de centro, entender o quadro mais amplo, para complexificar a situação. O centro da cidade de São Paulo, especialmente a região de Sé e República, era historicamente a centralidade da cidade. O centro da cidade das classes médias e altas. Era o lugar elegante das lojas bacanas, das atividades culturais, dos restaurantes, etc. Desde o finalzinho do século XIX era isso e isso começou a mudar. 

Primeiro com várias intervenções que foram decisões da própria política urbana, da cidade de São Paulo, na hora que a política urbana tornou mais difícil o acesso do automóvel ao centro, ele começou a ficar menos o centro das classes médias e altas, porque até bem pouco tempo atrás o automóvel era coisa só de classe média e alta e o povo andava de transporte coletivo. Então, com os calçadões e os eixos expressos que atravessam o centro, na verdade, eles permitiram também a abertura de novas centralidades. A gente começou a ter novas centralidades na região da Paulista, Jardins, depois isso foi migrando na direção da Marginal Pinheiros, Itaim... então teve uma migração da centralidade de classes médias e altas para fora do centro. 

Ao mesmo tempo, o centro virou o lugar de máxima acessibilidade de transporte coletivo, e tem uma coisa do sistema de transporte coletivo da nossa cidade, que é todo o rádio concêntrico. É no centro que você faz a mudança de modal, do trem para o metrô, do metrô para o ônibus, do ônibus para o metrô. Então, o centro virou um grande terminal intermodal e, portanto, extremamente popular. 

Junto com isso, a rodoviária, que veio para o centro há muito tempo, também popularizou. Saiu nos anos 1970, então, a gente teve um processo de popularização e, portanto, de perda de valor imobiliário do centro, de saída dessas centralidades mais elegantes, que foi acompanhada de uma postura que é típica da nossa gestão municipal -- eu estou falando na longa duração, não estou falando de uma gestão específica -- que é o fato de que os locais de classe média alta são extremamente bem cuidados, geridos, limpos, lindinhos, mantidos e os lugares populares têm uma zeladoria pior, de quinta, mal feita, largada. Isso também foi deixando o centro mais abandonado. 

Com isso, desde os anos 1990, a gente começa a ter um discurso da prefeitura, do governo de estado, isso foi variando pensando: "precisamos revitalizar o centro", porque de um lado a gente teve com a saída dessas classes médias, muitos edifícios residenciais e comerciais, de escritório ficaram vazios, porque os escritórios migraram para outra região e os apartamentos também, então, tinha muito prédio vazio subutilizado e aí tem, de um lado, a ideia de que esses prédios vazios subutilizados precisam ser reutilizados. E junto com isso, em função da nossa eterna crise de moradia, essa necessidade não satisfeita de moradia, desde os anos 1990 a gente começou a ter ocupações de moradia desses prédios. 

Então começou uma pauta e uma agenda de que é preciso utilizar esses prédios reformando para moradia popular como linha de atuação e, ao mesmo tempo, como ação direta de movimentos sociais, de moradia, que passaram a ocupar e lutar pela reforma desses prédios para que eles pudessem morar. Vários, inclusive, que já foram reformados. Então a gente começa a ter uma dupla agenda aqui, uma agenda que vem hegemônica, a ideia de que: o centro está abandonado, ele tem que ser revitalizado. A ideia de revitalizar é a ideia que não tem vida, porque essas vidas que estão hoje elas “não importam”. 

Então precisa ter vida, precisamos ter estímulos e essa que é a questão. Teve toda uma linha de que a ideia de estímulo é estimular o mercado imobiliário a produzir mercadorias que são de interesse hoje de espaços comerciais e residenciais no centro, então abrir uma fronteira para o mercado imobiliário. Isso foi feito através de várias políticas. O Requalifica é apenas uma delas, dentro de vários, de PIOs [Planos de Intervenção Urbana], desde a operação urbana centro, é estímulo para o setor imobiliário ocupar, usar e de outro lado a tensão da luta pela moradia que quer lutar por moradia social. Então eu vejo a questão do Requalifica um pouco [inserida] nessa tensão. 

Qual é o problema do Requalifica? O que está acontecendo na cidade de São Paulo? Nós temos um boom imobiliário de produção de novas unidades residenciais, estimuladas por incentivos como o Requalifica e outros, mas também pelo Plano Diretor da cidade, que ofereceu potencial construtivo de graça para produzir habitação de interesse social e o que foi produzido ali é muito mais, o que a gente chama de "fake" habitação de interesse social, que são pequenas unidades e estúdios, que vão para aluguel de curta temporada, aluguel temporário, tipo Airbnb, ou outros tipos de aluguel. Porque no campo do mercado imobiliário, a nova frente de financeirização da moradia é o aluguel, e o aluguel de curta temporada é um dos produtos. Então o que a Prefeitura faz ao fazer um programa como Requalifica é abrir uma frente para isso. Só que nós estamos vivendo a pior crise habitacional que essa cidade já conheceu na sua história.

A quantidade de pessoas morando na rua, não só no centro, é o sinal mais evidente disso. E quando você vai aumentando o valor dos imóveis para esse tipo de mercado, você vai subindo os preços e vai tornando cada vez mais difícil as pessoas que têm menos renda poder morar. Então, resumidamente, é óbvio que o centro precisa de cuidado, é óbvio que o centro precisa de políticas, a discussão é: que política? Que cuidado? Essa é questão e de políticas como o Requalifica. Assim como, por exemplo a PPP dos Campos Elíseos, que está sendo proposta pelo Governo do Estado. Qual é a lógica dela?

O mercado entra comprando os imóveis das pessoas, derrubando e fazendo uma torre no lugar. É assim que está entrando em tudo quanto é bairro da cidade. Compram um sobradinho, um outro, outro, outro, derruba tudo, monta uma torre e vende os produtos daquela torre.

Nos Campos Elíseos há uma área tombada. É uma área muito antiga. Então essas áreas muito antigas têm 550 milhões de problemas de herança, 150 herdeiros que têm que assinar uma escritura, um herdeiro tá lá em Portugal, o outro sumiu... então é muito mais difícil fazer isso para o mercado, fazer essas operações de incorporação sozinho. É inacreditável. 

O que a política pública tem feito? Tem dado uma ajudinha para o mercado. Isso vem desde o projeto Nova Luz, do Kassab, que era exatamente isso. A Prefeitura desapropria, derruba, limpa e entrega limpinho para o mercado. Sem gente, sem construção, sem nada. Para o mercado poder ali colocar os seus produtos. A PPP Campos Elíseos é nada mais, nada menos, do que a última versão dessa mesma coisa.

Se tem gente morando, se tem prédio, se está bom, se está ruim, se as pessoas têm para onde ir... isso não tem a menor importância. O mais importante é derrubar tudo, arrancar tudo, tirar tudo e entregar limpinho para o mercado. É de uma perversidade, porque pressupõe que cuidar do centro e transformar o centro é destruir o centro, sendo que o centro é o lugar de maior qualidade arquitetônica e urbanística de São Paulo. A gente tem muita edificação de qualidade, muito urbanismo de qualidade e isso tudo, a perspectiva, é terra arrasada para poder construir isso. 

As chamadas PPPs se conectam com essa ideia de revitalização? As pessoas em situação de vulnerabilidade estão conseguindo acessar essas moradias? Como elas funcionam?

Eu estava comentando sobre a tensão entre a transformação urbanística do centro em torno de uma ideia da volta do seu glamour e a transformação urbanística do centro ofertando moradia para quem mais precisa. Como essa agenda da moradia para quem mais precisa ficou muito forte e se colocou muito na resistência contra projetos gentrificadores.

Então, uma das últimas versões desse processo de transformação que veio da iniciativa do Governo do Estado e do município também, foi a PPP municipal de moradia e ela foi feita. Tem uma PPP Municipal que aconteceu também na região dos Campos Elíseos, é diferente dessa PPP do Centro Administrativo, e ela ocupou várias quadras aqui dos Campos Elíseos, uma PPP do Hospital Pérola Bayton e uma outra que é a PPP Municipal de Moradia, onde morava gente, moravam precariamente em condições que necessitavam urgentemente ser transformadas. 

Essa PPP foi basicamente ofertada para quem trabalhava no centro e não morava no centro. E para entrar na PPP você tem que pagar um financiamento, tem juros, você tem que ser uma pessoa que é capaz de assumir um crédito. Então, o que aconteceu? As pessoas que moravam ali, cujas vidas, cujas pensões e cortiços foram completamente destruídos para dar lugar a PPP, não tiveram acesso a esses apartamentos. Onde elas foram parar? É inacreditável, mas tem famílias que foram removidas dessas quadras, onde foi a PPP Municipal de Moradia, que estão hoje nas quadras, ameaçadas de demolição e remoção para a PPP do Centro Administrativo, numa espécie de transitoriedade, precariedade permanente. Então, a gente tem uma política que é uma verdadeira máquina de produção de sem-teto, máquina de produção de gente encortiçada, e numa coisa perversa falando: "não, não, mas esse pessoal recebeu um voucher de auxílio aluguel, tem mais de 20 mil pessoas com esse voucher de auxílio aluguel”. 

O que você faz com o voucher de auxílio aluguel de R$ 400? Você aluga o pior quarto, do pior cortiço, da pior pensão, ou o pior barraco, da pior favela da cidade de São Paulo. O valor básico de aluguel da cidade de São Paulo é indexado pelo voucher da Bolsa Aluguel. Isso não é política. Isso não é uma política pública de habitação. Então é a própria política pública produzindo e alimentando a precariedade.

Entrando mais a fundo no projeto do Centro Administrativo do Governo do Estado de São Paulo, promovido pelo governador Tarcísio de Freitas, que prevê a transferência de órgãos do estado para o Campos Elíseos. Poderia falar quais serão os impactos dele para o centro e como está se dando a participação dos moradores da região sobre esse projeto?

Bom, primeiro, vamos começar a dividir essa conversa em dois pontos. É muito positivo que a administração do Governo do Estado esteja no centro da cidade. Porém, a discussão é como isso se dá, de que forma isso se dá. Então, em primeiro lugar, a gente tem que considerar que metade da administração do Governo do Estado já está no centro, no triângulo histórico, sobretudo, em volta da região do Pátio do Colégio, da Sé, tem muitos órgãos. Quer dizer que vai concentrar todos os órgãos em volta, ali, dos Campos Elíseos, em novas torres, e vai esvaziar aqueles prédios que eles ocupam hoje? Ou seja, nós vamos ter mais prédios vazios agora no centro, porque concentrou, porque são 22 órgãos do Governo de Estado que já estão no centro e que vão ter que sair de onde estão para ir para essa tal nova PPP.

E não precisaria. Pode ter um espaço de concentração, você pode trabalhar com a vinda do Governo de Estado para o centro sem necessariamente destruir um pedaço do Campos Elíseos para construir uma nova. Então, o que a gente percebe com isso é que a grande motivação não é exatamente a concentração do Governo de Estado. Isso é uma espécie de cortina de fumaça que você põe na frente. A grande motivação é o negócio da PPP. Ou seja, são os negócios que você movimenta a partir de uma parceria público-privada. 

Tanto é que toda a modelagem dessa ideia não foi absolutamente conversada nem discutida com ninguém, nem com ninguém que mora lá, nem com ninguém em lugar nenhum, nem na Prefeitura, nem na Câmara Municipal, não foi objeto de um plano, surgiu, abriu o céu, caiu um plano urbanístico que não foi aprovado na Câmara, que não foi discutido, que não foi feito nada sobre ele, que já definiu que precisa arrasar cinco quadras dos Campos Elíseos para construir as torres alí.

Será que essa é a melhor forma de instalar o governo do Estado em vários prédios ali da região? Inclusive, na própria Campos Elíseos, é possível instalar sem fazer isso. Então, eu acho que é absolutamente fundamental um processo público de debate. A cidade não é casa da mãe Joana, que o governo do Estado vai lá e arrasa um pedaço inteiro de um bairro sem fazer nenhum debate, nem no campo institucional, da Câmara Municipal, da Prefeitura, nem pedir autorização, nem conversar com ninguém. O que é isso? Não é possível fazer assim. 

Além do mais, dentro dessa área dos Campos Elíseos, a gente tem algumas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), locais que são habitados por população de baixa renda e que precisam de reestruturação. Então, são as favelas, são as comunidades, mas são também cortiços e pensões, que precisam de um projeto de transformação.

Só que ele é discutido através de um conselho gestor de cada uma dessas Zeis, onde participa quem mora, o município, os órgãos envolvidos, se faz um debate público sobre qual é a proposta e, a partir daí, se elabora um plano, que absolutamente não foi o que aconteceu até esse momento com a PPP dos Campos Elíseos. 

A PPP dos Campos Elíseos foi lançada, como uma ideia ali, um "render" jogado, que evidentemente teve um plano urbanístico que alguém fez, sei lá onde, que também não discutiu com ninguém. Foi objeto de um concurso de arquitetura, mas bem esquisito, porque é um concurso onde o plano urbanístico já estava definido.

O resultado ganhador do concurso produziu uma coisa que é exatamente igual ao plano urbanístico, não tem diferenças em relação a ele, e nada disso foi objeto de debate. Pelo contrário, quando tudo isso foi lançado, acho que teve muitas manifestações de moradores daquela região e que estão absolutamente indignados de serem desapropriados quando poderia haver soluções que não necessariamente os desapropriasse.

E a prefeitura, inclusive, está cedendo terrenos e áreas para o Governo do Estado.

Porque tem um terminal de ônibus ali, o que que vai acontecer com esse terminal? Para onde que ele vai? Um terminal importante da cidade. Quando eu falei que o centro virou um grande terminal intermodal, ali é uma das regiões super importantes de terminal. Nada foi apresentado, nada foi colocado. Então, como é que a cidade pode admitir um projeto que seja assim, sem nenhum tipo de debate, nem consideração dos atingidos? 

Então, tem atingidos que são usuários do transporte coletivo, que são moradores da área, proprietários da área, tem atingidos que somos nós, moradores da cidade de São Paulo e que temos zelo por uma área que faz parte da nossa história e da nossa memória e queremos participar do processo de definição de como essa área vai se transformar, que evidentemente é absolutamente necessário que se transforme. 

Eu acho que tem um alinhamento [entre Prefeitura e governo do Estado] em termos de visão urbanística, que é a seguinte: o mais importante é promover negócio. O cuidado, a vida, a qualidade do lugar onde a gente vive, isso aí não tem a menor relevância. Então, imagino que tem um alinhamento que vai nesse sentido. 

Raquel, uma outra questão muito importante e que de uma certa forma já está até um pouco banalizada no nosso cotidiano são as enchentes, inundações e desmoronamentos. Em 2023, a Prefeitura de São Paulo deixou de utilizar R$ 413 milhões destinados para investimentos na prevenção de desastres e eventos críticos, segundo dados do Portal da Transparência. O que isso nos mostra sobre as prioridades da atual gestão? Qual população está sendo penalizada com essa decisão?

Eu acho que nós temos que pensar nessa questão em duas escalas, ou dois níveis. Uma coisa é o passivo. Quem hoje está numa situação de precariedade e vulnerabilidade, porque já foi construída a cidade de uma certa maneira. O passivo ambiental e de exposição ao risco, de enchente ou desmoronamento que nós temos na cidade e que precisa de planos de redução de risco, de planos de intervenção em várias escalas, que é uma coisa enorme. 

Outra coisa é um modelo de cidade que temos, porque, veja, a gente que vive em São Paulo, a nossa experiência, nas chuvas de verão, basicamente quando começa a enchente, é também um colapso do trânsito. Porque todo o nosso sistema viário principal e estrutural foi construído em cima de um rio tapado. Na hora que os rios saem das suas calhas, porque se concentra muito mais água e o sistema de canalização não dá conta, é o sistema de circulação também entra em colapso.

Então, o que está em questão hoje é a relação do rio com a cidade, é da cidade com a sua topografia, os aterros que foram feitos, que não podiam ser feitos. Outra coisa é o que virá. Então aí tem uma dimensão muito importante, e por isso que é a discussão do Plano Diretor. É o fim da picada fazer um Plano Diretor que vai falar do futuro, baseado nas ideias que produziram o colapso ambiental que nós temos hoje.

A ideia do futuro era modelar uma possibilidade diferente e, mesmo nos pedaços da cidade, que ainda não têm uma infraestrutura plena, nas periferias da cidade, já pensar em estruturá-las de outra forma. Mas não, ali também tem: canalização, asfalto, tamponamento de rio. Quer dizer, nós estamos reproduzindo esses modelos. Então não se trata apenas de investimentos na redução de riscos e vulnerabilidades, são fundamentais, mas insuficientes, mas também de pensar o futuro. Como será a nossa cidade nos próximos anos, para a gente evitar que esse colapso seja cada vez maior. 
 

Edição: Nathallia Fonseca