A cena, se fosse de um filme, pareceria forçada. Literal demais. De um lado, nhandesys (rezadoras, em guarani) no seu território ancestral retomado, balançando seus mbarakás, instrumento sagrado. Do outro, a poucos metros, fazendeiros armados com suas caminhonetes perfiladas, sob as tendas brancas de um acampamento que os indígenas afirmam ser a base de uma agromilícia. Junto deles, viaturas inertes da Força Nacional.
Os ataques e cercos de fazendeiros contra os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul são a expressão mais crua – sem rodeios ou constrangimentos - da face atual do agrocolonialismo brasileiro.
Enquanto em Brasília o ministro Gilmar Mendes convoca uma comissão de conciliação para rediscutir o marco temporal, já considerado inconstitucional pela mesma Suprema Corte que ele integra, o Brasil vê escalar, desde meados de julho, como que num efeito dominó, as reações violentas a uma onda de retomadas indígenas.
No Ceará, cerca de 20 homens encapuzados destruíram os barracos e as plantações de 46 famílias do povo Anacé. No Rio Grande do Sul, os ataques atingiram a comunidade Guarani Mbya de Pekurity e também a retomada Fág Nor, do povo Kaingang.
No oeste do Paraná, indígenas Avá Guarani nas retomadas da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá foram atropelados por caminhonetes e tiveram decisão judicial proibindo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de lhes entregar alimentos e água. Cercados por fazendeiros, ameaçados pelo governador Ratinho Jr. (PSD) e sob a tensão de ordens de despejo decretadas e suspensas, garantiram: "vamos resistir até a última gota de sangue".
E, em Douradina (MS), onde a cena descrita no início deste texto segue intacta no exato momento em que você lê essas palavras, três ataques armados feriram 12 indígenas e fizeram das retomadas da TI Panambi Lagoa-Rica o mais emblemático dos massacres em curso.
O primeiro aconteceu em 14 de julho, horas depois que os Guarani Kaiowá retomaram três das sete áreas hoje ocupadas por eles dentro do território. Um homem foi baleado na perna. Sobreposta por fazendas, a TI Panambi-Lagoa Rica já foi reconhecida e delimitada pela Funai como de ocupação tradicional indígena em 2011. Passados 13 anos da estagnação do processo demarcatório, os Kaiowá resolveram fazê-lo por conta própria.
A mais sangrenta das investidas dos fazendeiros, no entanto, aconteceu no último 3 de agosto. De cima de caminhonetes, abriram fogo com balas letais e de borracha, ferindo uma senhora e nove jovens. Dois deles, que tentavam proteger o barracão onde estavam quatro bebês e 30 crianças, tiveram ferimentos graves. Um tomou um tiro na cabeça, outro no pescoço. Imagens chocantes inundaram as redes. Ninguém foi responsabilizado.
Todos os episódios, mas em especial o do Mato Grosso do Sul, tornam gritantes dois aspectos centrais do momento que vivemos. Diferente de um atentado pontual, a tragédia foi – e segue sendo - anunciada aos quatro ventos. Pelos indígenas, por movimentos populares, pela imprensa. E pelos próprios ruralistas, que postam ameaças nas suas redes sociais.
O primeiro aspecto, portanto, é que ninguém, nenhuma entidade ou instância governamental tem sido capaz de interromper este processo.
A despeito de idas da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) ao território, da criação de comitê de conflito no governo federal, da viagem de uma delegação indígena à Brasília para falar com o presidente Lula (PT) e de audiências extrajudiciais no Ministério Público Federal (MPF), nem mesmo o acampamento de ruralistas foi, até agora, desmontado.
A atuação da Força Nacional, vinculada ao Ministério da Justiça, é um capítulo à parte. Como não temos espaço para detalhá-lo, basta lembrar que pouco antes do ataque de 3 de agosto, os agentes simplesmente se retiraram do local, deixando caminho livre para os pistoleiros.
Ao Brasil de Fato, a Força Nacional informou que naquele momento as equipes foram fazer "patrulhamento em outra área". Segundo uma liderança Kaiowá, antes de sair, um agente lhe disse: "sai daqui ou vocês vão morrer". Não se sabe bem como a profecia não se realizou. Um dos indígenas alvejados está com uma bala alojada no cérebro.
O segundo aspecto é que estamos diante de um escalonamento do conflito agrocolonial no país.
Poderíamos voltar 524 anos até episódios recentes - como as queimas de casas de reza ou o espancamento de indígenas, da antropóloga e do cineasta canadense em Iguatemi (MS) - para atestar, como cantou Bob Marley e alertou Ailton Krenak, que nunca houve paz.
Mas como disse Anastácio Peralta da Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá, ao podcast Três por Quatro do Brasil de Fato, "hoje a violência piorou muito": "Eles matam. O que puderem fazer de ruim fazem, para intimidar a gente. Mas nós somos daqui, somos da terra. Não temos para onde correr. A não ser enfrentar e ser enterrado na nossa terra mesmo".
Organizados em acampamentos em frente a retomadas, no Congresso Nacional, sindicatos rurais, em grupos como Endireita Brasil e Invasão Zero (envolvido no assassinato de Nega Pataxó na Bahia), ruralistas estão dobrando a aposta em ações violentas contra os que ousam abalar a concentração fundiária brasileira. O fazem tranquilamente, à luz do dia e em lives no Instagram.
Nem mesmo a solidariedade aos indígenas passa ilesa. Depois de uma visita aos Guarani Kaiowá na TI Panambi-Lagoa Rica, agricultores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram atacados a tiros por homens em 10 caminhonetes e duas motos. O arredor do acampamento Esperança, onde vivem em Dourados (MS), foi incendiado.
Para o diretor-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá, o "massacre que está ocorrendo dentro do Estado brasileiro é uma ação conjunta de tentativa de retirada de direitos dos povos indígenas com o subterfúgio da aplicabilidade da Lei 14.701/23".
Aprovada pelo Congresso no fim do ano passado, a norma impõe, entre outros ataques aos direitos indígenas, a tese ruralista do marco temporal. Segundo ela, só podem ser demarcadas terras ocupadas por povos originários até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Enquanto não se resolve o imbróglio judicial da aprovação de uma lei já considerada inconstitucional pelo STF, o tema é flanco aberto no Brasil.
No caso do Mato Grosso do Sul, a aplicação do marco temporal significaria que praticamente nenhum indígena teria direito ao seu tekoha (lugar onde se é, em guarani). Na década de 1940, o Estado brasileiro retirou à força os indígenas de seus territórios, confinou-os em oito reservas e emitiu títulos de terra para os novos colonos. "É preciso demarcar nossas terras e o Estado se virar com o erro que fez. Quem é criminoso é o Estado, não nós", resumiu Anastácio Peralta no podcast.
O Ministério da Justiça confirmou à Infoamazônia que não está emitindo portaria declaratória de demarcação de terras indígenas por conta da "indefinição sobre o marco temporal". Passados um ano e oito meses deste mandato do governo Lula, foram demarcadas 10 das 14 TIs cuja assinatura havia sido prometida que sairia nos primeiros 100 dias de gestão.
"Há muito tempo recebemos promessas vazias dos brancos e ficamos cansados", sintetizou Laura**, liderança Avá Guarani do Paraná. "Retomamos porque precisamos recuperar o que foi destruído, o que foi tirado de nós desde o início da invasão do Brasil. Nós não somos invasores, somos retomadores: retomamos o que é nosso", definiu Erileide Domingues, Guarani Kaiowá do MS: "É para recuperar nosso modo de viver."
Com um modus operandi cada vez mais consolidado, os ruralistas têm um plano nítido. Os indígenas também. Sob a mira de pistolas e caminhonetes, não demonstram qualquer titubeio. "Não importa se vamos tombar ou não", disse Laura, "porque nós temos a certeza de que para a nossa geração futura terá valido a pena essa luta".
Cabe a nós, enquanto sociedade implicada até o último fio de cabelo neste conflito fundante do nosso país, decidir o que vamos fazer.
*Gabriela Moncau é jornalista e antropóloga. Repórter do Brasil de Fato, realiza a cobertura de temas relacionados a direitos humanos, com foco em lutas por terra e território.
** Nome alterado para a preservação da fonte.
Edição: Martina Medina