Para enfrentar os desafios do tema, é fundamental uma governança com cooperação entre os municípios
por Angélica Benatti Alvim, Pedro Roberto Jacobi e Andresa Lêdo Marques
A mudança climática é um dos maiores desafios da contemporaneidade, afetando o planeta de maneira profunda e complexa. As cidades, epicentros de atividade humana, estão na linha de frente desse fenômeno. Com o aumento das temperaturas, elevação do nível do mar, eventos climáticos extremos e mudanças nos padrões de precipitação, as áreas urbanas enfrentam uma série de desafios sem precedentes. Refletir sobre esses desafios é crucial para encontrar soluções que garantam a resiliência e a sustentabilidade das nossas cidades.
No Brasil, de acordo com a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, em 2023, cerca de 14,5 milhões de brasileiros foram afetados por eventos climáticos extremos. Mais da metade dos municípios do país decretaram situação de emergência ou estado de calamidade. A recente tragédia climática no Rio Grande do Sul destacou a interseção entre problemas urbanos complexos e a mudança climática.
Os efeitos devastadores dos eventos extremos não respeitam fronteiras municipais, afetando desproporcionalmente os municípios menores e as comunidades mais vulneráveis, que possuem menos infraestrutura e recursos para responder a tais crises. Isso ressalta a necessidade de um planejamento urbano e regional que leve em conta esses desafios.
A trajetória das políticas urbanas, ambientais e climáticas no Brasil tem sido marcada por avanços e retrocessos. A Constituição Federal de 1988 fortaleceu a autonomia municipal ao garantir maior poder de decisão e gestão aos municípios, o que, por um lado, promoveu a descentralização administrativa, mas, por outro, resultou em uma abordagem fragmentada e muitas vezes descoordenada na implementação de políticas que exigem ação articulada para além das fronteiras municipais. O Estatuto da Cidade (lei federal 10.257/2001) e o Estatuto da Metrópole (lei federal 13.089/2015), legislações que regulamentam dispositivos constitucionais, visavam promover uma gestão urbana e metropolitana mais democrática e integrada. No entanto, a implementação de seus instrumentos enfrenta desafios na prática, como a falta de coordenação intermunicipal, a resistência política local, a escassez de recursos financeiros e humanos, e, especialmente, a dificuldade em conciliar interesses diversos e frequentemente conflitantes entre os municípios. Além disso, a existência de limites políticos e administrativos e a necessidade de considerar questões ambientais complexas agravam a dificuldade de implementar políticas públicas de interesse comum eficazes.
No âmbito das agendas ambientais globais, as negociações iniciadas com a conferência Rio 92 foram fundamentais para as conquistas relacionadas à questão climática. A Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída em 2009, e o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), de 2016, representam esforços importantes para incorporar a mudança climática nas políticas nacionais, delineando estratégias setoriais articuladas que contemplam, ainda que de modo insuficiente, a dimensão urbana. Contudo, a existência dessas políticas, além de apresentar foco em diretrizes de mitigação em detrimento da adaptação, não tem sido traduzida em ações concretas nas diferentes escalas de planejamento, resultando em uma centralização excessiva da governança climática no nível federal, sem promover uma inclusão efetiva dos governos estaduais e municipais. Essa centralização obscurece o papel específico que as dimensões urbana e regional deveriam desempenhar dentro do compromisso climático nacional e na combinação de ações integradas de mitigação e adaptação.
No Estado de São Paulo, a abordagem às questões climáticas reflete um cenário semelhante ao observado no âmbito federal. A Política Estadual da Mudança do Clima (lei n. 13.798/2009) e o Fórum Estadual de Mudança do Clima são exemplos de como o estado tem procurado estabelecer uma estrutura para tratar dessa questão. Além disso, a adesão às iniciativas "Race to Zero" e "Race to Resilience" reflete o compromisso de São Paulo com as metas de mitigação e adaptação climática. No entanto, apesar da disponibilidade de instrumentos políticos, a implementação destes enfrenta uma série de desafios. Mais de uma década após a aprovação da Política Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC) em São Paulo, a avaliação do progresso alcançado revela resultados aquém das expectativas, especialmente na redução das emissões de gases de efeito estufa. Este resultado destaca a discrepância entre as metas estabelecidas e os resultados práticos, sublinhando desafios nos setores de energia, resíduos e planejamento.
Dado esse contexto, nota-se um descompasso entre políticas, planos e projetos, no qual urge a necessidade de um chamado à integração de múltiplas escalas e setores, bem como à ação de diferentes entes federativos e atores para desenvolver soluções transformadoras que abordem de forma integrada os nossos grandes desafios em direção a um modelo de desenvolvimento urbano e regional mais resiliente aos desafios atuais e futuros, evitando também a ampliação das desigualdades sociais. Governos locais e regionais precisam articular os planos diretores com os planos de ação climática que integrem a mitigação e a adaptação, envolvendo todos os setores da sociedade e as diversas escalas de atuação e governança.
Para enfrentar esses desafios de maneira eficaz, é fundamental uma abordagem de governança que transcenda as fronteiras municipais, promovendo a cooperação entre os municípios. Trata-se de um modelo de governança que deve permitir a coordenação de esforços, a otimização de recursos e a implementação de políticas públicas integradas para mitigar e adaptar-se aos extremos climáticos.
Refletir sobre a mudança climática e seu impacto nas cidades e regiões é um chamado à ação urgente e coordenada. Pois se trata de um desafio complexo, mas não insuperável, embora nossa janela de ação esteja cada vez mais estreita. Com continuidade na gestão e ações coordenadas, podemos reduzir significativamente seus impactos e construir um futuro mais sustentável e resiliente para as próximas gerações. A hora de agir é agora.
*Angélica Benatti Alvim é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, bolsista produtividade do CNPq, pesquisadora da rede Klimapólis, Cidades, Infraestrutura e Adaptação às Mudanças do Clima (Ciam Clima) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, núcleo SP.
**Pedro Roberto Jacobi é professor da Universidade de São Paulo, pesquisador do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) e do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e presidente do Conselho do Governos Locais pela Sustentabilidade (Iclei) América do Sul.
***Andresa Lêdo Marques é pesquisadora da rede Klimapólis, Cidades, Infraestrutura e Adaptação às Mudanças do Clima (Ciam Clima).
****Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a posição editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires