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Psicodelia Baixo Astral: pesquisadores se unem contra a romantização dos psicodélicos

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E com um discurso nova erista cheio de esvaziamentos e silenciamentos, as pessoas que ousam apontar para esses problemas tendem a receber o rótulo de pessoas difíceis, problemáticas, de energia pesada e infelizes - pixabay
O surgimento de grupos críticos é imprescindível para a ampliação do debate sobre psicodélicos

Existe um movimento de tentativa de pasteurização do cenário psicodélico, principalmente no que tange o uso ritualístico, que tem servido de pano de fundo para inúmeros tipos de violências contra grupos minoritários. É como se os ambientes em que essas substâncias estão presentes estivessem acima do bem e do mal, mas não estão. Tem gente que se surpreende ao adentrar neste universo e encontrar exatamente o que está presente em toda a sociedade: machismo, racismo, LGBTfobia, assédios e outros crimes e preconceitos. E tudo isso vem sendo reproduzido dentro da ciência psicodélica.

E com um discurso nova erista cheio de esvaziamentos e silenciamentos, as pessoas que ousam apontar para esses problemas tendem a receber o rótulo de pessoas difíceis, problemáticas, de energia pesada e infelizes.

Então, para discutir as questões que envolvem o uso dos psicodélicos já partindo da premissa de que essas violências existem, sem o trabalho de precisar ter que prová-las, um grupo parrudo de pesquisadores e pesquisadoras sobre esse e outros temas relacionados ao uso de substâncias se reuniu e criou o Psicodelia Baixo Astral, uma página no Instagram e um site que leva para as pessoas temas espinhosos e polêmicos, mas extremamente necessários de serem discutidos nesse momento do renascimento psicodélico. O grupo discute a ciência psicossocial a partir das reflexões de gênero, classe, raça e território, pois acredita que essas questões são fundamentais nas experiências psicodélicas

O sociólogo transmasculino e doutor em Sociologia pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) Pietro Benedito, que já fez pesquisas sobre o Santo Daime e o renascimento psicodélico no Brasil e atualmente é também redutor de danos pelo Coletivo Livre de São Carlos, explica que o nome é uma forma de rebater os julgamentos. “Queremos trocar esse lugar de desconforto através do deboche, porque as críticas que a gente vai tecendo, vão movendo a gente. Queremos denunciar a transfobia, o racismo, a misoginia e a falta de diálogo com o que os movimentos sociais estão construindo de luta e pensamento. Denunciar que uma transformação que não dialoga com essa construção coletiva maior, e quer resolver tudo desde si mesma, é falha”, afirma. 

Ele debocha sobre a inclusão até a página dois. Quando denunciou transfobia em igrejas ayahuasqueiras, já ouviu discursos como: “Na minha igreja foi uma pessoa trans, ela até chorou emocionada”. 

“Mas como é o dia a dia lá dentro? Até onde vai a inclusão? E todos os outros corpos que estão sofrendo transfobia explícita ou velada? Estamos denunciando essas violências, os apagamentos dessas violências, e a dificuldade que temos de pontuar isso sem nos tornarmos as pessoas raivosas, baixo astral e com os chacras desalinhados.”

Julia Bueno é outra membra do Psicodelia Baixo Astral. Julia é formada em psicologia e coleciona títulos como especialista em psicologia política pela USP (Universidade de São Paulo), mestra em psicologia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e doutoranda em Psicologia também na UFPE, além de pesquisadora no GEMA (Grupo de estudos de gênero e masculinidades). É redutora de danos, psicóloga clínica, poeta e escritora do livro de poesias Amor&Revolta. A pesquisadora aponta para outro propósito da iniciativa, o de democratizar a informação.

“A nossa ideia com a Psicodelia Baixo Astral é também levar o debate científico, popularizando essa linguagem, tornando ela algo acessível, além de fomentar as redes que já existem de denúncias de violência dentro das comunidades ayahuasqueiras, e as redes dos povos indígenas que defendem a ayahuasca. Queremos que a ciência esteja comprometida com a defesa dos Direitos Humanos, dos direitos indígenas, dos direitos dos povos nos seus territórios e com a guerra às drogas. Não dá para a gente pensar uma ciência psicodélica que vai debater a substância, o uso de drogas e o uso terapêutico, sem se comprometer com o debate científico. Não queremos descolar a responsabilidade cultural do debate da ciência”, explica Bueno.

Falando em ciência…

A ciência biomédica tem contribuído para a desmistificação da ação dos psicodélicos no organismo, porém, de quais “organismos” exatamente estamos falando e em quais territórios eles estão inseridos? É indiscutível que os efeitos dessas substâncias mudam conforme a realidade material em que as pessoas estão inseridas e a quais estímulos esses corpos estão suscetíveis. Esse é o campo de observação que as ciências humanas atuam e que tem gerado tensão entre pesquisadores. E é sobre isso também que o Psicodelia Baixo Astral quer chamar a atenção.

Renata Reis Genuíno é psicóloga e pedagoga, mestra em educação, cultura e subjetividade pela UFSCar e redutora de danos pelo Coletivo Livre de São Carlos com atuação voltada às pessoas em situação de rua e pesquisa a intersecção entre práticas de educação popular em saúde em contextos marginalizados pelo estado a partir da ótica da esquizoanálise, um campo pós-estrutural que articula diversos conhecimentos. É com base nesse repertório acadêmico e empírico que Renata traz sua contribuição ao Psicodelia Baixo Astral quando o papo é sobre psicodélicos e redução de danos em território.

Um dos pontos de tensão que a Renata traz é a ética de pensar essas substâncias fora das instituições, dialogando com autoras como Roanna Martins, em ações de RD em que o corpo encontra-se em trincheiras, encruzilhadas, nas ruas, nos mocós e quebradas.

“Como, enquanto pessoas pesquisadoras, nos apresentamos  em cenas de uso rua? O que isso tem de diálogo com a ‘neutralidade’ da ciência? Não é sobre questionar o alcance e a contribuição do campo,   mas tencionar como chega (e se chega) em corpos que já estão marcados pela violência e pela vulnerabilidade da presença (ou ausência) do estado. É redefinir e questionar o que significa a contribuição científica para esse público”, diz Reis.

Diante da exclusão das complexidades e subjetividades de corpos marginalizados na hora de falar sobre psicodélicos, é possível considerar até que ponto os resultados sobre os benefícios dessas substâncias no organismo?

O biólogo Luis Felipe Valêncio é mestre em Psicologia e Saúde pela Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto) com a pesquisa sobre o processo de consentimento e recepção de pessoas em grupos religiosos ayahuasqueiros. Atualmente cursa doutorado em Saúde Coletiva na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) com foco na bioética, ética em pesquisas e processos de saúde-adoecimento-cuidado em contextos ayahuasqueiros.

Valêncio traz a atenção para a ética em pesquisa clínica e bioética e explica que a própria lógica biomédica passa por uma descrição metodológica minuciosa que considera quantas e quais pessoas participaram, qual substância/composto foi administrado e em quais quantidades, como foi a intervenção terapêutica e o contexto do estudo. Porém, o biólogo alerta para as exclusões que podem impactar diretamente o resultado dessas análises. 

“O que estamos falando no Psicodelia Baixo Astral é que fatores raciais, de classe, gênero e sexualidade das pessoas que participam de pesquisas clínicas também importa para a construção e sustentação dos possíveis ganhos terapêuticos. Buscamos lembrar que se a abordagem clínica promove uma cisão da vida para tratar sujeitos universais, ela também pode ajudar a manter e até mesmo produzir novas desigualdades e violências na saúde das populações. Então buscamos educar a nossa atenção coletiva para essas questões, para descrever esses eventos importantes como processos que são, em aberto, e não como algo que pode ser reduzido e solucionado com dois ou três ‘chavões’ de justiça social. Ao final, isso está ligado a um importante debate acadêmico no campo da bioética: se o ‘bio’ diz respeito à vida, num sentido amplo, ou se diz respeito apenas ao campo médico/biomédico”, destaca Valêncio.

O surgimento de grupos críticos é imprescindível para a ampliação do debate sobre psicodélicos, principalmente em um país tão heterogêneo e desigual como o Brasil. Boa parte das pesquisas das ciências biomédicas carrega no seu arsenal argumentativo a possibilidade de expansão dos benefícios dessas substâncias para a população em geral, via SUS (Sistema Único de Saúde). Porém, como fazer isso sem trazer para os estudos membros dessa tal população em geral?

O Psicodelia Baixo Astral vem colocar o dedo na ferida nesse corpo recente que está se formando a partir da possibilidade do uso dos psicodélicos no tratamento, principalmente, de doenças e transtornos mentais em uma sociedade na qual 86% das pessoas sofrem com algum transtorno mental, como a ansiedade e a depressão, segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), onde a renda média per capita é de cerca de R$ 3.000, um pouco mais de dois salários mínimos, onde quase 28% das pessoas vive abaixo da linha da pobreza, ganhando menos de R$ 800 por mês, e onde 55% das pessoas se identificam como pretas e pardas. Então, os psicodélicos estão ajudando a tratar a saúde mental de quem? E não tem nada de baixo astral em falar sobre isso, pelo contrário. Ignorar esses problemas é que desalinha os chacras.

* Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


 

Edição: Nathallia Fonseca