Coluna

A tentativa de golpe na Bolívia e a importância da mobilização popular   

Apoiadores do governo de Luis Arce na Bolívia enfrentam forças armadas durante tentativa de golpe em La Paz em 26 de junho de 2024 - JORGE BERNAL / AFP
A Bolívia deve estar atenta às intervenções externas e instabilidades nos próximos meses

 

 

*Por Giovanna Camily Rossato Gomes, Julia Heloisa Giacomini Faria, Kimberly Barandas, Luana Morais Costa, Luiza Zomignan e Vitor Cristian Maciel Gomes 

  

Em junho de 2024, o então comandante-geral do exército foi destituído do cargo  após uma tentativa de golpe contra o presidente boliviano Luis Arce. O episódio, amplamente repudiado por movimentos sociais, governos e organizações governamentais e não governamentais nacionais e estrangeiras, intensificou a crise política interna vivenciada pelo principal partido do país, o Movimento ao Socialismo (MAS).

A mobilização popular, entretanto, demonstrou o compromisso da população boliviana com a defesa da democracia, ressaltando a importância da união entre os setores progressistas para o enfrentamento dos desafios políticos e sociais que assolam o país.   

Introdução 

Em 26 de junho deste ano, a Bolívia enfrentou uma tentativa de golpe de Estado contra o governo do presidente Luis Arce, do Movimento ao Socialismo - Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS - IPSP). O conflito teve início com declarações do comandante-geral do exército,o general Juan José Zuñiga, contra a candidatura do ex-presidente e fundador do MAS Evo Morales nas eleições de 2025. O general alegou que a candidatura seria uma violação da Constituição e do mandato do povo e, em seguida, mobilizou tanques até a Plaza Murillo, tomando o controle da praça e do Palácio Quemado.  

Morales respondeu, alegando o teor antidemocrático das ameaças, pressionando o governo Arce a desautorizar as falas de Zuñiga e sugerindo, ainda, que uma eventual abstenção do governo neste sentido indicaria  um processo de autogolpe. A tentativa de invadir a Casa Grande Del Pueblo foi impedida por Arce, pela manifestação de repúdio da comunidade internacional e pela mobilização popular. 

Diante das declarações de Morales o atual presidente destituiu Zuñiga e, ao lado de seus ministros, agradeceu ao povo boliviano por barrar o golpe, prometendo punição judicial aos envolvidos. 

A tentativa representa o primeiro grande episódio de ameaça à democracia boliviana desde o golpe de 2019, que interrompeu o governo de Morales e colocou a opositora  Jeanine Áñez no poder. Ela também fortaleceu a crise política interna vivenciada pelo MAS, principal partido do país, e a divergência entre seus dois maiores líderes.  

O golpe de 2019 

A eleição de Evo Morales na Bolívia pelo MAS-IPSP em 2005, no contexto de ascensão de governos progressistas e de esquerda em diversos países sul-americanos, unia, naquele momento, diferentes setores como estudantes, intelectuais, partidos de esquerda e movimentos de trabalhadores, indígenas e camponeses. A vitória de Evo Morales deu-se após os grandes levantes populares pelo fim das políticas econômicas neoliberais, a exemplo da Guerra da Água e da Guerra do Gás, em 2000 e 2003, contra a privatização e a exportação de recursos naturais bolivianos em condições desfavoráveis.

Morales colocou em marcha um novo processo constitucional que culminou na aprovação da Carta Magna de 2009. Esta incluiu o Vivir Bien como novo projeto civilizatório boliviano e reconheceu a plurinacionalidade estatal, assegurando uma “configuração de Estado fundada no respeito às autonomias de vários níveis, incluindo a autonomia indígena originária campesina”.

Naquele momento, Morales enfatizou a nacionalização de setores estratégicos, enfrentando resistência de esferas conservadoras que preferiam políticas mais alinhadas ao mercado. Em seguida, uma nova legislação garantiu direitos à natureza, tendo por horizonte a promoção de um modelo de desenvolvimento mais holístico e ecologicamente equilibrado, outro marco da força da união popular e do movimento camponês e indígena. Apesar dos avanços no projeto de “refundação” do Estado, entretanto, o governo sofreu forte resistência e precisou se conciliar com setores regionais conservadores historicamente privilegiados pelas políticas liberais. 

Durante os três mandatos consecutivos de Morales (2005-2019), diversas políticas e programas sociais foram criados e implementados, como Bono Juancito Pinto (2006),Renta Dignidad (2008), Bono Juana Azurduy (2009). Estes melhoraram a vida de indígenas, estudantes, idosos, crianças e gestantes, e foram fundamentais para o processo de crescimento econômico vivenciado pelo país.

Os índices de educação e de saúde foram incrementados, e foi observada a queda da mortalidade infantil, da pobreza e da miséria.  No entanto, o neoliberalismo persistiu, principalmente nos setores agrário e extrativista. 

Durante o seu terceiro mandato, Morales modificou a constituição para permitir a reeleição presidencial indefinida e, apesar de gerar controvérsias e críticas da oposição, obteve autorização legal para concorrer a um quarto mandato em 2019. As eleições daquele ano, entretanto, estiveram marcadas por acusações de fraude eleitoral.

A oposição, apoiada por organizações internacionais como a OEA, questionou a veracidade dos resultados que deram vitória a Evo Morales no primeiro turno, o que desencadeou  uma grave crise política no país. Os  protestos violentos,  a autoproclamação de Jeanine Áñez como presidente interina, a renúncia de Morales e seu subsequente exílio no México resultaram em divisões profundas na sociedade boliviana. 

O MAS retornou ao poder com a eleição do ex-ministro Luis Arce em 2020, eleito com 55,1% dos votos com a promessa de resgatar o projeto nacional desenvolvimentista e reduzir a pobreza e a desigualdade. O ex-presidente apoiou Arce como candidato do MAS, Arce havia sido Ministro da Economia e Finanças Públicas da Bolívia entre 2006 e 2017, com um breve ao cargo em 2019. Seu período à frente da pasta econômica lhe rendeu reconhecimento pelo denominado “milagre econômico” boliviano.  

Os conflitos internos 

Apesar do retorno triunfal do MAS, a sociedade boliviana permanece profundamente polarizada, com desafios contínuos para a estabilidade democrática. A disputa entre o fundador do MAS, Evo Morales, e o atual presidente, Luis Arce agravou a situação.

Desde o início de seu governo, em 2020, foi estabelecido que Morales não se envolveria diretamente nas decisões do Executivo. No entanto, esperava-se que Arce, mesmo com um posicionamento mais comedido e independente em relação a Morales, se configurasse como sucessor político deste último.

Tal expectativa foi quebrada pelo anúncio de que Evo Morales concorrerá à presidência em 2025. As disputas entre os políticos tornaram-se cada vez mais acirradas após os “arcistas” denunciarem os “evistas” de bloquearem parte da agenda legislativa de Arce em acordos com a oposição. O governo, tendo perdido maioria no Congresso com a divisão do partido, acusa Morales de criar uma crise estrutural, de modo a encurtar o mandato de Arce. 

Em 4 de outubro de 2023, o MAS realizou um congresso em Cochabamba, com o objetivo de escolher seu candidato para as eleições de 2025. Luis Arce não participou do evento, alegando a sub-representação dos movimentos sociais.

A atitude foi interpretada como uma tentativa de minar a conferência, e Morales foi promovido a candidato único. Por conseguinte, o congresso votou pela expulsão de Arce do MAS e alterou o estatuto do partido para proibir a candidatura de membros com menos de 10 anos de filiação, medida que exclui o atual presidente da corrida eleitoral.  

Mas Evo Morales enfrenta obstáculos para se candidatar à presidência em 2025, após o Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia (TCP) revogar a permissão para reeleições indefinidas. A nova decisão impede que o presidente e o vice-presidente exerçam mais de dois mandatos, consecutivos ou não, revertendo a polêmica decisão de 2017.

A mudança foi influenciada por um parecer da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de 2021, que desconsidera a reeleição como um direito humano. Morales, no entanto, busca formas legais para reverter a sentença, alegando perseguição política.  

A crise entre Evo Morales e Luis Arce no MAS representa um embate pelo controle do partido e reflete divergências sobre o futuro da Bolívia. A situação permanece tensa com a tentativa de golpe em junho, tendo Morales acusado Arce de “autogolpe” e ambos trocado farpas na rede social X – antigo Twitter. Nesse cenário, a desavença e a subsequente crise do MAS são grandes fatores de desestabilização político-econômico do país sul-americano, uma vez que podem fortalecer a oposição de direita.  

A resistência popular 

A tentativa de golpe na Bolívia se insere em contexto mais amplo de instabilidade política que permeia diversos países da América Latin, região marcada por histórico de golpes de Estado, eleições turbulentas e processos eleitorais frequentemente questionados.

Enquanto na Bolívia a crise entre Evo Morales e Luis Arce ameaça fragmentar o MAS, na Venezuela a contestação dos resultados eleitorais por parte da oposição liderada por María Corina Machado expôs a fragilidade do governo de Nicolás Maduro, que reagiu com acusações de tentativa de golpe. Esses eventos refletem um padrão preocupante de governança na América Latina, onde disputas internas e alegações de fraudes eleitorais intensificam a polarização e o enfraquecimento das instituições democráticas. 

Vale aqui ressaltar que na Bolívia, diferentemente do golpe de 2019, a condenação ao episódio deste ano veio tanto da mídia quanto de atores internacionais como a OEA e a União Europeia, assim como de políticos da direita, ao contrário de 2019. Também foi possível observar a movimentação violenta do exército e a ausência do questionamento à legitimidade democrática do governo Arce. 

A derrota do governo interino de Jeanine Áñez em 2020, que assumiu após o golpe de 2019, também foi vitória da mobilização popular, que atuou como parte essencial para garantir eleições justas que, por sua vez, resultaram na vitória de Luis Arce.  A união popular contrária à ação do general Zuñiga este ano, por sua vez, colocou a soberania popular novamente em destaque. Reafirmou o poder de resistência e a resiliência do povo boliviano, assim como a sua capacidade de influenciar o curso da política nacional e defender a democracia e os direitos conquistados.  

Todos esses fatos evidenciam o potencial do movimento popular boliviano que, ao longo da história recente do país, tem demonstrado que a união popular pode levar a conquistas significativas. Conforme afirma o ex-vice presidente Álvaro García Linera, apenas a unificação do bloco popular pode avançar por reformas sociais que superem a crise socioeconômica e política do país.

As ideias do MAS, alimentadas pelos princípios do Vivir Bien, devem continuar sendo a base da resistência democrática na Bolívia nos próximos anos, bem como das reivindicações por políticas públicas justas e inclusivas. 

Mas a divergência interna no MAS complica a governabilidade e a implementação de políticas públicas voltadas para a redução das desigualdades sociais e econômicas. Os próximos meses serão decisivos para o futuro do país, e a Bolívia deve estar atenta às intervenções externas e instabilidades. 

  

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho