O preço da carne deve cair em breve nos açougues e supermercados do país. Isso se o Senado aprovar, sem alterações, a proposta de reforma tributária do governo federal sancionada na Câmara em julho, que zerou o imposto sobre o alimento. À primeira vista, a notícia parece positiva: mais gente vai poder ingerir proteína de qualidade pagando menos por isso. Mas especialistas ouvidos por O Joio e O Trigo afirmam que, da maneira como está, a reforma aprofunda desigualdades tributárias, favorece os mais ricos e ainda pode ter um efeito negativo no meio ambiente. Além disso, o valor de outros produtos pode subir para compensar a isenção dada para a carne.
O texto do Executivo tem como objetivo unificar impostos e simplificar a tributação no país com a criação, por exemplo, do Imposto de Valor Agregado (IVA), que substitui uma série de outros encargos. Além disso, ele também criou uma categoria de alimentos chamada de cesta básica nacional, que teve sua alíquota zerada e onde foi incluída a carne.
Atualmente, a alíquota que incide sobre a carne é de 26,5%. No projeto do governo enviado para a Câmara, o imposto seria reduzido para 10,6%, e às vésperas da votação havia consenso de que a proposta do governo seria mantida. Porém, em uma reviravolta durante a sessão, deputados do PL apresentaram um destaque para zerar o imposto sobre a carne, e o texto foi aprovado com 477 votos contra 3.
Como a reforma prevê uma alíquota média que deve ficar em 26,5%, segundo estimativas do governo, cada isenção de imposto de um determinado alimento tem potencial de elevar este valor médio, para que não haja perda na arrecadação. Segundo estimativas do Ministério da Fazenda, a alta pode ficar em torno de 0,53%.
Na prática, porém, a decisão favorece as classes mais ricas. “Em princípio, se fala: ‘ótimo, as pessoas mais pobres vão poder comprar carne com alíquota zero’. Mas qual o problema? Quando vemos o perfil de consumo das famílias, os 10% mais pobres consomem pouca carne. Já os 10% mais ricos gastam muito mais com consumo de carne”, afirma Eduardo Fleury, economista, advogado e doutor em tributação pela Universidade da Flórida. “Ou seja, quando se deixa de arrecadar dinheiro com a isenção de um tributo, na prática, está se gastando dinheiro com alguém. E, neste caso, gasta-se muito mais dinheiro com os 10% mais ricos, que consomem muita carne, do que com os 10% mais pobres.
E isso impacta na distribuição de renda.” Uma alternativa que beneficiaria a população mais pobre sem oferecer benefícios para os ricos, segundo Fleury, seria a manutenção do imposto sobre a carne aliada à adoção de um sistema de cash back direcionado à parcela mais pobre da população. Com esse sistema para as classes mais baixas, o consumidor apresentaria o CPF no momento da compra e receberia o imposto de volta na íntegra. “Ou seja, o imposto seria zerado só para quem não pode pagar”, afirma Fleury.
Esse modelo permite que se faça justiça tributária. É preciso cobrar um valor mais alto [em impostos] de quem pode pagar, e cobrar menos de quem não pode.” Ele destaca ainda que no Brasil já existe um cadastro das famílias mais vulneráveis, o CadÚnico, que é utilizado para o pagamento do Bolsa Família e que poderia ser operacionalizado para o pagamento do cash back. “Existe tecnologia para fazer isso, de forma semelhante à Nota Fiscal Paulista, por exemplo”, afirma.
Pressão do agro e problemas socioambientais
Durante a tramitação da reforma na Câmara, as principais entidades representativas do agronegócio brasileiro se articularam com os deputados ligados ao setor para conseguir zerar o imposto. Desde o início elas se manifestaram contra a proposta original do governo — que previa alíquota de 10,6% sobre a carne. A Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), que reúne sindicatos patronais e gigantes do setor como Marfrig e Masterboi; a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que conta com associados de peso como Cargill, BRF e Seara (marca de propriedade da JBS); e a Associação das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), da qual fazem parte JBS e Minerva Foods, defenderam publicamente a alíquota zero.
Após a aprovação na Câmara, a ABPA chegou a parabenizar os congressistas ligados ao agro. “A ABPA registra os seus os agradecimentos à sensibilidade do presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Pedro Lupion, e de todos os integrantes da FPA, de outras Frentes e dos demais congressistas, o que permitiu a inclusão das proteínas animais na cesta básica isenta”, disse em nota.
Porém, a inclusão da carne na alíquota zero foi motivo de crítica por parte de grupos ambientalistas. “Existe um impacto socioambiental na medida, porque a produção da carne implica em desmatamento e na emissão de metano e outros gases de efeito estufa na atmosfera”, afirma Gabriela Murici Nepomuceno, especialista em políticas públicas do Greenpeace.
Segundo um estudo do Observatório do Clima, no Brasil, a produção de alimentos responde por 73,7% (1,8 bilhão de toneladas) do total de emissões de gases de efeito estufa lançadas na atmosfera. Deste número, 56% estão ligados ao desmatamento, e 34% a emissões do próprio rebanho da pecuária. “A inserção da carne não é nada sustentável. E é preciso lembrar que o destaque apresentado na Câmara para sua inclusão foi articulado pelo agronegócio. Então fica aí a dúvida do custo-benefício dessa medida, e se foi feito pensando na população ou apenas no bolso dos produtores”, diz Nepomuceno.
O fim do imposto sobre a carne também é visto como contraditório do ponto de vista do discurso brasileiro na arena global. “No Brasil, a pecuária está no centro da nossa contribuição à emissão de gases do efeito estufa. Não dá pra sustentar um discurso no cenário internacional, de que queremos liderar a discussão ambiental, e ao mesmo tempo zerar o imposto sobre a carne”, afirma Marcello Baird, coordenador da ACT Promoção da Saúde.
“Acho que haveria um equilíbrio mais benéfico para a sociedade se tivesse sido colocado, por exemplo, apenas o frango na alíquota zero, uma vez que essa é a carne mais consumida pela população de baixa renda.” Além disso, Baird acredita que a reforma foi tímida ao não taxar os ultraprocessados. “A proposta prevê o imposto seletivo apenas sobre refrigerantes, deixando de fora outras bebidas açucaradas como sucos de caixinha e bebidas lácteas adoçadas, cujo consumo está ligado à diabetes e cáries”, afirma. Segundo ele, este imposto poderia inclusive equilibrar a arrecadação que será perdida com o fim do imposto sobre a carne.
O lucro do agro
Apesar de jogar pesado com um forte lobby no Congresso para zerar a alíquota, o agronegócio pode não aumentar as vendas tanto quanto gostaria. “Eles vão vender um pouco mais de carne para classe mais baixa, e um pouquinho também para a classe alta, para quem o preço não tem muita importância. Mas o ganho deles será muito menor do que todo o lobby que estão fazendo”, explica Fleury.
De acordo com o economista, dependendo da faixa de renda, a redução do valor ou o aumento não tem impacto no padrão de consumo. “Na classe mais alta, por exemplo, mesmo aumentar o preço de um produto isso não altera o padrão de consumo”, diz. Com relação à classe baixa, Fleury destaca que, em média, para os 10% mais pobres do Brasil, a alimentação corresponde a 22% do total do consumo, um valor inferior ao gasto com parcelas de pagamento de bens.
“Se o imposto sobre determinados bens fosse reduzido, por exemplo, geraria mais benefício para esta parcela da população do que ao zerar o encargo sobre a carne”, diz. O futuro da alíquota zero para a carne, no entanto, ainda é incerto. O relator da reforma no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), afirmou, em entrevista ao jornal Valor Econômico que ainda não encontrou uma saída viável para a questão. “Eu acho que realmente é um exagero você colocar filé mignon com alíquota zero”, disse o senador. “A não ser que você fosse mais radical, tirasse a picanha, uma série de subprodutos do boi que não estão na faixa de consumo da classe D e E. Mas eu não vejo viabilidade política”, concluiu.
Receba conteúdos exclusivos do Joio de graça no seu email Derrota de Lira e articulações do PL A inclusão da carne na alíquota zero também representou uma derrota para o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ele temia uma alta em outros impostos como consequência da isenção para a carne. Já o presidente Lula, contrariando o Ministério da Fazenda, se pronunciou publicamente em favor da alíquota zero. Curiosamente, a proximidade dos irmãos Joesley e Wesley Batista, que são donos da JBS, com Lula chegou a representar uma ameaça ao imposto zero sobre a carne. Isso porque, segundo reportagem de O Estado de São Paulo, o PL, partido de Jair Bolsonaro, pensou em usar a alíquota de 10,6% para retaliar contra o frigorífico por sua afinidade com o Governo.
“Nós sabemos que a tributação [zero] da carne neste país beneficiaria somente a JBS, somente os amigos do rei que exportam carne e não são taxados na exportação, prejudicando os pequenos e médios frigoríficos no Brasil, prejudicando a pecuária do Brasil, os produtores rurais e os pecuaristas”, disse na tribuna o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS). Posteriormente o ex-presidente Bolsonaro mudou de ideia após conversas com parlamentares da legenda, e a bancada apresentou o destaque que previa a alíquota zero.