Para frear o "suicídio/homicídio planetário", são necessárias ações políticas em escalas distintas
Por Francisco Fonseca* e Lúcio Viana**
Os gravíssimos, em todos os sentidos, acontecimentos climáticos que vêm assolando o Rio Grade do Sul inscrevem-se no cada vez mais presente fenômeno das "emergências climáticas", cujo desfecho contemporâneo remonta ao início das revoluções industriais, agravadas pela atual (a chamada revolução 4.0), uma vez que exaure ao infinito os recursos da biosfera, colocando em risco as inúmeras manifestações da vida e tudo que a suporta: o que envolve ecossistemas complexos e planetários. Documentários, entre muitas outras manifestações culturais, expressam simbolicamente essa incrível – ao mesmo tempo suicida e homicida – destruição permanente, em nome do "Deus Mercado" e do lucro acima da vida. Entre muitos outros, os documentários A Corporação e The New Corporation apresentam as grandes corporações mundiais como dotadas de todas as características de uma pessoa física com sintomas evidentes de psicopatia, tendo em vista tanto seu comportamento similar aos humanos como a relação simbiótica entre pessoas físicas e jurídicas nos EUA.
Embora o fenômeno climático seja global e provocado estruturalmente pelo "capitalismo selvagem", há particularidades nacionais e regionais altamente relevantes, tendo em vista que a ação política pode facilitar ou amenizar esse processo de derrogação da vida na biosfera, com impactos significativos nos biomas e, logo, na vida das pessoas, dos animais e do meio-ambiente como um todo.
No caso brasileiro, os crimes ambientais intencionais – dolosos, portanto – cometidos pelo "governo" Bolsonaro, notadamente o desmatamento como "política de governo", entre infindáveis outras ações anti-ambientais, expressam seus trágicos efeitos que, combinados aos impactos do aquecimento global, potencializam fenômenos supostamente "inexplicáveis", caso do Rio Grande do Sul.
Somente após o início do governo Lula que, ao retomar a agenda socioambiental e reconectar-se novamente com o mundo – o retorno dos fundos ambientais, turbinados, são apenas uma de suas expressões –, a dimensão civilizatória tem voltado à tona, mas o legado deixado pela "boiada que passou" mostra-se cada vez mais presente.
Mas, para além desses macros fatores – aquecimento global, diminuição das sustentabilidade na biosfera, governos com pautas anti-ambientais –, alguns aspectos chamam a atenção para a compreensão da catástrofe sulina, notadamente gaúcha: a persistente pauta anti-ambiental no Congresso Nacional, levada adiante nas Comissões por partidos políticos alinhados ao bolsonarismo, notadamente o PL e o PP (esse último, embora tenha cargos no Governo Lula, é claramente um partido de direita e anti-ambiental). Essa matéria a respeito chama a atenção para a persistência dessa agenda no Congresso (sem contar Assembleias Legislativas e mesmo Câmaras municipais).
Especificamente quanto ao Rio Grande do Sul, o governo de Eduardo Leite, agora em seu segundo mandato, tem sido useiro e vezeiro em desregular, desregulamentar, flexibilizar e afrouxar legislações ambientais, tendo alterado cerca de 500 artigos a respeito, conforme aponta Jeferson Miola (acesse aqui). Igualmente, a prefeitura de Porto Alegre, sob o comando de Sebastião Melo, seguiu no mesmo caminho, a partir das competências municipais.
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Em resumo, catástrofes socioambientais não são tragédias no sentido de algo que ocorreu por um acaso ou sem causas conhecidas. Ao contrário: partidos e políticos de direita e de extrema-direita contribuem celeremente para que os efeitos macros do capitalismo "selvagem", neoliberal, do "Deus Mercado", sejam potencializados ao limite, tornando determinadas regiões, caso do Rio Grande do Sul, verdadeiro laboratório de horrores. Compreender esse processo é essencial para o enfrentamento ao mesmo tempo político, ideológico e em forma de políticas públicas!
Nesse sentido, a partir do seguinte diagnóstico é possível avançar em um conjunto de propostas, isto é, sabe-se o elementar: o planeta terra está no limite de sua sustentabilidade em razão do exaurimento das formas de reprodução da vida. Essa linha limítrofe é resultante do capitalismo sem freios e contrapesos, ancorado em paradigmas de que "tudo é dinheiro", "tudo deve se transformar em dinheiro".
Dessa forma, um conjunto de estruturas relacionadas à produção de bens tangíveis e intangíveis está derrogando a vida no planeta, tais como, entre inúmeras outras: a lógica da produção contínua, exaurindo os recursos ambientais para o desnecessário, o supérfluo; em consequência, a ideologia do consumo desnecessário; a obsolescência programada, que encurta artificial e propositalmente a vida útil dos bens tangíveis, causando consequências drásticas ao meio-ambiente; o uso intensivo de materiais não biodegradáveis (o plástico é apenas um exemplo, embora icônico); a incapacidade de os países centrais do capitalismo pensarem no planeta como "nossa casa comum"; as desigualdades sociais profundas e seus efeitos socioambientais; a desregulação e desregulamentação do Estado, enfraquecendo-o perante as forças do capital e transformando as estruturas políticas em "governos empresariais" em inúmeros países e unidades subnacionais; o entrelaçamento entre o grande capital transnacional e atores políticos tomadores de decisão, a começar por chefes de Estado e dos poderes constituídos; a financeirização das economias, que torna a tudo e a todos "ativos financeiros", cuja lógica especulativa implica a existência de capital fictício em proporções incomparáveis à produção do mundo real.
Para frear esse "suicídio/homicídio planetário", são necessárias ações políticas em escalas de tomada de decisão distintas e em todas as temporalidades: curta, média e longa. A seguir são listadas algumas delas, sem a pretensão de esgotá-las.
Do ponto de visto macro (planetário), o enfrentamento às grandes corporações é essencial, tendo em vista sua atuação perversa em termos sociais e ambientais, no limite da psicopatia (conforme diagnóstico dos dois documentários citados acima, reitere-se). Deve ser feito pelos Estados Nacionais (embora grande parte deles sejam financiados justamente pelas grandes corporações), pela chamada "sociedade civil organizada", pelos movimentos sociais (globais, nacionais e regionais) e pelas instituições multilaterais (muitas das quais comprometidas com as principais potências econômicas, embora haja contradições). Como se observa, a tarefa é hercúlea!
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Nesse cenário, países que não pertencem ao centro do capitalismo, como o Brasil, têm papel fundamental – se unidos a outros países em condições semelhantes – para propor agenda global alternativa. De certa forma, esse papel tem sido cumprido por lideranças mundiais, caso do presidente Lula, entre diversos outros, embora estarão sempre aquém do magnitude dos desafios existentes. De toda forma, mesmo que a longo prazo, trata-se de ação política de primeira grandeza.
Ainda nessa perspectiva, muito mais do que cartas de intenções, a ação política implica vincular países quanto a um conjunto de regras socioambientais a ser fiscalizada por agências da ONU e sobretudo outras que devem ser criadas. Embora politicamente de difícil operacionalização, trata-se de agenda global a ser perseguida. Igualmente, tendo em vista o ocaso das instituições de governança global surgidas do pós-guerra, erige-se a necessidade de nova governança e governabilidade global, algo que a crise socioambiental alça a primeiro plano, mas igualmente de dificílima ação política.
Em relação aos Estados Nacionais, notadamente o Brasil, o "Fundo Amazônia" conecta o capitalismo global à preservação do "pulmão do mundo" e da fantástica diversidade da flora e fauna. Mas preservação sem diminuição dos poluentes implica enorme irracionalidade. Essa equação necessita estar na agenda global.
Especificamente quanto ao caso brasileiro, à luz de seu federalismo, alguns elementos são basilares, caso da coordenação federativa, da vinculação entre recursos, metas e monitoramento de sua consecução. Para tanto, somente com sua inscrição como Política de Estado, e não de governo, será possível amainar a sanha que exaure a qualquer preço o ambiente, as pessoas, os animais e tudo o que se refere à vida. E, para tanto, estruturas e mecanismos regulatórios socialmente controláveis são essenciais.
De forma ainda mais concreta, no caso do Rio Grande do Sul, estado com tradição agrícola, o respeito à natureza em forma de Políticas Públicas como Políticas de Estado são os elementos centrais, tais como os aspectos abaixo analisados (em forma de proposições):
- Restabelecimento (e atualização) das referidas mais de quinhentas legislações ambientais flexibilizados pelos governos Eduardo Leite e Sebastião Melo.
- Manutenção frequente – sempre inscrita como Política de Estado, o que implicará alterações na Constituição do estado e no Plano Diretor da prefeitura – nas comportas, diques e todas as formas de proteção da malha urbana e rural da força das águas.
- A política de drenagem do ambiente urbano, cada vez mais impermeável em razão da especulação imobiliária e da financeirização das terras rural e urbana, necessita ser refeita em perspectiva de longo prazo.
- A política habitacional, sujeita cada vez mais aos interesses das incorporadoras – agentes da especulação imobiliária e financeira – que expulsam os pobres para fundos de vale, encostas, e para as periferias cada vez mais longínquas, necessita de revisão profunda. A conhecidas "cidades dormitório" continuam a se expandir, produzindo "tragédias" sem fim aos pobres, pretos e periféricos, reiterando a ciclo da destruição socioambiental no país.
- A existência de "refugiados" internos (no Rio Grande do Sul quase 6% da população pobre foi atingida e está em situação de refúgio) expressa nova forma mobilidade forçada, com implicações severas a comunidades, famílias e meio-ambiente. Tal fenômeno deverá se agravar celeremente daqui para frente, como estamos observando, sendo imperativo sua reversão.
A lista de proposições é longa, complexa, conhecida e ao mesmo tempo inovadora em razão de novos desafios. Contudo, a reversão dessa situação, que torna o Rio Grande do Sul espécie de laboratório do que está por vir em perspectiva global, necessita de ações simultâneas das diversas esferas de poder. No regime federativo brasileiro, a pactuação União, estados e municípios é central, por diversos motivos, entre os quais as baixas capacidades estatais que grande parte dos estados e municípios demonstram em termos tributários, orçamentários, equipes técnicas e aparatos institucionais.
Portanto, embora temas estruturais – apontados – referentes à dinâmica capitalista, que de desenvolvem num contexto neoliberal, mercadorizador, financeirizado, marcado pela quarta revolução industrial, sejam pauta para ações políticas globais, dos Estados nacionais, de movimentos sociais e de entidades supostamente globais, caso da ONU, entre outras, há enorme espaço de atuação internamente aos países e regiões.
A combinação entre emergência climática global e Estados e regiões que desregulam, desregulamentam e flexibilizam legislações e aparatos de proteção ambiental – como é claramente o caso icônico, tornado laboratório de horrores, do Rio Grande do Sul – leva ao paroxismo o sentido de tragédia vivenciado por pessoas, animais e todo o ecossistema rural e urbano.
A ascensão das extremas direitas ao poder, também em perspectiva global, contribui vigorosamente para os crimes socioambientais. No Brasil, o universo envolto ao bolsonarismo é mais uma de suas expressões, não apenas caricata, mas cujas consequências são sentidas por gerações: as queimadas propositais na Amazônia e no Pantanal; o genocídio dos povos indígenas, assim como do entorno ambiental que milenarmente preservam; o negacionismo científico em diversas dimensões; a brutalidade e a mentira como formas de fazer política. Esses modus operandis derrogam ainda mais a esfera regional e local, amplificando suas vulnerabilidades, inclusive as socioambientais.
Em síntese, embora a assimetria de poder seja colossal, o que está em jogo é o futuro da vida na biosfera e, claro, a própria biosfera. As formas assumidas pelo necrocapitalismo (o caso de Maceió é igualmente emblemático, uma vez que a cidade literalmente é submersa por interesses empresariais), cujas consequências aparecem dia a pós dia, sendo o Rio Grande do Sul um exemplo icônico, podem e devem ser combatidas. Para tanto, a política, a ciência e as políticas públicas precisam andar juntas para defender a vida!
* Professor de ciência política e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na PUC-SP; professor de gestão pública na FGV/Eaesp.
** Professor do Senac-SP.
*** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares