O mundo pode assistir, em Paris, a parte da história de redenção de uma das maiores ginastas de todos os tempos. A estadunidense Simone Biles, que havia abandonado algumas das competições nas Olimpíadas de 2020 em Tóquio para tratar sua saúde mental, voltou em 2024 em todo o seu esplendor. Recebeu quatro medalhas, três delas de ouro. E protagonizou uma das cenas mais icônicas dos jogos, durante a vitória de Rebeca Andrade na final do solo. Ao subir no segundo degrau do pódio – o primeiro da ginástica com três mulheres negras em Olimpíadas –, prestou uma bela reverência à brasileira vencedora do ouro, junto de sua conterrânea Jordan Chiles. Ao final, esta última perdeu sua medalha de bronze para a atleta romena Ana Barbosu, após pedido de revisão.
Para falar sobre esse e outros momentos simbólicos dos Jogos Olímpicos de Paris, o programa Outras Palavras TV recebeu um convidado ilustre: o psicanalista e professor da USP Christian Dunker. Sua entrevista nos ajuda a compreender o que há de revelador – tanto de nossa alma quanto dos tempos atuais – em um evento esportivo acompanhado por milhões de pessoas mundo afora. Dunker começa refletindo sobre a lição dada por Simone Biles: a possibilidade de dizer não.
Ele analisa: “Foi importante pelo fato de ela poder ter se respeitado, naquele momento, contrariando uma série de expectativas, inclusive econômicas, do país que ela representava. Mas também por esse ‘não’ não significar uma recusa, mas uma preparação. Às vezes, para poder aceitar e ir em frente, você precisa ter essa sensação de que não está obrigado a fazer”. Esse capítulo foi, como observamos hoje, parte da transformação geral que Simone pode dar em sua vida. Dunker completa: “Inclusive, a deferência que ela faz a Rebeca é parte disso. Ou seja, parte de que cada qual deve fazer o seu melhor inclui reconhecer aqueles que naquele dia estavam melhores”.
Houve ainda outras cenas marcantes durante a ginástica artística, em especial no time brasileiro. As cinco ginastas (Flávia Saraiva, Jade Barbosa, Júlia Soares, Lorrane Oliveira, além da própria Rebeca) receberam uma medalha de bronze muito celebrada na competição por equipes. Mas seu companheirismo foi além: era visível o apoio mútuo que ofereciam umas às outras. Essas cenas mostram que é possível, no esporte, ir além da ultracompetitividade. A solidariedade também desponta.
O papel do incerto
Dunker chama atenção para outro fator contido nas comemorações vibrantes entre as atletas: a percepção da contingência, o imprevisto, o incerto. “O discurso da meritocracia acabou excluindo a contingência”, reflete o psicanalista. “Para esse discurso, se você for super mega duper, você vai ganhar, porque tudo que aconteceu de sucesso na sua vida está referido a pequenos atos que você tomou. É falso. É uma contingência que faz com que, se a atleta fizer o mesmo salto cem vezes, em parte delas vai dar certo, em outras, errado.”
O surfe é outro esporte que ajuda a pensar sobre como a vida está subordinada ao inesperado. O atleta Gabriel Medina, favorito para subir no topo do pódio, não conseguiu passar para a final porque, durante 15 minutos de sua prova, não houve onda para ser surfada. Segundo Dunker, “Pelas próprias condições do esporte, ele coloca esse elemento: a contingência. Ela pode ser vista como uma sensação de ‘fui escolhido pelos deuses’ ou como uma grande lição de humildade. Por que veio aquela onda? Diminui o tamanho do ego, aumenta o tamanho da onda. E a lição fica para todo mundo, porque todos que fazem surfe a sério sabem que essa é parte da beleza e da tristeza daquele dia”.
Competição, masculinidade e violência
Ainda assim, o que há de mais cruel e competitivo também desponta em um evento como as Olimpíadas. A pressão por ser um vencedor apesar de tudo. “Depois de um certo nível, entre atletas de alto desempenho, o que acontece é um medo de não ganhar, não mais o desejo de vencer.” Dunker prossegue: “Você entra numa outra gramática que, no fundo, reflete muito das nossas conflitivas sociais”, de nunca se considerar suficiente, de tratar questões de saúde como violência.
Aí entra também a questão do cuidado com a saúde mental dos atletas. Em contraste com a atitude de Simone Biles, de se retirar para cuidar de si, uma frase recente de um jogador de futebol mostra outro lado da moeda. Em entrevista à revista Placar, Endrick afirmou que “meus psicólogos são Deus e minha família”. Dunker lamenta essa visão, que considera antiga e que vê saídas para problemas emocionais ou na medicalização ou na moralização. Entre os homens, em especial, há uma visão de que vulnerabilidades são fraquezas.
“Isso termina em violência”, alerta Dunker, “porque se a relação é de força ou fraqueza, de autodomínio e de controle, eu vou agir pelos meios da agressividade e da destrutividade. É assim que o pensamento moral lida com as coisas”. É possível concluir que daí também parte a violência destinada aos perdedores. O que também levanta a questão do que vem depois de vencer, que, segundo Dunker, é o que torna essa condição de herói trágica. “No fundo, o meritocrático ególatra percebe que ele nunca tem história. Só vale a última conquista.”
SUS contra a “saúde mental” neoliberal
Na parte final do programa, um desvio dos esportes olímpicos. A hoje tão midiática saúde mental será a saída para o mal estar da competitividade neoliberal? “Primeiro, a gente tem que olhar para o neoliberalismo como um agente etiológico. A forma com que a gente trabalha e consome produz sintomas”, alerta Dunker. E, na etapa atual, de sobreposição de crises demográficas, políticas e institucionais, o sistema encontrou um bom jeito de funcionar.
Nas palavras do psicanalista: “O capitalismo descobriu que aumentar o sofrimento das pessoas faz com que elas trabalhem mais. Quando elas vão virando bagaço, são substituídas por outras”. E, depois, conseguiu descobrir como extrair riqueza do sofrimento que ele mesmo produz: com a medicalização. “É um pouco como a Monsanto e a Bayer: cria substâncias que produzem o câncer e depois vende remédios para a cura”.
“Um antídoto para isso é o SUS”, defende Dunker, apontando para as diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Ele lista as três: “a saúde mental precisa de território, nada de ações globais. Tem que ir lá na empresa, na escola, na família”. Em segundo lugar, a saúde mental precisa ser tratada em rede: “não é pela individualização, pelo especialista, pela atitude do consumidor”. E, em terceiro, as práticas de cuidado interpessoal.
“A sua prática em saúde mental está envolvendo cuidado, está sendo feita em rede, está ligada ao território, ou você está comprando algum enlatado para moldar sua subjetividade em uma nova disciplina moral?”, questiona o entrevistado.