Coluna

O neofascismo dá as caras e a esquerda precisa se reencontrar para enfrentá-lo

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Nomes da extrema direita: Javier Milei, Eduardo Bolsonaro e José Antonio Kast - Reprodução
A luta é longa, mas temos a tarefa inadiável de vencer

"Luchar, vencer, caerse, levantarse, luchar… hasta que se acabe la vida"

Álvaro García Linera

 

Por Delana Corazza*

 

“Derrotamos o Bolsonaro, mas não o bolsonarismo”. Essa frase tem ecoado desde final de 2022, quando, passada a euforia das eleições por conta da vitória de Lula contra o ex-presidente neofascista, tivemos que lidar com a realidade de que vencer o pleito presidencial era apenas um respiro para seguirmos a passos ainda lentos na luta contra o neofascismo no Brasil. A vitória institucional que colocou o país na segunda onda progressista latino-americana tem sua importância, mas aponta inúmeros desafios, dado que para alcançar a vitória foi necessário uma frente ampla que trouxe ainda mais limites à construção de um projeto popular. A tarefa é mais profunda: a construção de um projeto comum latino-americano com base social ampla e forte que não seja só a resposta desesperada contra os ataques da extrema direita. A questão central é: temos ao menos um projeto?

Esse debate tem que estar aliado a um olhar cuidadoso sobre a realidade da América Latina, tanto para a situação da classe trabalhadora e sua situação material concreta, seus desejos do espírito e do estômago, quanto para compreender quais as estratégias neofascistas de vincular parte desta classe para um projeto de morte em que ela é a principal vítima.

Não à toa, o mais novo dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O avanço do neofascismo e os desafios da esquerda na América Latina, busca olhar os caminhos percorridos pela extrema direita no continente e compreender o papel das organizações populares, movimentos e partidos políticos em derrotar o neofascismo para além do âmbito eleitoral. As ações dos movimentos organizados, com seus valores que se contrapõem à ideologia neoliberal, como solidariedade e sentido de comunidade, e ações governamentais que priorizem o fortalecimento de direitos, assim como políticas que visem o bem estar de nossos povos, são fundamentais para essa disputa e devem caminhar de mãos dadas com uma estratégia anticapitalista.

No Brasil, por exemplo, décadas de neoliberalismo aprofundaram a situação de precariedade da população, com desemprego, insegurança e violência, sem ter levado a uma possível reação de forma massiva dos “sobrantes” contra essa situação de extrema precariedade. Isso se dá também por conta de nossas fragilidades. Os avanços jurídicos e institucionais, conquistados pela classe trabalhadora organizada, ainda que fundamentais, não foram traduzidos à realidade de forma segura para a massa de trabalhadores, para que novas lutas fossem travadas a partir de demandas estruturais. Dentro das organizações que lutaram por direitos, assim como partidos políticos de esquerda que conseguiram pleitos municipais, estaduais e federais, a possibilidade de uma ruptura radical com o sistema vigente, com vistas à superação do capitalismo como estratégia de luta, foi sendo substituída por um discurso e uma prática fortemente ligada à garantia de direitos e reivindicações a partir dos marcos legais possíveis e conjunturais. Nesse sentido, não considerar do ponto de vista estratégico que a luta, mais do que por direitos, é anticapitalista, foi fatal para a construção de uma força popular que avançasse para um aprofundamento radical das reivindicações. Mais uma vez, a pergunta que deve ecoar entre nós é: qual o nosso projeto?

Olhar para nossas fragilidades e entender porque isso aconteceu não significa desconsiderar a correlação de forças e o papel do nosso inimigo, que foi se configurando e se tornando cada vez mais atraente. Em uma primeira fase do neoliberalismo em nossas terras, a construção ideológica do Estado inoperante, ineficaz e corrupto chegou à classe trabalhadora, que viu seus direitos serem arrancados sem ter demonstrado muita comoção. Em um mar de miséria, o capitalismo buscou por meio de agências multilaterais, como o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), “salvar” os pobres dos países subdesenvolvidos por financiamento de ONGs que, além de deixar nebuloso e fragilizar o papel do Estado, geraram um processo de desarticulação da classe trabalhadora. Para que lutar e contra quem?

A exploração no mundo do trabalho pareceu difusa, os coletivos foram se dissipando e se enfraquecendo e a responsabilidade individual pelo próprio fracasso ou sucesso se tornou a ideia motor de um povo que caminha ao abismo. O neofascismo consolidou as ideias neoliberais e encontrou nas igrejas evangélicas e no fundamentalismo religioso um espaço concreto e cotidiano da classe mais empobrecida para fomentar seus ideais anti-estado, anti-qualquer coisa pública e por uma identidade trabalhadora sem o elemento classista, vinculada a ideia falaciosa do “cidadão do bem”, que tem a capacidade de, longe dos pecados e pelo sacrifício muitas vezes sobre-humano, prosperar.

Qualquer avanço do campo progressista foi atacado por diversas frentes. No cotidiano da classe, por exemplo, os discursos fundamentalistas colocaram como “demoníaco” qualquer pauta pela igualdade de gênero e garantias de direitos à população LGBTQIA+; ao mesmo tempo, uma elite cada vez mais anti-racional questiona a todo momento avanços científicos já consolidados, inclusive relacionados às pautas ambientais. O continente também sofreu novas formas de golpes contra governos progressistas que, ainda com os limites impostos do ponto de vista institucional, conseguiram avançar na garantia de direitos básicos à classe trabalhadora.

Esses processos foram dinamizados pelos avanços tecnológicos que unificaram a direita, mobilizando corações e mentes de nossa classe. As redes sociais se tornaram o grande espaço de diálogo com os trabalhadores na construção de um senso comum balizado em discursos de ódio e disseminação de fakenews. Fruto de muito financiamento, centralização e estratégias de convencimento a partir de estudos empíricos - seguimos todos sendo laboratório da extrema direita -, as redes sociais construíram uma coesão entre as direitas para além das fronteiras nacionais.

É a partir dessas ferramentas que o neofascismo tem criado perspectiva de futuro aos milhões de sobrantes no Brasil - ainda que ilusórias. São as igrejas evangélicas, hegemonizadas por discursos conservadores, que acolhem e criam espaços de comunidade para os mais empobrecidos; o crime organizado tem sido apresentado muitas vezes como a única possibilidade de ascensão econômica do jovem negro e periférico; o empreendedorismo, mediado por aplicativos, constrói a visão de que “sem patrão”, ainda que sem direitos, o trabalhador pode trabalhar até a morte para conquistar seus objetivos materiais de curtíssimo prazo, com a fantasia de que estes objetivos podem ser estendidos até o infinito.

Essas respostas e ataques não estão circunscritos a um pequeno círculo. As mulheres trans estão sendo assassinadas na Argentina, o processo de uberização está em toda a América Latina, o fundamentalismo religioso chegou nas igrejas de Cuba, o negacionismo científico também está no Peru, a democracia venezuelana é constantemente ameaçada, o crime organizado e as políticas de segurança pública têm sido centrais no Equador, e assim por diante. Não é possível pensarmos em avanço contra essas pautas sem uma articulação latino-americana que, ao conceber as especificidades de cada país, progrida para um futuro comum por meio de organização popular e conquistas concretas para o povo. É fundamental nos perguntarmos qual caminho que estamos construindo para mudanças estruturais e ao lado de quem. Diante das distopias das direitas que alimentam paixões tristes em nosso povo, como medo, terror, ódio, mentira e resignação, como construir novos horizontes criativos de igualdade e fraternidade, enterrando a ideia de que o capitalismo é indestrutível? Luchar, vencer, caerse, levantarse… nos parece imperativo no continente latino-americano e só será possível se construído no plural. Dialetizar o campo teórico e a realidade concreta dos trabalhadores e trabalhadoras nos territórios do povo, a partir da criatividade e da construção coletiva de novas utopias, é tarefa urgente e cotidiana. A luta é longa, mas temos a tarefa inadiável de vencer.

*Delana Corazza é formada em Ciências Sociais (PUC-SP), mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP) e doutoranda em Geografia (UNESP) e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um artigo de opinião e não expressa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho