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'O grande esporte brasileiro é a exclusão', diz Karim Aïounz

Diretor cearense está nos cinemas com Motel Destino, um thriller tomado pela luz e pelo tórrido calor do Nordeste

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Com Motel Destino, Karim Aïounz volta a filmar em sua terra natal, o Ceará, 12 anos após o último registro no nordeste brasileiro. - Maria Lobo/ Divulgação
A grande marca da sociedade brasileira, politicamente falando, é excluir o outro

O cinema brasileiro vive um ano de "retomada", segundo o diretor Karim Aïounz. Para além dos bons números registrados no começo de 2024, quando produções brasileiras tiveram um público de 3 milhões de espectadores (contra 114 mil no mesmo período de 2023) e uma receita de R$ 59 milhões (80% da receita durante todo o ano passado), a presença constante em grandes festivais começa a recolocar o audiovisual brasileiro no cenário mundial.

No último mês de agosto, Aïounz estreou nos cinemas brasileiros seu filme Motel Destino. Antes mesmo da estreia nacional o thriller teve recepção calorosa no prestigiado Festival de Cannes, na França, onde concorreu ao principal prêmio do evento, a Palma de Ouro. Segundo o diretor, há interesse pelas histórias brasileiras, mas ainda há grande desconhecimento sobre o que, de fato, caracteriza a cinematografia do país.

"Era muito triste você ir para os grandes festivais e para os distribuidores, e de repente esse distribuidor dizer: 'cara, é muito difícil trazer gente para ver o cinema brasileiro, porque as pessoas não sabem o que é'", explica Aïounz. 

"Você vai ver um filme argentino, você sabe o que é, porque ele tem uma perenidade. Você vai ver um italiano…é igual comida. Você vai para um restaurante italiano, você sabe o que você vai comer", completa. 

Aïounz explica que a onda que levou uma importante safra de filmes nacionais a grandes prêmios em festivais de extrema relevância em todo o mundo, nos anos de 2018 e 2019, foi gerada por diversas políticas públicas de incentivo ao audiovisual, encerradas com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. 

"Foram seis anos de uma espécie de trevas que a gente viveu no Brasil, desde o golpe", explica. "Eu acho que o cinema sempre tem um tempo onde ele é feito, onde ele existe, que é geralmente de dois a quatro anos. É muito interessante você entender que existiu um momento muito importante, que foi 2018, 2019. [Depois disso] você vai olhando como o cinema brasileiro vai ocupando espaço no mundo, e não estou falando de mercado interno, nem de consumo do cinema no Brasil, ele vai sumindo", aponta o diretor.

"Claro que, nesse período, tem a pandemia, tem uma série de elementos que um pouco são espécie de cortina de fumaça disso, mas não é a pandemia que fez isso. O fato é que houve uma decisão política de se interromper um processo em ascensão, a gente estava em altitude de cruzeiro. De repente, ele teve que aterrissar para subir de novo agora". 

Volta pra casa

Motel Destino conta a história de Heraldo, um jovem cearense que precisa fugir de uma quadrilha local e se refugia em um motel de beira de estrada. Lá encontra o casal Dayana e Elias, este último proprietário do imóvel, em um enredo que vai colocar à prova os limites físicos e emocionais do trio. 

O filme marca o retorno de Aïounz ao Ceará, sua terra natal, após anos dedicados a filmar histórias pelo mundo e em outras localidades brasileiras. Os incentivos financeiros para o projeto foram aprovados entre os anos de 2016 e 2017. Mas após a eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018, o diretor afirma que o país sofreu uma "vilanização" de seu audiovisual. 

"O que aconteceu nesse filme é que ele, de fato, documenta não só a volta para casa em si, de filmar no Ceará, que é algo que eu não fazia havia 12 anos, mas a possibilidade de filmar no Brasil de novo", diz. "Acho que é importante a gente falar disso. Para muita gente, não só eu, o que aconteceu nos últimos seis anos no Brasil foi uma espécie de vilanização do audiovisual e de qualquer produção cultural que fosse um pouco mais libertária". 

O filme de Aïounz, captado em película e com saturação alta, traz ao espectador as luzes do Ceará, o clima tórrido do litoral e, como marca de sua cinematografia, o foco nos personagens e suas histórias. Para o diretor, sua escolha por filmar, e como filmar, diz mais sobre o país do que sobre si mesmo.

"Eu não sei se diz sobre mim só, acho que também, mas eu acho que diz sobre um país, sobre uma cultura e, principalmente, sobre o grande esporte nacional brasileiro, que é a exclusão. Eu acho que a dominação colonial portuguesa, a maneira como o país foi ocupado no litoral, é uma marca grande da sociedade brasileira, politicamente falando, que é excluir o outro", conclui.

Confira abaixo alguns trechos da entrevista (no vídeo acima, você pode acompanhar a conversa na íntegra): 

Brasil de Fato: Karim, você acabou de lançar Motel Destino, um thriller vigoroso, cheio de cores, tensões dos mais variados tipos. Você disse há um tempo atrás que não via a hora de voltar a filmar no Ceará de novo. Como essa volta para casa influenciou o teu filme? 

Karim Aïounz: Eu acho que [influenciou] demais, cara. Mas acho que foram algumas coisas. A sensação de voltar para casa depois de muito tempo sem, de fato, poder voltar para casa. O que aconteceu nesse filme é que ele, de fato, documenta não só a volta para casa em si, de filmar no Ceará, que é algo que eu não fazia há 12 anos, mas a possibilidade de filmar no Brasil de novo. 

Acho que é importante a gente falar disso. Para muita gente, não só eu, o que aconteceu nos últimos seis anos no Brasil – claro que isso foi catalisado e piorado pela pandemia – foi uma espécie de vilanização do audiovisual e de qualquer produção cultural que fosse um pouco mais libertária, digamos assim.

Eu não achei que eu fosse voltar a filmar esse projeto, como eu falei algumas vezes. É um projeto que foi financiado lá atrás, mas que eu tinha desistido dele porque que o contrato que a gente assinou durante a gestão onde ele foi agraciado, a gente não conseguiu receber o que nos era devido. 

Então, foi um alívio muito grande poder voltar ao Brasil, poder fazer um cinema que é absolutamente brasileiro, poder filmar de novo no Ceará e ainda mais filmar em uma região muito próxima de onde eu passava minhas férias. 

Enfim, são várias coisas que trazem para o filme um caráter um tanto explosivo, um tanto inflamável. Acho que o filme tem isso, algo que é muito vital, e que eu não imaginava que pudesse acontecer, é que ele também documenta involuntariamente um momento na história do cinema brasileiro, da cultura brasileira, que é um momento de retomada.

Foram seis anos de uma espécie de trevas que a gente viveu no Brasil, desde o golpe contra a presidenta Dilma [Rousseff] até agora. E eu acho que o filme recupera isso. Ele tem uma alegria de existir, de poder, que está em cada fotograma do filme, independente da história. E eu acho que ele é um filme muito sanguíneo, muito cheio de vitalidade nesse sentido. 

Você comentou que o projeto do filme saiu um pouco antes da pandemia, 2016, 2017 e seria filmado nesse período, mas para além da pandemia, tivemos todas as dificuldades do cinema brasileiro. E ele é filmado, quase em sua totalidade, dentro de um motel, passa essa ideia de enclausuramento. Como foi retratar esse momento histórico que vivemos nos últimos anos? 

É engraçado como um filme é tão produto do seu tempo, mesmo que a gente não planeje. É maior do que você. Você faz uma relação muito interessante quando fala disso, sobre a qual eu nunca tinha pensado, mas, na verdade, ele é um filme que fala muito de isolamento. Na hora que esse menino entra nesse motel, ele fica isolado do mundo, ele não pode sair se não ele vai ser morto, ele vai ser preso. 

É interessante, como eu te falei antes, eu não imaginava que era um filme tão colorido como ele é. Mas ao mesmo tempo, quando eu chego no Ceará, e que eu vejo qual é a luz do Ceará, e que eu lembro qual é a luz do Ceará, e que eu lembro que é um momento de exuberância na nossa vida, na história brasileira, essas cores vão para o filme.

E é engraçado que a escolha do motel tinha se dado lá atrás, e durante o roteiro tinha muitas vezes que ele saía do motel. Durante a montagem a gente entendeu que era importante que ele ficasse enclausurado. Então, é muito interessante essa comparação que também faz parte do filme, da história do filme, desse personagem que fica ali trancado, porque sair é perigoso, entendeu? 

O motel é muito interessante para isso, porque é um planeta motel, quando você entra ali – acho que uma das marcas do motel, especificamente como a gente usa o motel no Brasil, que é para encontro amoroso – é que ele é um lugar de fantasia, ele é um lugar de perigo, porque você pode fazer tudo naquele quarto, que nunca ninguém vai saber. 

Ele é um lugar de aventura, ele é um lugar de separação, ele é um lugar de encontro e ele é um lugar de fantasia, antes de qualquer coisa. Então, foi muito interessante como esse lugar, que é um lugar onde o personagem do Heraldo fica preso, sem poder sair, praticamente vai se tornando uma espécie de fantasia dele também. 

Há uma ideia de que ele vire uma série? E, aproveitando, esse também deve ser só o primeiro de uma trilogia de filmes sobre o mesmo tema, é isso mesmo? 

É uma ideia muito recente. Quando eu terminei de montar o filme, que a gente foi selecionado para Cannes, eu me dei conta do quão rico era esse lugar. A gente vai fazendo as coisas e a gente não tem uma reflexão sobre elas imediatamente, mas depois as fichas caem, como se diz. E eu acho que o motel é um espaço muito interessante sobre o qual me interessaria, sim, de fazer uma série ali dentro e acho que é bonito quando você tem uma arena. 

Acho que a gente podia ter uma temporada que é de um gênero, outra temporada de outro gênero, é uma ideia que me veio muito forte. E uma vontade de estar filmando dentro do motel. E a outra coisa que foi importante sobre essa coisa da trilogia, é que eu senti que tem muitos personagens que estão no filme e merecem desdobramento. 

A gente fica curioso sobre o que aconteceu com a Bambina, o que aconteceu com Rafael, que era o capanga dela, o que aconteceu com o Moco depois que ele foi despedido. Ou quem era a Bambina, de onde ela vinha? Então, eu acho que tem muitas situações ali que são muito ricas pra gente desenvolver uma trilogia, que é o que eu queria muito fazer. Acho que aí daria conta da gente falar de um universo que está começando no Motel Destino, mas que tem várias coisas ali fora que é legal ver.

Falando sobre o teu cinema, Karim, acho que você tem um foco muito grande nos personagens. Sempre tem ali grandes retratos, em vários momentos a câmera está fechada nos rostos, nos corpos. Você trata com muito cuidado os personagens. E em vários momentos dos teus filmes os personagens estão em fuga, ou estão buscando algo, sempre usam a estrada, o caminho, de alguma maneira. Diz muito sobre você essas escolhas? 

Eu não sei se diz sobre mim só, acho que também, mas eu acho que diz sobre um país, sobre uma cultura e, principalmente, sobre o grande esporte nacional brasileiro, que é a exclusão. Eu acho que a dominação colonial portuguesa, a maneira como o país foi ocupado no litoral, é uma marca grande da sociedade brasileira, politicamente falando, que é excluir o outro.

Acho que é uma maluquice…maluquice não, maluquice é outra coisa, é um absurdo, por exemplo, a gente pensar que o Brasil é um país que teve o maior número de escravizados do mundo e mesmo assim se vê como um país branco. Quando você vai ver a novela, a imagem que se tem do Brasil é um crime, não é nem um absurdo, é outra coisa, tem um outro nome isso. 

Então, eu acho que quando eu falo disso, é um pouco com identificação. Talvez por ser gay, talvez por ter vindo de um lugar que estava na margem desde o começo, que é o Nordeste, eu me interesso por esse Brasil, que eu acho que é um Brasil que tem que ser visível, que tem que existir.

Quando você pensa que o grande ícone da moda brasileira é uma modelo alemã, gaúcha. Cara, é uma maluquice isso… o que está acontecendo aqui é que a gente não está olhando pra gente mesmo. Então, eu acho que eu tenho um carinho gigante por esses personagens, que são personagens que estão nas sombras, que estão nas margens. 

E, para mim, uma das grandes funções do que eu faço, politicamente falando, humanamente falando, emocionalmente falando, é que esses personagens possam vir para o lugar que é deles por direito, que é na luz, que é no centro. Então, acho que tem um carinho gigante, uma identificação com esses personagens. 

Eu me lembro de quando eu fiz o Céu de Suely, era muito chocante o quanto não havia personagens femininos. Isso há 20 anos. As mulheres não são minoria e ainda tem isso. Como que não havia um personagem feminino no cinema brasileiro, ou eram tão poucas as protagonistas femininas. A coisa que mais me interessa é isso, é quase como uma omissão que eu acho que a gente tem quando está fazendo uma arte tão potente, tão popular, como o cinema, que a gente, de fato, possa desenhar um mundo que seja mais justo mesmo.

Em uma conversa com Kleber Mendonça, agora já não tão recente, eu perguntei a ele como, apesar dos últimos quatro anos, quando o Brasil desprezou a cultura, o cinema brasileiro foi extremamente reconhecido fora do país, com premiações importantes como A Vida Invisível, em Cannes. Ele comentou comigo que vocês estavam colhendo frutos de algo que foi plantado muito antes, com os fomentos da cultura brasileira. É isso mesmo? 

Completamente isso. Eu acho que o cinema ele sempre tem um tempo onde ele é feito, onde ele existe, que é geralmente de dois a quatro anos. Então, é muito interessante você entender que existiu um momento muito importante, que foi 2018, 2019. Aí, a partir de 2019 – que A Vida Invisível foi premiado junto com Bacurau – você vai olhando como o cinema brasileiro vai ocupando espaço no mundo, e não estou falando de mercado interno, nem de consumo do cinema no Brasil, ele vai sumindo.

Claro que, nesse período, tem a pandemia, tem uma série de elementos que um pouco são espécie de cortina de fumaça disso, mas não é a pandemia que fez isso. O fato é que houve uma decisão política de se interromper um processo em ascensão, a gente estava em altitude de cruzeiro. De repente, ele teve que aterrissar para subir de novo agora. Então, eu acho que houve esse momento de exuberância, sim, mas esse momento foi interrompido.

Era muito triste você ir para os grandes festivais e para os distribuidores – que é o que é complicado aqui, não é só os festivais – e de repente esse distribuidor dizer: "cara, é muito difícil trazer gente para ver o cinema brasileiro, porque as pessoas não sabem o que é". Você vai ver um filme argentino, você sabe o que é, porque ele tem uma perenidade. Você vai ver um italiano…é igual comida. Você vai para um restaurante italiano, você sabe o que você vai comer. 

Você vai para um restaurante brasileiro você vai comer o quê? Porque quase não tem restaurante brasileiro fora do Brasil. E ele não existe enquanto não tiver volume…não adianta ter um, tem que ter muito. Eu acho que um ajuda o outro. O que aconteceu é que a gente começou a entender o que era, existia, de fato, um segredo, porque eu acho que uma das coisas que a gente tem sobre o Brasil é que todo mundo é muito curioso sobre o que é esse país. Acho que tem uma coisa já na largada, que é muito interessante, uma simpatia gigante pela marca Brasil.

Mas é difícil quando essa marca aparece, some, aparece, some. Tá bom, mas a gente sabe que não vai ficar bom muito tempo, acho que é um elemento muito clássico dessas políticas de não continuidade que a gente tem especificamente na América Latina. Não é à toa que o Motel Destino só existe agora, é muito simples. O Bacurau é um filme que foi financiado antes do golpe. 

É muito importante a gente lembrar que as grandes cinematografias não surgem espontaneamente, é investimento. Quando você vê a cinematografia coreana, são investimentos de anos em formação, universidades, em rede de distribuição, formação de mão de obra, da celebração de que o cinema existe. 

Seria um sonho, que eu não sei se vou estar vivo para ver, mas que a gente tenha uma perenidade, porque a potência simbólica do país é muito grande, tem uma mitologia, uma mítica, são muitas histórias incríveis e originais. Sem querer fazer propaganda do meu próprio filme, mas o que tem de co-produtor internacional no Motel Destino... não é porque eles são legais, é porque eles falam assim: "o que é isso? O que é esse lugar tão interessante que é um motel". 

Não é porque eu sou legal, é porque eu acho que existe, de fato, um interesse gigante, que a gente tem poder de dar continuidade a ele. Agora, nenhum desses produtores teria entrado se eu não tivesse uma participação grande no Brasil. Então, eu acho que é muito importante a gente pensar nessas questões para poder continuar vivo. 

Edição: Thalita Pires