Coluna

Transição energética: caminhos e descaminhos

As populações estão cada vez mais sendo afetadas diretamente pela instalação de fazendas solares e parques eólicos nas proximidades dos seus territórios - Adriana Galvão/Acervo AS-PTA
Uma política de transição não faz sentido sem pesar os diferentes setores econômicos

As populações urbanas são cada vez mais atingidas por eventos climáticos extremos como inundações, deslizamentos de terras ou, ao contrário, cortes de água e eletricidade em função de secas que afetam as bacias hidrográficas que abastecem as cidades. Certamente as cidades atingidas seriam beneficiadas caso se conseguisse, de fato, reduzir significativamente as emissões de gases de efeito estufa, os GEE. Mas as populações estão cada vez mais sendo afetadas diretamente pela extração de petróleo, mineração de carvão, lítio e metais ferrosos e não ferrosos e mesmo a instalação de fazendas solares e parques eólicos nas proximidades dos seus territórios. A transição energética pode, desse modo, assumir sobretudo a forma de uma grande injustiça ambiental.

Então, começamos por nos perguntar por que temos que fazer uma transição energética. Em termos globais, a resposta é simples. A economia mundial é fóssil-dependente, ou seja, suas principais fontes de energias são fósseis – carvão, petróleo e gás natural – e são eles os grandes emissores de GEE: o dióxido de carbono, o metano, o óxido nitroso e outros gases fluorados. Reduzir drasticamente as emissões de GEE para deter o acúmulo desses gases na estratosfera que originam o efeito estufa é imprescindível para evitar que as temperaturas médias da Terra se elevem acima de 2º em comparação com a época pré-industrial e tornem cada vez mais catastróficos os cenários de vida para as gerações já a caminho.

Os eventos extremos mais recentes, coincidentes com um novo El Niño, têm sido capazes de provocar o que se pode chamar de uma ecoansiedade, na medida em que cada vez mais é perceptível não só o aumento das populações atingidas – vide o caso da inundação recente no Rio Grande do Sul, geradora de um correspondente aumento de mortes por inundações –, mas também desequilíbrios ambientais provocados por incêndios em várias partes do mundo ou por calores extremos, além da intensificação das migrações forçadas decorrentes de desastres ambientais em todo o mundo.

Além disso, em regiões estratégicas para o equilíbrio climático do planeta, como a Amazônia, as queimadas e desmatamentos diminuem a área de cobertura vegetal responsável pela geração dos rios voadores que se precipitam em várias regiões do país trazendo chuva, paralelamente aos períodos de seca que tendem a ser mais frequentes e mais intensos e que diminuem igualmente a formação de gelo nos Andes, do qual dependem muitas bacias hidrográficas da América do Sul.

Se considerarmos ainda, globalmente, quais setores da economia emitem mais gases de efeito estufa, veremos que é o setor industrial, em particular o metalúrgico e químico, em seguida a agricultura e usos da terra, dos quais o desmatamento e a fermentação entérica dos ruminantes constituem o segundo grande emissor global, ainda antes dos transportes. Mesmo nesse último setor, não é o transporte urbano o maior emissor, mas aqueles setores ligados ao comércio interno e externo como estradas, o aéreo internacional e o marítimo internacional (IPCC, dados de 2019, FSP, 19/02/2024, caderno A, p.20).

Salta à vista que os principais setores emissores estão ligados a uma economia globalizada de indústria pesada e agropecuária intensiva, além do próprio setor explorador e exportador de petróleo. Se considerarmos os principais países emissores, por sua vez, vem em primeiro lugar a China, responsável por quase 30% das emissões globais, seguida dos EUA, Índia, União Europeia, Rússia, Brasil, Indonésia, Japão, Irã, México e Arábia Saudita.  Essa lista nos permite ver como os 10 maiores emissores contribuem de forma diferente para as emissões de GEE. Enquanto em vários deles como os EUA, União Europeia e Japão são, principalmente, suas indústrias as responsáveis por suas grandes emissões, em outros países é o consumo de carvão para os diversos setores da economia, inclusive a geração de energia e eletricidade que, lhes tornam grandes emissores como a China, a Índia e a Rússia. Já no caso brasileiro e da Indonésia, são o desmatamento e a pecuária os responsáveis pelas altas emissões.

Uma política global de transição energética, portanto, não faz sentido a não ser que se leve em consideração o peso diferente dos diversos setores econômicos nas emissões totais de GEE, provenientes dos países mais dependentes de uma economia fóssil, quer por serem produtores, quer por serem consumidores, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. No caso brasileiro, mais importante do que gerar energia por fontes renováveis como solar ou eólica, seria reduzir drasticamente o desmatamento e a pecuária extensiva, ou seja, atacar aquilo que tem sido responsável por parte considerável do crescimento do agronegócio brasileiro.  Não é segredo para ninguém que a expansão da soja e do milho tem sido feita às expensas do cerrado brasileiro, bioma central para a alimentação dos rios que percorrem nosso país. A região chamada de Matopiba, que reúne o cerrado do Maranhão, do Tocantins, Piauí e Bahia têm sofrido um desmatamento agressivo para se tornar a nova área de expansão do milho. 

Por outro lado, o desmatamento não só da Amazônia, mas também do Cerrado, da Caatinga e mesmo do Pantanal visa sobretudo criar pastagens para a expansão do rebanho bovino brasileiro. Assim, falar de transição energética no Brasil é fechar os olhos para o óbvio. Nossa grande contribuição para as mudanças climáticas não é prioritariamente o transporte à base de combustíveis fósseis, nem mesmo o seu uso industrial. Ao contrário, costuma-se dizer que temos uma "matriz energética limpa", pois o grosso de nossa energia, especialmente eletricidade, vem das hidroelétricas. Sem ter condições de fazer nesse artigo uma crítica extensa ao uso do adjetivo "limpa", é importante assinalar, contudo, que todas as hidroelétricas têm impactos ambientais como a perda de biodiversidade local, de espécies endêmicas e inclusive emissão de metano pela decomposição da vegetação local, para não mencionarmos os impactos socioambientais nas populações ribeirinhas, indígenas, quilombolas e outras tradicionais. 

Assim, no Brasil, cabe falar honestamente no enfrentamento às mudanças climáticas se, em primeiro lugar, adotarmos políticas visando a redução do desmatamento e da criação bovina e em segundo lugar, não abrirmos novas explorações de petróleo, já que somos um dos grandes países exploradores e exportadores de petróleo. De nada adianta avançar de um lado na geração de energia de fontes renováveis se, do outro lado, abrimos novos poços para a exploração de petróleo como fez a Petrobras ao fim do ano de 2023, no chamado "Leilão do Fim do Mundo" e insistir em explorar petróleo na margem equatorial, em região absolutamente sensível do ponto de vista de biodiversidade marinha e das regiões costeiras de mangue do Amapá e do Pará. Por isso mesmo, tampouco faz sentido também argumentar que a exploração de novos poços de petróleo deverá ser feita para financiar a transição energética. Não só esse aumento da produção petrolífera agravará a catástrofe climática atrasando qualquer transição energética, como não é necessário para financiar uma transição energética que exige investimentos bem menores e tem retorno mais imediato do que aquele.

Isso não quer dizer, contudo, que a transição energética seja assunto totalmente dispensável em um país como o Brasil ou a Indonésia, apesar de que sua principal contribuição para as emissões de GEE seja o desmatamento. Eletrificação do transporte, principalmente o público, substituição de indústrias e térmicas à carvão e gás natural por fontes renováveis e ampliação de oferta de energia de fontes renováveis de modo a lidar com a crescente diminuição da geração hidroelétrica resultante de secas periódicas são, certamente medidas necessárias. Mas é preciso atentar para os custos socioambientais das eólicas e solares. Fazendas solares trazem inconvenientes grandes para moradores próximos e até para seus animais com a reverberação de luz dia e noite. O ruído constante das eólicas produz depressão na população vizinha e afeta o bem-estar dos animais. Eólicas off-shore por sua vez, comprometem a pesca artesanal e as migrações de pássaros. Também é preciso considerar os impactos ambientais e socioambientais da extração de minérios necessários à construção de torres eólicas e fazendas solares, bem como às baterias elétricas. Não vale considerar apenas os seus impactos negativos nas regiões em que se implantam, mas em todo ciclo de vida da qual resultam. Painéis solares requerem silício, alumínio e petróleo, pois dele é que sai um filme encapsulante EVA, acetato vinilo de etileno, além de outros produtos petroquímicos. As torres eólicas, por sua vez, são feitas de fibra de vidro, poliéster (feito de etileno, um polímero derivado do petróleo) e sua a base requer concreto e aço. O concreto, por sua vez, é feito de cimento, areia e outras rochas. O cimento é feito de calcário e argila, cozinhado em altos fornos, que é um dos setores industriais mais consumidores de fontes fósseis. Finalmente as baterias elétricas para carros também requerem de minérios raros como o lítio, cobalto, além de chumbo e petróleo ou carvão para os fornos, fundição de metais e um enorme consumo de cobre e outros minérios e cimento para construir uma rede rodoviária de abastecimento de energia para os carros elétricos. Os impactos socioambientais da mineração, em especial da mega mineração, são bastante conhecidos, indo desde a poluição e esgotamento dos recursos hídricos locais, à poluição e acidentes com rejeitos, perda de solos férteis e expulsão de comunidades tradicionais.

Portanto, se a produção de energia de fontes renováveis requer recursos naturais não renováveis como minérios ou mesmo petróleo, uma transição energética completa, de um ponto de vista qualitativo e quantitativo é uma impossibilidade lógica. Não só minérios e petróleo se esgotarão mais tarde ou mais cedo, com o crescimento do setor, enquanto seguir adiante, continuará exigindo o emprego de combustíveis fósseis. Estamos, assim, diante de uma verdade física que a economia capitalista resiste em reconhecer: os recursos naturais são limitados e incompatíveis com um crescimento ilimitado. Seria preciso, enfim, abandonar o "mito do desenvolvimento", como disse Celso Furtado (1974), pois o desenvolvimento baseado no crescimento econômico desenfreado é uma doença, jamais uma cura. Devemos registrar também que, conforme analisa Alier (2012) o custo ambiental não é internalizado, ou seja, há dificuldade de incorporar os custos de danos ambientais crescentes, com metodologias de precificação do patrimônio natural, tendo em vista que o valor da natureza não é redutível ao preço de mercado. O valor gerado por sua atividade é menor que o valor econômico do patrimônio da biosfera destruído.

E as cidades, em que medida elas podem contribuir para o enfrentamento das mudanças climáticas e para uma transição energética? Como disse também Juan Martinez Alier (2012), as cidades são sempre insustentáveis, pois elas consomem mais recursos do que geram e esses recursos vem de fora, e é para lá que elas também exportam os seus resíduos e poluição.

No cenário catastrófico de eventos climáticos que já estamos enfrentando, é evidente que o maior desafio das cidades está na adaptação e não só na mitigação. Reforma urbana para retirar populações de áreas de risco, planejamento de edificações adequadas no enfrentamento à impermeabilização das metrópoles oferecendo moradias ambientalmente sustentáveis, ampliação e criação de parques, praças e calçadas que possam absorver chuvas, reflorestamento, jardins suspensos para aumentar o conforto térmico, são algumas dessas alternativas de políticas urbanas urgentes, além do investimento na mobilidade urbana por meio da redução da frota de transporte público e privado à base de gasolina e diesel, embora saibamos que resultados muito expressivos nesse sentido também poderão ser atingidos com o uso do metrô, bicicleta, trajeto a pé que entram em termos de mitigação. Contudo, importante também seria a política de impostos sobre o consumo de petróleo no transporte privado e pedágios, que também teriam efeitos positivos. Uma reforma urbana efetiva deve buscar adensamento nas áreas centrais providas de moradias, oferta de trabalho e equipamentos públicos e que detenha a expansão urbana para as periferias, reduzindo assim os grandes trajetos. Finalmente não é desprezível que se consiga reduzir o consumo de energia da rede geral das cidades por meio da instalação de paneis solares em prédios públicos, moradias e condomínios, pois isso permitirá reduzir a demanda urbana pelas fontes de energia que serão cada vez mais escassas.

As considerações feitas acima nos permitem questionar o sentido ambíguo da expressão "transição energética", pois ela promete ser possível substituir a energia originada de fontes fósseis por renováveis, sem que seja necessário também reduzir a produção e o consumo de bens e serviços que utilizam recursos naturais não renováveis para a sua fabricação e consumo. Não só tal substituição não é possível, como menos ainda é possível continuar crescendo economicamente, objetivo claro e irrenunciável da economia mundial. A verdadeira discussão que não se faz, portanto, ao acenar com esse potencial solução para a catástrofe energética é a de como reduzir a produção e consumo de bens e serviços sem comprometer a qualidade de vida da população mundial e, especialmente, daqueles países e setores sociais que nem sequer gozam das mínimas condições de segurança alimentar, saúde, educação e moradia adequada. 

Bem viver, decrescimento, economia de sobriedade, ecologia integral, ecossocialismo, pós-neoextrativismo, ecofeminismo, green new deal, economia donut, economia circular, são algumas dessas propostas que apontam como fazer essa real transição, e vão muito além do que uma mera transição energética. É isso que se evita, quando se restringe a discussão à mera substituição de fontes de energia por trás do termo transição energética.

Concluindo, uma transição energética ambientalmente justa e efetiva só será possível caso não nos enganemos quanto aos seus limites. A ela terá que corresponder uma redução do uso de recursos naturais e biológicos, o que exigirá enfrentar os problemas da desigualdade social entre o Norte e o Sul e, também, dentro de cada um dos países do Norte e do Sul, estabelecendo as prioridades que deverão consumir os recursos energéticos menos abundantes.

Luiz Marques (2018, p.562) analisa que "a única saída para diminuir o impacto ambiental do capitalismo é diminuir em termos absolutos a produção e o consumo de energia, o que é incompatível com o mecanismo básico de funcionamento expansivo do capitalismo global e com a visão de mundo vendida à sociedade por esse mecanismo".

Quanto mais demoremos em reconhecer essas verdades, mas retardaremos em adotar as políticas necessárias, efetivas e prioritárias para proteger as populações da catástrofe ambiental que se intensifica a olhos vistos. 

Referências

ALIER, Joan Martinez (2012). O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto.
FURTADO, Celso. (1974) O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Círculo do livro.
MARQUES, Luiz (2018). Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: UNICAMP.
MELLO, Cecília. MALERBA. Julianna. TUBINAMBA, Soraya. Da transição energética à transição ecológica: a contribuição da justiça ambiental e um convite ao debate. Rio de Janeiro: FASE, 2024.

*Dulce Maria Tourinho Baptista é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisadora Núcleo de Pesquisa Religião e Cidade (PUC-SP), Centro de Estudos Migratórios – CEM e do Observatório das Metrópoles de São Paulo.


**Marijane Vieira Lisboa é professora, coordenadora do curso de Ciências Socioambientais da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e do Grupo de Especialistas em Agrobiodiversidade-GEA do Ministério de Desenvolvimento Agrário, MDA.r. 

***Este é um artigo de opinião e não reflete necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.
 

Edição: Thalita Pires