Quando o governo aumenta gastos e investimentos, está alterando a trajetória da economia
Ficamos sabendo na semana passada que o Brasil cresceu 1,4% no segundo semestre de 2024 em relação ao trimestre anterior. Isso colocou o país na rota de um crescimento de 3% do PIB em 2024, um recorde para os tempos recentes. Os resultados do PIB desencadearam mais uma rodada do jogo do “Lula da sorte”. O jogo tem 3 fases clássicas: primeiro, “analistas do mercado são surpreendidos”; segundo, temos o clássico “as coisas estão tão boas que só podem piorar muito”. A última fase é a busca por explicações estapafúrdias que retirem o mérito de Lula e sua equipe econômica.
Na rodada atual do jogo do Lula da sorte, o desespero foi tão grande que um colunista jogou as mãos para o alto e declarou que simplesmente não sabemos por que o Lula tem sorte. Chega de investigar! O homem tem sorte e é isso daí. O colega que me perdoe, mas o Lula da sorte não existe. Não é sorte e nem é só o Lula.
O que de fato existe, no caso do PIB, é um crescimento puxado pela demanda. A única sorte que Lula tem é a de entender o que isso significa, ao contrário dos analistas de mercado e da imprensa empresarial.
Para os analistas de mercado, crescimento sustentável de longo-prazo só pode vir “pelo lado da oferta”, para usarmos o jargão. Existem vários tipos de melhorias no lado da oferta. Algumas são genuinamente boas, como avanços na qualificação de trabalhadores e trabalhadoras e novas tecnologias que reduzem custos e aumentam a produtividade. Mas o pacote preferido dos analistas de mercado também inclui algumas maldades que conhecemos bem: precarização das relações de trabalho, redução do poder de regulação do Estado, privatização de atividades estatais.
Se o crescimento de longo-prazo só pode vir da oferta, os analistas de mercado têm certeza de que gastos do governo só podem aquecer a economia temporariamente, sem efeito permanente. Quando os gastos aumentam, a economia responde, mas os agentes já antecipam que depois o governo terá que aumentar os impostos para “pagar a conta”. Ou, caso o governo insista em aumentar gastos e investimentos por muito tempo, a economia ficará superaquecida e a inflação virá. É por essa razão que os analistas de mercado subestimam o crescimento e superestimam o desemprego e a inflação em governos mais à esquerda: na visão deles, a capacidade produtiva não é determinada pelos gastos do governo.
Mas essa não é a verdade. Quando o governo aumenta os gastos e investimentos, está alterando também a trajetória de longo-prazo da economia. Pensem em um capitalista que possui uma pequena fábrica de bens de consumo (digamos, uma fábrica de sabonetes) operando com ociosidade, sem muitas vendas. Por que ele investiria em novas máquinas ou em capacitação da força de trabalho para aumentar a produção se não está vendendo muito? Não há reforma liberal que convença esse capitalista a produzir mais. Uma redução de impostos ou salários mais baixos podem aumentar a taxa de lucro com a mesma quantidade de vendas, mas será só isso. Ninguém está comprando mais.
No entanto, se o governo aumenta o salário-mínimo, aumenta os programas de distribuição de renda e faz mais investimentos, esse capitalista vai vender mais porque os consumidores (inclusive o próprio governo) agora estão gastando mais. E, observando o aumento de vendas, ele vai pensar em adquirir mais máquinas e qualificar sua força de trabalho para atender essas vendas, criando um “efeito multiplicador”.
Portanto, mesmo os avanços do lado da oferta (tecnologia, educação) dependem de uma economia com a demanda estimulada para fazerem seu efeito de longo-prazo. Sem estímulo de curto-prazo, os fatores que levam ao desenvolvimento não têm nem a oportunidade de acontecer.
Como os modelos dos analistas de mercado não incluem essa dimensão em seus modelos econômicos, sempre preveem que um programa de governo mais à esquerda só pode gerar um “voo de galinha”. Pior, quando a economia começa a voar mais alto e fica evidente que não é apenas um voo de galinha, os analistas de mercado tentam vincular esse sucesso às reformas liberais que, segundo a crença deles, são as únicas políticas capazes de alterar o crescimento de longo-prazo. Como são incapazes de corrigir seus modelos – seja por dogmatismo ideológico ou por que o modelo produz propostas de política que servem bem aos seus patrões – o resultado da teoria econômica dominante entre os analistas de mercado é a repetição interminável do jogo do Lula da sorte.
A célebre frase “no longo-prazo estaremos todos mortos”, do economista John Maynard Keynes não um chamado para ignorarmos o longo-prazo e focarmos na solução dos problemas de curto-prazo. Pelo contrário, era um lembrete de que o longo-prazo começa hoje. Sem medidas de curto-prazo para manter a economia aquecida, não há reforma – nem as boas reformas! – que funcione.
* Pedro Faria é petroleiro. É economista (UFMG) e doutor em história (Universidade de Cambridge).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Nathallia Fonseca