Moradores próximos relatam incômodos como barulho excessivo, odores e aumento do tráfego
Manuel Castells, no livro A Sociedade em Rede, identifica uma nova economia a partir da presença exponencial da informação e estruturação social em rede. Esse fenômeno, que tem início no século 20, ganhou volume e relevância na medida em que ocorreu a aceleração tecnológica. A pandemia de covid-19 criou a oportunidade para que essa economia se desenvolvesse, encontrando um mercado de consumidores com acesso à internet por meio de smartphones e aplicativos. Segundo Castells, essa nova economia é informacional porque se organiza em torno da capacidade produtiva dos agentes gerarem, processarem e aplicarem a informação baseada em conhecimento. Além do caráter global, destaca-se também a presença de redes empresariais que interagem entre si, partilhando informações e criando condições de orientação ao mercado. Trata-se de uma economia que foi impulsionada pela tecnologia da informação, que ganha volume nos sites e aplicativos on-line, mas que reconfigura a vida na cidade e contribui para moldar o futuro das metrópoles. O caso das dark kitchens é, nesse sentido, emblemático. A presença tecnológica nas cidades tem implicações sociais, econômicas e ambientais. A realidade digital, que transforma a metrópole do futuro, apresenta tanto oportunidades quanto desafios, exigindo uma reflexão crítica sobre os caminhos a serem trilhados para uma urbanização sustentável e inclusiva.
As dark kitchens, também conhecidas como cozinhas fantasmas ou cozinhas para delivery, são estabelecimentos que operam exclusivamente para atender pedidos de comida via aplicativos de entrega, sem possuir atendimento presencial ao cliente. Este modelo foi concebido para aumento de produtividade, redução de custos e maior lucratividade, focando exclusivamente na produção e entrega de alimentos, reduzindo gastos com salões de jantar e espaços para consumo interno. Localizadas estrategicamente em áreas com alta demanda de pedidos, as dark kitchens permitem que restaurantes ampliem sua capacidade de atendimento e alcancem um público maior sem os custos e limitações de um restaurante tradicional.
A implementação das dark kitchens é marcada pela rapidez e pela ausência dos processos prolongados típicos da abertura de restaurantes tradicionais. Existem empresas especializadas em criar hubs de dark kitchens, localizadas em pontos estratégicos de bairros residenciais, criando diversos cardápios e opções de restaurante em um só local. O modelo das dark kitchens incentiva a experimentação e a diversificação, permitindo que um único espaço abrigue múltiplas marcas e cardápios. São empresas que alugam suas cozinhas para outras cozinhas. Com um tempo muito curto para o início das operações, esses estabelecimentos conseguem entrar no mercado rapidamente. Uma rapidez propiciada por uma regulamentação ineficiente, que tem gerado um significativo impacto socioambiental nos bairros. A flexibilidade das dark kichens pode ser vista como uma resposta às rápidas mudanças nas preferências dos consumidores e nas tendências de mercado. Contudo, a proliferação dessas cozinhas pode contribuir para a precarização do trabalho no setor alimentício, com um aumento na informalidade e na rotatividade de funcionários.
Os entregadores de aplicativos, peça fundamental desse modelo de negócios, percorrem diversos bairros da região metropolitana, muitas vezes sem tempo para descansar. Enfrentam longas filas de espera nos estabelecimentos, muitos dos quais não oferecem água, ponto de carregamento para o celular, ou um banheiro para uso desses trabalhadores. Encaram os congestionamentos nas ruas e a pressão constante para cumprir os prazos de entrega e as metas diárias dos aplicativos. Os entregadores fazem parte de uma nova economia digital, que se estrutura aproveitando-se da precarização do trabalho e tem transformado a rotina urbana. A presença das dark kitchens em São Paulo é um reflexo dessa transformação, criando novas oportunidades e desafios para esses trabalhadores.
Do ponto de vista econômico, as dark kitchens reduzem significativamente os custos operacionais, principalmente em relação ao aluguel de espaços maiores e ao emprego de uma equipe numerosa. Operando com uma equipe reduzida e muitas vezes sem a necessidade de despesas com decoração e atendimento ao cliente, essas cozinhas podem atingir o ponto de equilíbrio financeiro em um período muito curto, se comparado aos restaurantes tradicionais. No entanto, essa redução de custos implica condições insalubres de trabalho, com funcionários submetidos a jornadas intensas e ambientes de trabalho precários, sem acesso a benefícios e condições básicas.
A tecnologia desempenha um papel central no funcionamento das dark kitchens, com sistemas que permitem o gerenciamento de pedidos através de plataformas digitais integradas. Este controle centralizado pode fornecer dados valiosos sobre o desempenho do negócio, mas também levanta questões sobre a vigilância e a privacidade dos dados dos trabalhadores e dos consumidores. Além disso, a dependência de tecnologias avançadas pode exacerbar as desigualdades digitais, excluindo aqueles que não têm acesso ou habilidades para utilizar essas plataformas.
Em São Paulo pelo menos um em cada três restaurantes cadastrados na plataforma iFood é uma dark kitchen, segundo os dados publicados por Hakin et al, pesquisadores da Unicamp. Elas representam 35% dos restaurantes da cidade de São Paulo; 24,4% de Campinas e 22,5% de Limeira. Essas proporções indicam um crescimento significativo deste modelo de negócio, que ocorreu especialmente durante a pandemia, quando os restaurantes tradicionais tiveram que fechar seus salões para cumprir as regras de isolamento. No entanto, a expansão das dark kitchens traz problemas de regulação e fiscalização. Muitos desses estabelecimentos barram visitantes e são invisíveis até para a vigilância sanitária, o que dificulta a garantia de padrões de higiene e segurança alimentar. A falta de transparência e a ausência de informações claras nas plataformas de delivery dificultam a identificação dessas cozinhas pelos consumidores. Mesmo sabendo de sua existência, os consumidores não conseguem identificá-las rapidamente para fazer sua escolha, o que pode levar à subestimação dos riscos associados a esses estabelecimentos.
A pesquisa também destaca a necessidade de um plano de ação ou regulamentação específica para as dark kitchens, visto que elas operam fora do escopo tradicional de fiscalização sanitária. A invisibilidade desses estabelecimentos para as autoridades sanitárias é um ponto crítico, pois impede um controle adequado. A situação é agravada pela falta de estudos ou informações oficiais sobre a segurança dos alimentos produzidos nesses locais.
Além dos desafios de regulação, as dark kitchens enfrentam problemas urbanísticos, especialmente quando localizadas em áreas residenciais. Moradores próximos a esses estabelecimentos frequentemente relatam incômodos como barulho excessivo, odores desagradáveis e aumento do tráfego. Essas questões levantam preocupações sobre a adequação desses empreendimentos em determinados contextos urbanos, exigindo uma abordagem mais rigorosa na concessão de licenças e na fiscalização.
Conforme a reportagem de Bárbara Muniz Vieira para o portal g1 esse modelo não foi bem recebido por todos. Moradores de vários bairros residenciais da cidade reclamam do barulho, comparado a uma turbina de avião, durante 20 horas por dia, da gordura impregnada nas roupas no varal e dos odores vindos das coifas que causam ânsia de vômito.
A Kitchen Central, uma das empresas responsáveis por esses hubs, possui várias unidades na cidade, como na Lapa e no Butantã. Nessas unidades, "são 35 cozinhas de estabelecimentos diferentes em operação compartilhada. Cada uma delas ocupa uma sala com pelo menos um fogão industrial, uma coifa e um refrigerador. Cada cozinha é separada como se fosse uma sala individual, que tem sua conta de gás, água e energia separadas", descreve a matéria do g1. Apesar dessas instalações, há críticas sobre a transparência e o acesso a essas cozinhas, que muitas vezes impedem as visitas de consumidores e da imprensa.
Em 09 de maio de 2023, foi publicado o Decreto Municipal nº 62.365/2023, que regulamenta a Lei Municipal nº 17.853/2022, mais conhecida como Lei das Dark Kitchens do Município de São Paulo. O conjunto de regras delega a fiscalização à Divisão de Silêncio Urbano (PSIU), às subprefeituras ou à Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), dependendo do item em questão. No entanto, não há uma definição sobre quais as multas aplicáveis às empresas que descumprirem as normas. Um desafio para a gestão pública é fazer com que a regulamentação seja cumprida, reconhecendo a importância dessa atividade econômica para a dinâmica da cidade. As dark kitchens representam um fenômeno emergente na economia digital que altera significativamente o panorama do setor alimentício. Sua rápida expansão e os desafios associados exigem uma análise crítica e uma regulamentação adequada capaz de mitigar não só os efeitos negativos sobre as comunidades urbanas, mas também sobre os trabalhadores envolvidos.
O presidente do iFood, Fabricio Bloisi, disse em entrevista para a Folha de S.Paulo que em 10 anos o preço de pedir comida será o mesmo de cozinhar em casa. O número de 30% de dark kitchens nos aplicativos aumentaria ainda mais, criando uma legião de cozinhas fantasmas com dezenas de milhares de pedidos todos os dias. Segundo Bloise, "entre cinco e dez anos, vai começar a ser tão barato [pedir comida feita fora de casa] quanto comprar no mercado e fazer. Assim como a gente não produz mais roupa em casa, nem educa as crianças em casa, digamos assim. Receber uma comida de qualidade, saudável, no preço que você teria, fazendo em casa, só que sem o trabalho de fazer. Acho que isso é uma tendência para acontecer em dez anos". Em 2023, as marmitas já foram responsáveis pela maior parte dos pedidos do aplicativo.
Ao que tudo indica, é de fato uma previsão plausível. A tecnologia produz objetos, mas também procedimentos. O exemplo das dark kitchens reúne as duas situações. Essas cozinhas industriais oferecem não só um modo de produção em larga escala que se atrela ao consumo por meio de aplicativos, como também impactam o cotidiano de todos os moradores; o trânsito; as condições de trabalho dos entregadores; as regiões em que são instaladas e, por consequência, a vida dos que moram na vizinhança. No próximo pleito municipal, é fundamental que as candidaturas apresentem soluções para o problema. Não apenas de como a regulamentação existente será efetivamente cumprida, garantindo que os cuidados sanitários sejam observados. Caberá também à próxima gestão apresentar soluções para esse modelo de negócios que possam reconhecer sua importância para a economia e, ao mesmo tempo, dirimir os impactos ao ambiente e ao cotidiano das áreas onde são instaladas.
*Rafael Araújo é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte Mídia e Política e diretor de segmento do Colégio São Luís. Foi convidado pelo Observatório das Metrópoles para escrever para esta coluna.
**Igor Fediczko é pesquisador na área de internet, tecnologia, artes e assessor de comunicação política. Doutor e mestre em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
***Este é um artigo de opinião e não reflete necessariamente a posição editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires