A Turquia oficializou em 2 de setembro o seu pedido de adesão ao grupo Brics e o presidente do país, Recep Tayyip Erdogan, deve participar da cúpula do bloco em Kazan, na Rússia, entre 22 e 24 de outubro. É neste evento que pode ser anunciada a nova rodada de expansão do grupo. A iniciativa turca é vista como uma forma de construir laços com diferentes blocos e países em um mundo multipolar, fortalecendo o seu status geopolítico de ponte entre a Europa e a Ásia.
Ao mesmo tempo, a Turquia faz parte da Otan, o que pode gerar incômodo entre os seus parceiros da aliança militar ocidental. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, por sua vez, declarou que, pelo regulamento dos Brics, não há qualquer impedimento para a entrada da Turquia no grupo. O chanceler também reforçou o viés de não seguir a política imposta pelo Ocidente.
“No que diz respeito à adesão à Otan e ao status de candidato à União Europeia que a Turquia tem há quase 70 anos, como disse recentemente um oficial turco, não existem regras nos Brics que determinem que os membros de certas organizações não possam ter relações com esta associação. O principal para os membros de pleno direito e para os países que desenvolvem a cooperação com os Brics sob diversas formas é partilhar valores comuns, e não aqueles que a União Europeia defende constantemente na Ucrânia”, afirmou.
O chanceler destacou que “todos os membros do Brics estão prontos para cumprir os requisitos da Carta das Nações Unidas na sua totalidade”. Segundo ele, esse é justamente o princípio da multipolaridade”, que manifesta “a soberania igualitária dos Estados”.
Desgaste com o Ocidente
Em entrevista ao Brasil de Fato, o diretor do Centro Russo para o Estudos da Turquia, Yuri Mavashev, observa que o pedido de adesão ao Brics se insere na lógica da política internacional que Erdogan vem adotando nos últimos 20 anos, trazendo luz para o fato de que o Conselho de Segurança da ONU não representa o sistema internacional por não haver países muçulmanos, por exemplo, reforçando o seu lema de um “mundo para além dos cinco”.
Além disso, a movimentação turca reflete uma certa corrosão das relações com o Ocidente, em particular, com os EUA. Por isso, o aceno de Erdogan ao Brics “é um passo menos ativo e mais reativo, ou seja, é como uma reação a certos problemas que a Turquia passou a ter com os Washington e a União Europeia”, argumenta.
O analista lembra que o Conselho de Relações Internacionais dos EUA - centro de pesquisa que é referência sobre a política externa estadunidense - publicou um relatório em 2018 que se intitulava "Nem amigo, nem inimigo", que tratava especificamente da Turquia. “Ali estava claramente declarado que a Turquia não era um parceiro para os EUA. Sim, ela faz parte da Otan, mas não deixando ilusões, que com a Turquia existem contradições muito sérias”.
Diferentes fatores fizeram as relações dos EUA e Turquia serem abaladas nos últimos anos. No plano geopolítico, a guerra da Síria e o apoio de Washington a forças curdas colocaram EUA e Turquia em lados opostos. No plano da defesa, a decisão da Turquia de comprar o sistema de mísseis de defesa aérea S-400 da Rússia criou um importante ruído com a Otan, uma vez que estes sistemas seriam incompatíveis com os da aliança militar ocidental.
A consequência imediata deste acordo entre Rússia e Turquia foi a suspensão do programa de fornecimento de caças F-35 dos EUA a Ancara e a imposição de sanções à Turquia.
Mais recentemente, o apoio irrestrito da Casa Branca a Israel em sua guerra contra a Palestina na Faixa de Gaza virou outro fator que colocou Ancara e Washington e lados opostos, lembrando que a Turquia decidiu romper todos os laços comerciais com Israel em maio deste ano.
Outra motivação para a Turquia se movimentar em direção ao Brics é a quebra da antiga expectativa que o país tinha de ingressar na União Europeia, negociação que começou oficialmente em 2005, mas ficou travada ao longo dos anos.
'Boa alternativa'
Em junho deste ano, o chanceler turco Hakan Fidan, durante uma visita à China, afirmou que os Brics são uma “boa alternativa” à União Europeia. Na ocasião, a Rússia saudou o desejo de Ancara de entrar no grupo.
Ao mesmo tempo, o pesquisador Yuri Mavashev destacou, apesar destes ruídos com o Ocidente, Erdogan não deve abrir mão da sua política multifacetada e ambígua, oscilando entre o Ocidente e o Sul Global, visando maiores ganhos para os interesses nacionais. A recíproca tende a ser verdadeira, segundo o analista.
“Para a União Europeia, a Turquia se manteve e se manterá como um país parceiro. Tenho certeza que deste lado este curso não será alterado, enquanto a Turquia faz parte da Otan, e mesmo se não fizesse, estrategicamente a Turquia se encontra em um ponto geográfico muito importante, uma interseção de caminhos comerciais e internacionais, entre Europa e Ásia, não dá pra deixar isso de lado”, destaca.
Mavashev acrescenta que o mesmo ponto funciona em relação à Otan, pois o país se beneficia muito do orçamento de defesa da aliança, da qual fazem parte os seus países vizinhos. Por isso, o analista aponta um ceticismo sobre Erdogan se mostrar como um representante central do Sul Global, considerando a natureza da sua política ambivalente.
“Eu tenho um ceticismo em relação às tentativas da Turquia de se colocar no papel de uma espécie de porta-voz de um senso coletivo dos países do Sul Global, como Erdogan buscou representar a Turquia. Porque este 'sul' é muito variado, neste sul tem o país mais densamente povoado do mundo que é a Índia, e a Turquia tem uma relação muito difícil com a Índia, porque a Turquia apoia o Paquistão, então de que 'sul' estamos tratando?”, acrescenta.
Perspectiva da Rússia
Segundo o diretor do Centro Russo para o Estudos da Turquia, Yuri Mavashev, para a Rússia, torna-se estrategicamente importante que a Turquia entre no Brics, e, especialmente, que isso aconteça durante a sua presidência do bloco em 2024.
“Nós vemos que, publicamente e oficialmente, a Rússia quer muito que a Turquia entre no Brics. E é muito importante para a Rússia que isto aconteça durante o ano em que a Rússia tem a presidência do Brics, não há qualquer dúvida sobre isso. Por quê? Porque aqui é muito importante o fato de que a Rússia, nos últimos anos, desde 2022, desgastou muito fortemente suas posições internacionais."
Outro aspecto importante sobre a posição turca é o debate sobre a desdolarização da economia global, amplamente defendida pela Rússia, pelos países do Brics, e pelo próprio Erdogan, que também questiona a hegemonia do dólar na ordem do mercado global.
Além disso, a Turquia tem a ambição de se tornar um centro de exportação de gás da Rússia e da Ásia Central. Quase metade das exportações russas de gás para a Europa no segundo semestre de 2023 foram feitas através da Ucrânia. No entanto, o atual acordo de trânsito entre a russa Gazprom e a petroleira ucraniana Naftogaz expira no final de 2024 e a Ucrânia já manifestou que não pretende renovar o contrato com a parte russa. A outra metade desse trânsito de gás (52%) foi feita através do gasoduto Turkish Stream. Ou seja, a Turquia pode se tornar a principal ponte do fornecimento de gás da Rússia para a Europa.
Yuri Mavashev lembra também que o Azerbaijão, que é aliado da Turquia, também oficializou um pedido de adesão ao Brics, o que “também aumenta a autoridade e a reputação da Rússia”. Ele destaca que, com isso a Rússia mostra que, apesar dos problemas decorrentes da crise com a Ucrânia, busca soluções através do Brics.
“O Azerbaijão já tem uma saída, através do Mar Cáspio, para a Ásia Central. Então existem todas essas conversações de que pode haver fluxo de gás ali, isso tudo está interligado. É uma forma de a Rússia mostrar que está pronta para estar no centro desta rede”, completa.
Edição: Lucas Estanislau