A queda nos reservatórios de água diante da seca histórica que o Brasil enfrenta ameaça a oferta de energia das hidrelétricas, o que leva o país a apostar mais no uso do gás natural para garantir o fornecimento. Recentemente, o governo anunciou uma série de medidas para ampliar a produção do recurso. Por sua vez, o investimento nesta matriz energética é bastante criticado, pois reforça a dependência de combustíveis fósseis, que são justamente apontados como causadores da crise climática atual.
Um decreto governamental do final de agosto promete baratear o gás natural por meio de um "choque" de oferta. A intenção é aumentar a produção dando mais poder à agência reguladora. Com ele, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) poderá determinar o aumento da produção em campos de petróleo e gás natural que já estejam em desenvolvimento.
Seguindo a assinatura do decreto, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse que a medida iria aumentar a disponibilidade de gás natural, reduzindo a dependência externa de insumos estratégicos para as cadeias produtivas nacionais. "Vamos, com isso, melhorar o aproveitamento e o retorno social e econômico da produção nacional de gás natural", afirmou.
O papel do gás na transição energética é um tema de grandes discussões ao redor do mundo. Segundo Sylvie D'Apote, diretora executiva de gás do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), diante da dinâmica do Brasil, atualmente se trata de uma fonte "acessível e segura", e que tem um papel importante na segurança energética brasileira, especialmente em um quadro em que estratégias mais limpas, como o hidrogênio verde, ainda demorarão a estar disponíveis em larga escala.
Por outro lado, há críticas aos incentivos do governo, e temor de que os investimentos em fontes mais limpas possam ser atrasados. A coordenadora de projetos do Instituto ClimaInfo, Carolina Marçal, aponta que a "expansão do uso dos combustíveis fósseis atrasa a transição energética, pois, entre outros fatores, pode gerar um bloqueio de investimentos no setor elétrico por até 30 anos, além de aumentar custos da eletricidade e agravar ainda mais a crise climática que estamos vivendo".
Além disso, há a crítica de que o ambiente atual abra espaço para a aprovação do método conhecido como fracking, uma prática para extração de petróleo e gás proibida em países como a Alemanha e Reino Unido, e recentemente cogitada pelo ministro de Minas e Energia. Neste cenário, o método, "que tem alto impacto ambiental e social, continua ameaçando o Brasil", afirma Marçal.
"Há reservas potenciais de gás que podem ser extraídas por fraturamento hidráulico no Amazonas, Pará, Piauí e Maranhão. Nesses locais, onde não há nenhuma barreira legal para o uso da técnica, empresas já pressionam e demonstram interesse para usar o faturamento", indica.
Para Marçal, as medidas atuais, "além de comprometerem a imagem do Brasil como líder da transição energética, colocam em xeque a sua capacidade de implementar seu discurso na agenda climática como um todo".
Cenário de avanço no país
O setor brasileiro de gás vem se movimentando por novos projetos. Segundo estimativas da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), os investimentos no ramo podem alcançar R$ 94,6 bilhões nos próximos anos. O Gasoduto Rota 3, que visa ampliar o escoamento do gás da Bacia de Santos, deve ser inaugurado em breve. Já o Projeto Sergipe Águas Profundas (SEAP), na Bacia de Sergipe-Alagoas está previsto para começar a operar 2028.
O Brasil ainda depende da importação para suprir a demanda de gás natural. Apesar de a produção nacional de gás natural ter batido recorde em 2023, chegando a 150 milhões de metros cúbicos por dia (m³/dia) – 8,7% a mais do que no ano anterior –, o país importou ainda 17,7 milhões de m³/dia. Bolívia e Estados Unidos são os principais fornecedores estrangeiros.
Segundo D'Apote, o gás natural é usado principalmente no setor elétrico e, diante do quadro de poucas chuvas e nível baixo de água nos reservatórios hidrelétricos, é previsto um despacho elevado das térmicas movidas a gás nos próximos meses.
Além deste quadro, a "demanda de gás natural no Brasil é, sobretudo, no setor industrial, enquanto o uso residencial e comercial é baixo, ao contrário do que acontece na Europa", afirma a diretora do IBP. O país utiliza ainda o gás em parte de sua frota automotiva, com destaque para o Rio de Janeiro.
Quais os efeitos práticos?
Há certo ceticismo sobre o governo alcançar os objetivos anunciados, além dos temores como uma maior intervenção no setor. "As recentes medidas tiveram um efeito maior na produção doméstica de gás e nas perspectivas de mercado do que um impacto direto nos negócios", indica Vínicius Romano, especialista em gás natural da América Latina da consultoria norueguesa Rystad Energy.
Na sua opinião, no Brasil, o gás natural é "uma fonte chave de fornecimento flexível que se adapta bem à forte matriz energética renovável, o que segue mesmo após o decreto". Por outro lado, ele avalia que a determinação, que reduz o controle sobre os planos de produção, pode aumentar os riscos e afetar negativamente os investimentos no setor.
"O problema com este excesso de oferta forçada é que a maior parte da produção de gás do Brasil está associada ao petróleo. Isto significa que, para produzir menos gás e equilibrar o mercado, a produção de petróleo também poderá diminuir, comprometendo as receitas dos investimentos ou a atratividade de novos projetos", pondera. Ainda assim, ele acredita que o governo pode ter êxito em reduzir os preços aos consumidores através da alta na oferta.
Cenário internacional
A guerra na Ucrânia levou muitos países, especialmente na Europa, a reorientar o seu setor de gás, seja usando fontes alternativas de energia ou buscando outros fornecedores. D'Apote explica que, no caso do Brasil, alguns setores sentiram os efeitos da alta dos preços no mercado internacional, mas que foi um ano de pouca importação devido ao regime de chuvas.
Na visão de D'Apote, diante de um cenário no qual o gás brasileiro costuma ser mais caro que outras ofertas internacionais, "ter muitas fontes é positivo", já que há a possibilidade de negociar contratos diversas opções e buscar melhores ofertas.
Para Romano, a curto prazo, não há alterações sobre a autonomia do Brasil no setor. Já no longo prazo, as medidas podem implicar a produção adicional de gás doméstico, o que poderá mudar a forma como o mercado funciona neste momento. "Se o decreto for bem-sucedido, os volumes adicionais implicarão em menores necessidades firmes de importação" avalia.