No dia 11 de setembro, a Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe (ALESE) realizou mais uma de suas cerimônias de entrega de título de cidadania. Em seus protocolos enrijecidos, as cerimônias, como de costume, escondiam nas honrarias entregues as costuras políticas que representam. Naquele caso em particular, uma costura em verde oliva.
A propositura de outorga da Cidadania Sergipana do 11 de setembro partiu do presidente da ALESE, o deputado estadual Jeferson Andrade (PSD-SE). O outorgado: o comandante do Exército, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva. A cerimônia, que contou com a presença do vice-governador do estado e de representantes dos poderes Judiciário e Legislativo estaduais, foi marcada pela forte presença de militares, em sua maioria oriundos do Exército Brasileiro.
Para além do discurso laudatório típico de formalidades como esta, a fala do comandante estava repleta de referências às ações do Exército, apresentadas no bojo da “servidão” da força ao povo brasileiro. Todas as citadas, diga-se, atividades denominadas subsidiárias por fugirem da atividade fim das forças armadas brasileiras, qual seja: a Defesa Nacional. Dentre elas, destacavam-se as menções recorrentes à atuação no combate a queimadas e à seca. No mesmo dia, reportagem do Poder360 dava conta de que, em entrevista, Lula teria afirmado que conversara com o comandante do Exército para formar militares para o combate a tragédias climáticas.
As declarações de Tomás Paiva na ALESE assumem, assim, outra roupagem. Alinhada ao discurso do presidente – com quem o próprio general afirmara ter se encontrado dias antes da cerimônia na ALESE – a fala do general denota um movimento crescente de emprego militar em operações de combate a crises ambientais, cada vez mais frequentes num contexto da crise climática já em curso.
De primeiro de janeiro de 2024 até o dia 12 de setembro, a plataforma BDQueimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registrou 176.317 focos de queimadas, a maioria atingindo o bioma amazônico. Foi nesse quadro que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, determinou uma série de medidas de enfrentamento, dentre elas a convocação de bombeiros para compor o efetivo da Força Nacional nos combates aos incêndios.
O emprego das forças armadas pareceria assim, à primeira vista, um reforço legítimo das ações governamentais. Dada a aparente inutilidade das forças armadas no Brasil, questionaria o leitor, não deveríamos de fato utilizar seus efetivos para atividades subsidiárias, que garantam retorno à população, como no caso do combate às queimas? A resposta é não. E por, ao menos, três motivos que elencamos a seguir.
Em primeiro lugar, é preciso deixar evidente que a razão de existir das forças armadas é a Defesa Nacional. Portanto, sua estruturação, pelo menos em tese, tem como foco o exterior, considerando possíveis ameaças e cenários de emprego, bem como a realidade geopolítica global e as dinâmicas estruturais e conjunturais das relações internacionais, sempre a partir da condução da autoridade política – no caso do Brasil, democraticamente eleita.
Esse é o cenário prevalente, por exemplo, em democracias liberais como Estados Unidos e França. No Brasil, todavia, esse cenário se mostra ainda distante. A conformação histórica do Estado brasileiro e de seus instrumentos armados relegou-nos um instrumento de violência bastante confortável com a ingerência doméstica, conquanto vê em memória distante e ritos esvaziados a defesa da nação – esta, percebida à sua própria imagem e semelhança.
As consequências desse “voltar-se para dentro” se refletem na própria configuração de nossas forças armadas. Inchadas em pessoal, alocadas majoritariamente em grandes centros políticos e econômicos, notadamente no Sudeste, as forças armadas brasileiras parecem mais preparadas para a ocupação territorial que para a guerra no século XXI.
Em outras palavras, temos forças intensivas em pessoal num contexto em que a guerra se faz intensiva em capital/tecnologia. Não à toa a ideia de inimigo interno segue recorrente, não apenas como fantasma não nomeado nos documentos oficiais de defesa, mas como presença marcante no pensamento dos alto-oficiais brasileiros, ainda marcados por uma concepção de mundo da Guerra Fria, em eterna luta contra os “dissidentes” – de ontem e de hoje.
À medida que as forças vão imbricando-se em assuntos domésticos, ampliam sua influência política e garantem nichos cada vez maiores de autonomia. Voltadas para dentro e fora do controle da autoridade civil, agem como bem entendem, vendendo no processo uma imagem de super-aptidão para resolução dos problemas nacionais oriunda da auto-percepção de superioridade face à sociedade, numa expressão do que Manuel Domingos denominou de patriotismo castrense. Parece-nos que é exatamente esse o caso, agora, face à crise ambiental que enfrentamos.
Em segundo lugar, em que pese ações adotadas pelo governo federal em resposta à crise ambiental, como a recém-anunciada Medida Provisória que cria o estatuto jurídico da emergência climática, a opção pelo uso de militares no combate às queimadas verbalizada pelo presidente Lula, somada ao recorrente emprego das forças nesse tipo de operação, acarreta necessariamente um contexto caracterizado pelo denomino de sequestro orçamentário. Sendo a disputa orçamentária sobretudo uma disputa por recursos limitados, por lógica a alocação de recursos numa dada área da administração pública implicaria, pelo menos, a indisponibilidade a uma outra.
Dentre as declarações mais recorrentes quando se fala na necessidade de uma resposta articulada à emergência climática, um dos principais pontos levantados é justamente a falta de orçamento suficiente para o do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática. Nesse sentido, parece-me que a escolha racional diante dos desastres ambientais que nos abatem seria pelo fortalecimento dos organismos competentes para lidar com as catástrofes que enfrentamos. Das enchentes no Rio Grande do Sul às queimadas que se espalham pelo país, há instituições de Estado com histórico e perícia para lidar com isso. Os órgãos do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, o Corpo de Bombeiros, o IBAMA, o ICMBio e até mesmo o INCRA são organismos muito mais adequados para responder ao cenário em tela.
Se é certo que a crise climática e os consequentes desastres ambientais exigem ampla mobilização do Estado, é certo também que há décadas reproduzimos padrões de alocação orçamentária que reforçam a malversação do dinheiro público ao mesmo tempo que enfraquecem os organismos cuja função precípua é atuar na resposta a essas questões.
E esse é o terceiro motivo pelo qual argumentamos contra o recurso às forças armadas para lidar com a crise ambiental. Diante das graves consequências da emergência climática, é urgente reverter o desmonte dos organismos dedicados à pauta ambiental no Brasil, certamente aprofundado durante o governo Bolsonaro, mas fomentando historicamente pelos interesses do agronegócio brasileiro em seu extrativismo predatório. É urgente, pois, garantir orçamento adequado para execução das tarefas de tais organismos, não só perante tragédias, mas de forma permanente.
Temos, portanto, um duplo distúrbio. Do ponto de vista da política ambiental, a consequência do recurso às forças armadas é o enfraquecimento da estrutura de Estado voltada à implementação da política ambiental, especialmente as respostas necessárias à emergência climática. Do ponto de vista da política de Defesa, as forças armadas brasileiras se distanciam cada vez mais da atividade que justifica sua existência e, ao mesmo tempo, ampliam sua ocupação do Estado pela via orçamentária.
Assim, esse texto deve ser visto como um alerta para que não aprofundemos ainda mais os erros que vêm sendo cometidos tanto do ponto de vista da política ambiental quanto no que diz respeito às relações do governo com as forças armadas. O inchaço das fileiras não pode servir de argumento para que sejam empregados em toda e qualquer atividade da administração pública. Afinal, não se combate queimadas com fuzis.
Edição: Nathallia Fonseca