Apagar também é sobre matar alguém. O apagamento é subjetivo, mas ele também pode ser objetivo
"Não quero daqui a 40 anos [ouvir] alguém falar: ‘Nossa, como a Tassia era genial no que ela estava fazendo’, e eu passar uma vida sem receber de volta tudo o que eu estou investindo na arte, tudo o que eu estou entregando para o mundo", diz a cantora Tássia Reis. De álbum novo na praça, ela se sente numa fase "madura" da carreira e confiante para reivindicar um local de respeito na trajetória da música brasileira.
Do Topo da Minha Cabeça segue a trajetória da artista de desfilar por diferentes gêneros, como rap, jazz, R&B, mas agora com um elemento que a própria cantora considera inédito, o samba.
"O que aconteceu é que demorei para entender o samba como música, porque eu pensava nele como comunidade, eu pensava nele como uma vivência que eu tinha ali, com os meus amigos, com a galera que estava ali se ajudando", diz.
Na última faixa do trabalho, Ofício de Cantante, a cantora reverencia mulheres negras sambistas autoras de grandes clássicos imortalizados em rodas do Brasil, no entanto, não devidamente reconhecidas, alerta Tássia Reis.
"Existem tantas formas da gente sofrer racismo na sociedade, e uma delas é o apagamento, o apagamento histórico de pessoas que contribuíram, de pessoas que estão contribuindo com a arte, com a construção de Brasil, com a política", comenta em entrevista ao programa Bem Viver desta terça-feira (17). "Apagar também é sobre matar alguém. O apagamento é subjetivo, mas ele também pode ser objetivo", destaca.
"Quantas artistas negras brasileiras só foram reconhecidas depois de mais velhas? É uma realidade que eu não quero pra mim, sabe? Eu quero minhas flores agora, quero em vida, eu quero aproveitar o que eu tô oferecendo pro mundo, eu quero de volta", conta a artista fazendo referência ao clássico de Nelson Cavaquinho, Quando Eu Me Chamar Saudade.
Na entrevista, Tássia Reis fala sobre os elementos e referências presentes no novo trabalho e na satisfação de pôr seu bloco na praça.
Confira a entrevista na íntegra
Como é para você lançar um novo trabalho? Dá aquele vazio de ter concluído algo grande?
Olha, eu não sou uma pessoa que fica chateada. Tem gente que fica, aquele pequeno processo de luto. Eu não, eu realmente vivo pelo lançamento, tudo é para poder lançar.
Aproveito muito todo o processo de fazer o álbum e é uma delícia, de fato, mas acho que colocar na rua é o que faz a coisa valer. Ver como as pessoas vão acolher, como elas vão ressignificar, porque quando a gente está propondo alguma coisa, quando a gente está criando, a gente está com as nossas ideias.
A música tem muito isso, esse poder. Ela continua nascendo a partir do momento que as pessoas vão ouvindo dando novos significado.
Inclusive, eu trocando essa ideia com um dos diretores musicais, o meu diretor musical e um dos produtores do disco, na verdade, ele estava me falando um pouco dessa sensação e tal... e tem um aplicativo de astrologia que eu gosto e ele me mandou a frase que era exatamente o que a gente estava falando, que é "a arte só nasce quando a gente compartilha com os outros".
Então, tudo o que a gente está criando, se a gente não põe no mundo, ainda não impactou o mundo com aquilo, sabe? Só ganha força quando as pessoas descobrem.
Você sempre foi conhecida por transitar por diferentes gêneros, mas desta vez você pôs os dois pés em algumas coisas, como o soul, R&B, jazz... A que isso se deve?
Olha, não sei se todos os gêneros, mas R&B eu sempre flertei, o neo soul também. O jazz... desde Meu Rap Jazz trago influências. Experimentando de várias formas diferentes, mas tá tudo ali.
Eu acho que o que está acontecendo, agora, talvez seja eu assumir a grande referência que é o samba, talvez seja a novidade.
Então sinto que estou mais madura. Estou amadurecendo ao longo desses 11 anos de caminhada. Eu acho que eu venho afinando a minha capacidade de misturar a sonoridade, e eu acho que isso é uma identidade, na verdade, e que bom que eu fui ousada.
E sinto que estou recuperando essa ousadia. No meu primeiro EP, eu acho que eu fui muito ousada por já de cara querer pisar em tantos lugares, em tantas sonoridades.
Acho que dessas mesmas, a que eu demorei mais para assumir foi o samba. Eu tenho uma experiência com escola de samba na minha adolescência, que foi o que me levou para o hip hop.
O que aconteceu é que demorei para entender o samba como música, porque eu pensava nele como comunidade, eu pensava nele como uma vivência que eu tinha ali, como com os meus amigos, com a galera que estava ali se ajudando.
Isso no interior [de São Paulo], né? Em Jacareí, que é a minha cidade do Vale do Paraíba.
Só fui começar a entender isso ali, pré-pandemia, um pouquinho antes da pandemia começar, no começo de 2020, quando eu escrevi Ofício de Cantante e me toquei que eu já tinha escrito vários outros sambas em outros momentos, que uma das minhas primeiras composições foi um samba.
O álbum parece fazer uma referência ao trabalho de Elza Soares, de 2002, Do Cóccix Até O Pescoço. É isso mesmo, ou foi um processo seu mesmo?
Compor é um processo de autodescoberta muito grande, principalmente quando a gente está comprometido em falar sobre as nossas experiências. E como compositora, como esse tipo de compositora que eu sou, não tem como escrever sem experienciar outras coisas.
Então, isso faz parte da minha história, da minha construção de gente mesmo. E eu tenho vivido alguns desafios. No último ano eu tive uma questão de saúde que fiquei de frente com a morte, vamos dizer assim. Eu tive que reavaliar várias coisas, e acho que entender o quanto tudo é muito breve, quando tudo é passageiro mesmo.
Elza Soares é uma grande referência, acho que pra todo mundo, mas é uma grande referência pra mim.
Tava no meu inconsciente, sem dúvida.Tem algumas coisas desse disco que eu parei e pensei, "Meu Deus, eu acho que se a Elza estivesse aqui, acho que ela gravaria algumas das faixas desse disco". Eu fiquei com essa impressão, com essa ousadia, né?
Eu fico honrada de poder fazer uma música que, supostamente, ela poderia gravar, sabe? Não vamos descobrir, infelizmente, mas eu fico feliz só de imaginar que isso poderia acontecer.
Em Asfalto Selvagem você de muitas maneiras denuncia a violência policial contra a população negra e periférica, certo?
Asfalto Selvagem é a faixa que imagino que tenha mais referência, o próprio título de Asfalto Selvagem vem de uma música de Zito Righi e Seu Conjunto que se chama Poema Rítmico do Malandro, que fala a frase, “Escrevemos samba no asfalto selvagem”, que também retrata realidades periféricas.
A frase "Todo o menino rei é culpado", tá denunciando essa realidade da violência policial, que acontece muito no nosso país e eu sinto que a gente acaba normalizando, não sei se é de tão absurdo que a gente escuta.
A gente acaba se acostumando com algumas coisas, sabe? Não estou dizendo que seja confortável ou bom, mas o tanto de coisa que se vê... acho que quem cresceu nos anos 1990, numa quebrada, numa periferia, viu muita coisa. Eu vi.
Também tem a minha vontade que soasse também como algo de Originais do Samba. Que ao mesmo tempo que está denunciando alguma coisa, também está falando para você levantar sua cabeça e não desistir das suas coisas, apesar de toda a barbárie, de todas as questões que a gente enfrenta.
O samba tem essa capacidade de poder denunciar e de ser leve ao mesmo tempo, de ser dançante, de ser triste, mas de ter a melodia ali capaz de fazer as pessoas se levantarem e seguir em frente.
Já em Brecha a sensação é que você fala de outro racismo... um racismo mais subjetivo, voltado ao apagamento de pessoas negras, certo?
Sim. Em algum momento na pergunta você ia falar a palavra sofisticada, e eu acho que sim. Acho que o racismo vem se sofisticando.
Existem tantas formas da gente sofrer racismo na sociedade, acho que uma delas é o apagamento, o apagamento histórico de pessoas que contribuíram, de pessoas que estão contribuindo com a arte, com a construção de Brasil, com a política.
Apagar também é sobre matar alguém. O apagamento é subjetivo, mas ele também pode ser objetivo.
Muitas vezes as mortes subjetivas acontecem. E enquanto artista, sinto que é o não reconhecimento, ou quando vem muito tardiamente.
Quantas artistas negras brasileiras só foram reconhecidas depois de mais velhas. É uma realidade que eu não quero pra mim, sabe? Eu quero minhas flores agora, quero em vida, eu quero aproveitar. O que eu tô oferecendo pro mundo, eu quero de volta.
Não quero daqui a 40 anos [ouvir] alguém falar: 'Nossa, como a Tassia era genial no que ela estava fazendo!', e eu passar uma vida sem receber de volta tudo o que eu estou investindo na arte, tudo o que eu estou entregando para o mundo.
Acho que não é um pensamento só meu, acho que é um pensamento de muitas artistas.
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Edição: Nathallia Fonseca