Diante da crise da globalização neoliberal surge um novo paradigma de relações internacionais, a Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative-BRI), conhecida como a Nova Rota da Seda. Trata-se de um projeto de iniciativa chinesa que é cuidadosamente retratado no livro A China e a Nova Roda da Seda: da reconstrução nacional à rivalidade sino-estadunidense, de Diego Pautasso e Tiago Nogara. A obra é fundamental para quem quer e precisa entender o processo histórico chinês e sua atual política externa, que se contrapõe ao conceito de unipolaridade encabeçado pelos Estados Unidos desde a derrubada do muro de Berlim, na última década do século 20.
Diego Pautasso, pós-doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Tiago Nogara, doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP), debruçaram-se sobre o megaprojeto. Ele nasceu de uma iniciativa regional e se globalizou com a incorporação da América Latina e Caribe na Cúpula China-Celac de 2017, em Santiago do Chile, quando o Ministro de Relações exteriores da China, Wang Yi, convidou todos os países da região a participarem do projeto. Atualmente 150 países são signatários do Memorando de Entendimento da Iniciativa do Cinturão e Rota, que permite reduzir os custos do comercio internacional, como atestam relatórios do Banco Mundial.
O trabalho de 184 páginas, publicado pela Editora Cultura, de São Paulo, na primeira metade de 2024, é dividido em três partes: o histórico da reconstrução nacional chinesa e seus desafios; a Nova Rota da Seda e o projeto chinês de globalização e a competição sino-estadunidense e a encruzilhada sistêmica. A conclusão mostra um novo sistema disruptivo do paradigma econômico atual.
Resgate histórico
Na primeira parte, os autores nos levam para dentro da milenar civilização chinesa, longeva e próspera, cujas bases foram criadas três séculos antes de Cristo e tem sido capaz de sustentar impérios imensos com estabilidade burocrática e uma ampla capacidade de mobilização de recursos para grandes obras públicas. Nos fazem entender os motivos desta civilização ter sucumbido às agressões o imperialismo ocidental durante o século 19 por um período de cem anos, que ficaram conhecidos para os chineses como o século da humilhação. Este período durou desde a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842) até a revolução de 1949.
Segundo eles, a revolução de 1949 transcende seu caráter socializante que se unifica a um processo de reconstrução nacional. O processo foi marcado por imensas contradições e correção de rumos que comprova a capacidade chinesa de preservar heranças e ao mesmo tempo enfrentar novos desafios.
O estudo mostra as linhas gerais desde a longa marcha que supera o Século de Humilhação e estabelece os fundamentos da reconstrução nacional com Mao Tse-Tung, um posterior ciclo de modernização e prosperidade sob Deng Xiaoping até o seu estágio de desenvolvimento atual, com a consecução de programas e metas ambiciosos.
Eles mostram que, na memória chinesa, a Revolução terminou o Século de Humilhação, fazendo surgir uma nova China independente com a instauração da República Popular da China. Em resumo, a longa estrada rumo ao desenvolvimento da nação entrelaçou a confluência de processos de descolonização, de revolução antissistêmica e de reconstrução nacional a partir de heranças imperiais milenares.
Sob a liderança do Partido Comunista Chinês (PCCh), a partir da virada do século 20 para o século 21 a China entrou em outro patamar de desenvolvimento. Na década de 1980 as exportações chinesas restringiam-se a petróleo, alimentos e outros produtos primários. Durante dos anos 1990, calçados, vestuário, brinquedos e outros bens manufaturados de baixo valor agregado. Na atualidade predominam os equipamentos eletroeletrônicos, motores, veículos, materiais de construção, etc. A participação de empresas chinesas nos mais variados setores de alta tecnologia reflete a mudança do patamar de desenvolvimento.
Os autores afirmam que a matriz energética chinesa é assentada principalmente em carvão, o que fez com que três cidades chinesas entrassem no ranking das dez mais afetadas pela poluição. Apesar disso, o país vem melhorando progressivamente esta condição em função de um conjunto de ações políticas como a arborização das cidades, a modernização das termelétricas a carvão, o fechamento de fábricas defasadas e a ampliação das fontes renováveis. Mesmo assim, justificam que a ênfase em recursos fósseis não difere da média mundial.
A Nova Rota da Seda
Na segunda parte do livro, os autores, antes de falar sobre a Nova Rota da Seda, retomam a história da tradicional Rota da Seda, e relatam as experiencias dos irmãos Polo, do almirante chinês Zheng He. A antiga Rota da Seda interligava a Europa a Ásia Central, chegando até ao Sul da Ásia, incluindo a Índia e a China. Através dela foram transportados a seda chinesa, commodities variadas, metais preciosos tapetes, roupas, vidro, cavalos e escravos.
Segundo eles, a rota permitiu intercâmbio econômico, cultural, biológico e medicinal em toda a Eurásia disseminando de tudo, desde conhecimento até as doenças como a Peste Negra. Foi um dos vetores pioneiros da globalização e da conexão intercontinental.
A obra mostra que, ao retomar este conceito, os dirigentes chineses sinalizam a importância da memória histórica. Um conjunto de outros conceitos fazem parte da linguagem diplomática de Pequim na atualidade, desde o Espírito Baandung, com os cinco princípios da Coexistência Pacífica, até novas formulações baseadas nas relações ganha-ganha.
A Nova Rota da Seda foi lançada em 2013 pelo presidente Xi Jinping. Seus princípios e marcos norteadores foram elaborados em março de 2015 por três agências governamentais: Ministério de Relações Exteriores, Ministério do Comércio e Comissão Nacional de Reforma e Desenvolvimento (CNRD). A inserção e a inclusão estariam centradas nos cinco fatores de conectividade: 1) comunicação política; 2) conectividade de infraestrutura; 3) comércio desimpedido. 4) circulação monetária; e 5) entendimento entre pessoas.
Em 2017, a China sediou o primeiro Belt and Road Fórum for International Cooperations (BRF), em Pequim, com a participação de 30 países. Na abertura, Xi Jinping sublinhou no aprofundamento da cooperação em matéria de diplomacia, cultura, comércio, finanças e infraestrutura. Disse ele que se constituía um caminho para a paz, a prosperidade, a abertura a inovação e a conexão entre diferentes civilizações. Em abril de 2019 houve o segundo BRF já com 40 lideres mundiais.
De lá para cá foram feitos diversos investimentos em infraestrutura de transporte, em energia e comunicações nos mais diversos países asiáticos, europeus e africanos. Os autores sugerem que a Nova Rota da Seda constitui o núcleo de um projeto de globalização alternativo ao da ordem neoliberal, tendo como sustentáculos a cooperação os investimentos em infraestrutura e as relações ganha-ganha. Os autores seguem detalhando os investimentos e a formações dos diversos corredores da Rota.
Competição sino-estadunidense
Na terceira parte, o livro aponta a competição estabelecida entre os dois modelos, o neoliberal liderado pelos Estados Unidos e o de cooperação internacional, centralizado na Nova Rota da Seda sob a liderança chinesa.
Para Pautasso e Nogara não resta dúvida de que a Nova Rota da Seda é fator determinante desta competição bilateral. Do lado norte-americano, desde o segundo mandato de Obama Washington houve deslocamento de sua prioridade para a Ásia e, sob Trump, aconteceu o desencadeamento de uma guerra comercial. Em suma, a guerra comercial, o apoio aos movimentos separatistas na China (Taiwan e Tibete) e o cerco militar têm feito parte de um conjunto mais amplo de ações que obedecem a essa coerência. Iniciou-se uma guerra de taxações.
No entanto a ênfase da inserção chinesa recai no pragmatismo, no respeito ao princípio da não intervenção em assuntos doméstico de outras nações e nas relações ganha-ganha.
A leitura da obra é fundamental para compreensão do mundo atual e para a formulação de políticas externas, pois a China já é hoje a segunda economia do planeta e o principal parceiro comercial de diversos países, incluindo do Brasil. Uma nova rede de relações internacionais se delineia neste novo tempo.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo