Bairro localizado no Grajaú, distrito mais populoso de São Paulo e localizado no extremo da zona sul, a vila São José foi uma das inúmeras comunidades periféricas do país que precisou criar uma linha de frente contra a fome, que aumentou durante o período à medida em que a emergência sanitária era acompanhada pelo aumento do desemprego.
Morador da vila, o assistente social Luiz Alves testemunhou o crescimento vertiginoso da demanda por cestas básicas entre os moradores do bairro. Durante os piores meses da pandemia, a entidade em que atua, o Programa Comunitário da Reconciliação, precisou ampliar sua atuação – são quase quarenta anos dedicados ao contraturno escolar de crianças e adolescentes. O trabalho foi muito além da emergência sanitária.
Luiz conta que, mais de dois anos depois, o Reconciliação ainda recebe pedidos de ajuda da comunidade que não faz parte do quadro das famílias dos jovens que atende. “É uma população que perdeu renda e ainda enfrenta outros desafios, como o aumento do preço das coisas e a crise climática. É um convívio que a gente tem com a escassez que é diário”, lamenta.
Ele também destaca que, entre as famílias atendidas pela ONG, quando não há fome, a insegurança alimentar apresenta-se de outras formas. “Mais de 70% das famílias da comunidade são chefiadas por mulheres que são mães solo e majoritariamente são diaristas, trabalham no comércio. Muitas delas, por exemplo, tinham trabalho fixo para a semana toda. Muitas trabalhavam de forma fixa para alguém, mas agora só são chamadas às vezes, o que aumenta ainda mais a sensação de insegurança alimentar em suas casas com a queda na renda”, alerta.
O I Inquérito sobre a Situação Alimentar no Município de São Paulo, lançado nesta sexta-feira (20), traz dados inéditos sobre a relação dos paulistanos com o acesso à alimentação. De acordo com o estudo, aproximadamente 1,4 milhão de pessoas (12,5%) residia em domicílios em que se experienciava a fome. Outro 1,5 milhão de pessoas (13,5%) vivia em residências com uma quantidade reduzida de acesso a alimentos (insegurança alimentar moderada), e cerca de 2,8 milhões de pessoas (24,5%) residiam em domicílios nos quais foi constatada a preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro próximo (condição classificada como insegurança alimentar leve).
Ou seja, na soma, 50,5% dos paulistanos estão em algum grau de insegurança alimentar e nutricional. A Flourish chart A Flourish chart O levantamento é resultado da articulação entre o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan-SP), o Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional da Cidade de São Paulo (Obsan-PA) e pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Federal do ABC (UFABC).
A realização foi possível a partir da emenda parlamentar, solicitada pela Bancada Feminista (Psol). É possível ver o estudo completo aqui. As 3.300 entrevistas foram realizadas entre maio e julho de 2024 por pesquisadores do Vox Populi, em nove áreas do município. É a primeira vez que um levantamento é realizado na capital, e é a segunda iniciativa do país a nível municipal – o primeiro é o da cidade do Rio de Janeiro, divulgado no primeiro semestre do ano. Os moradores responderam a perguntas elaboradas a partir da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), principal referência para mensurar o tema no país.
A pesquisa também já utiliza uma amostragem baseada nos resultados do Censo de 2022.
Acima da média
A Prefeitura de São Paulo tem destacado seu programa de combate à fome como um modelo elogiado por órgãos internacionais. Em junho, o governo recebeu a visita da embaixadora da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), Carla Barroso, que na ocasião destacou que o modelo adotado poderia ser considerado uma referência para outros países. No entanto, os resultados do Inquérito indicam que os esforços da gestão de Ricardo Nunes (MDB) não impedem que a presença da fome na cidade seja acima da média nacional.
Os pesquisadores explicam que, por São Paulo possuir um custo de vida maior que a média nacional, entre domicílios com rendimento de até meio salário mínimo per capita, a proporção de domicílios em insegurança alimentar moderada e grave em São Paulo (38,7%) era quase o dobro da média nacional (22,0%, segundo o último levantamento do IBGE). Isso significa que, além de ser mais difícil enfrentar a pobreza e valorizar a renda na capital mais rica do país, a fome também é mais frequente entre famílias de baixa renda.
A alimentação da população paulistana também é pouco variada conforme a escassez aumenta: o arroz e feijão apresenta um alto consumo em todas as famílias durante cinco ou dias ou mais da semana (90% para o arroz, 77% para o feijão); mas legumes/verduras e frutas possuem uma frequência menor, de 42,4% e 40,1%, respectivamente. Entre os domicílios que convivem com a fome, o consumo de verduras e legumes, e frutas, está restrito a dois dias ou menos por semana (61,2% e 68,9%, respectivamente) “É algo que a literatura já nos mostra: quanto menor a renda, menor a variedade. Observamos que há um esforço muito grande das famílias para manter o arroz e feijão no prato, mas conforme a situação piora, frutas e legumes são os primeiros itens que elas escolhem tirar do prato”, destaca a nutricionista Luciana Yuki Tomita, uma das coordenadoras do estudo.
“E aí aquela qualidade nutricional que é muito importante, que está nesses alimentos, que previne doenças, acaba existindo pouco na alimentação deles.” A divisão territorial considerada para a pesquisa buscou destacar melhor quais regiões da cidade concentram os maiores e os menores índices de insegurança alimentar moderada e fome: o município é dividido pelo estudo em 8 áreas, “Centro”, “Norte1”, “Norte2”, “Leste 1” e Sudeste”, “Leste2”, “Sul 2”, “Oeste 1 e Sul 1” e “Oeste 2”, classificados de acordo com a distribuição econômica per capita da cidade.
As áreas que apresentaram as maiores proporções de segurança alimentar foram “Oeste 1 e Sul 1” (bairros mais ricos da zona Oeste, como Pinheiros, Perdizes até os centrais Santa Cecília e Consolação) e “Leste 1 e Sudeste” (bairros do Ipiranga até Penha e Vila Matilde, na zona leste), que contam com 66,3% e 65,3%, respectivamente, de sua população, em segurança alimentar. Mesmo nessas regiões, a fome ainda aparece: as duas regiões somam aproximadamente 185 mil pessoas em domicílios em insegurança alimentar grave (fome), o que demonstra como as desigualdades também estão presentes internamente em cada área.
São Paulo repete um padrão que se vê em nível nacional: os índices são piores entre pessoas negras e mulheres. Domicílios em que, na pesquisa, as mulheres eram as pessoas de referência passam 1,8 vezes mais fome do que aquelas em que o homem é a pessoa de referência. Entre os domicílios em que as pessoas enfrentam a fome diariamente, 66,3% tinham como referência uma pessoa negra (preta e parda) e 32,3% uma pessoa branca. A diferença se intensifica quando há o cruzamento entre os indicadores: em domicílios chefiados por mulheres negras, a fome é 2,1 vezes maior do que em domicílios chefiados por homens brancos.
Paulistanos trocam o alimento pela passagem de ônibus
Mestre e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo, e professor da Universidade Federal do ABC, José Raimundo Sousa Ribeiro Junior assumiu a coordenação da pesquisa ao lado dos nutricionistas Daniel Bandoni e Luciana Yuki Tomita, ambos da Unifesp. José Raimundo e Daniel já haviam atuado juntos na construção do Atlas das Situações Alimentares no Brasil, mas sentiam a necessidade de um levantamento a nível local.
O geógrafo explica que era importante trazer luz aos pontos específicos da desigualdade social nas grandes cidades, como uma forma de compreender a influência da dinâmica territorial de cada lugar para a presença dos índices de insegurança alimentar. Ele menciona a mobilidade como um dos principais fatores que apresentam uma característica típica a uma cidade como São Paulo, que tem uma das tarifas mais caras de transporte público do país: em 40,4% entre os domicílios em insegurança alimentar grave (fome), os entrevistados responderam que deixaram de comprar alimentos para pagar a passagem de metrô ou de ônibus.
Exemplo que, para Daniel Bandoni, também destaca a importância de um olhar mais transversal nas políticas públicas alimentares de combate à fome: “É algo inevitável: as pessoas em situação de fome precisam ter um emprego ou procurar um emprego, mas as periferias estão muito longe do centro e a passagem é cara. E para manter uma família você precisa atravessar a cidade para continuar trabalhando. Não seria o momento, talvez, de pensar em políticas que também afetam o combate à fome de outras formas, como o próprio tema da mobilidade”, questiona o nutricionista.
O estudo também reúne outros dados que, tal como a escolha de pagar a passagem ao invés de comprar um alimento, ilustram situações de “constrangimentos relacionados ao orçamento domiciliar”, ou as consequências da baixa renda domiciliar para decisões relacionadas à compra, ou não de alimentos.
Em 65,5% dos domicílios que convivem com a fome, as contas foram prioridade. Já em 36,6% domicílios do mesmo grupo, houve a busca por empréstimos, limite do cartão de crédito ou da conta bancária ou a compras parceladas para adquirir alimentos.
“Recorrer a empréstimos, não é novidade, já temos estudos que indicam que, nos anos 1950, as pessoas, às vezes, não iam à feira, onde os alimentos eram mais baratos e de melhor qualidade, porque estavam presas nos caderninhos da mercearia do bairro”, explica Ribeiro Júnior. “O que se destaca dessa vez é que existe uma proporção maior de gente que deixa de adquirir alimentos para pagar outras contas do que propriamente de gente que pega empréstimo para comprar alimentos.”
Programas sociais a quilômetros de distância
Na Vila São José, além das sequelas da pandemia, Luiz Alves destaca que a comunidade enfrenta a ausência de políticas públicas: as famílias têm dificuldade para verificar se estão cadastradas em sistemas de assistência social da cidade e não contam com serviços próximos ao bairro, como restaurantes comunitários ou Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
“Na Vila São José, o CRAS que nos atende está a pelo menos seis quilômetros de distância, e não temos Bom Prato ou qualquer programa de refeição solidária do governo. Cozinha comunitária é a nossa e de outras iniciativas da comunidade, mas elas não dão conta da demanda”, critica. Dos domicílios que passam fome, 76,3% não têm acesso a um restaurante popular ou cozinha solidária (comunitária), que é uma das principais bandeiras da Prefeitura de São Paulo para o combate à fome.
Já 68,3% do mesmo grupo não eram beneficiados pelo Programa Bolsa Família e 89,5% não recebiam auxílio-gás. Acesso a políticas públicas: 76,3% não têm acesso a um restaurante popular ou cozinha solidária (comunitária) 68,3% do mesmo grupo não eram beneficiados pelo Programa Bolsa Família 89,5% não recebiam auxílio-gás. “Nossos dados não querem dizer que as políticas não alcançam quem mais precisa. Não, elas alcançam sim quem precisa, mas elas são insuficientes. Muitas dessas pessoas que passam fome nem conseguem chegar até essas políticas, não aparecem nos cadastros e é algo que precisamos investigar por que acontece”, aponta Ribeiro Júnior. “A fome em São Paulo está na escala dos milhões, não está na escala dos milhares, nem das centenas. E, às vezes, as ações do poder público são, evidentemente, importantes, mas muito insuficientes.”, acrescenta.
Cientista social e gerente de medidas socioeducativas, José Genaro Pereira de Araújo é morador de Heliópolis, que, com cerca de um milhão de metros quadrados, é a maior favela de São Paulo. Com cerca de 200 mil habitantes, a comunidade conta com uma cozinha comunitária que foi inaugurada em outubro de 2023 pela UNAS Heliópolis e Região, com apoio da Habitat para Humanidade em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
A Cozinha Comunitária Dilza Maria Dias oferece cerca de 400 refeições diárias, quantidade que, Genaro opina, está aquém da demanda das famílias: “É muito importante a comunidade contar com o projeto, mas todo dia você vê que a fila começa a se formar muito cedo: não são nem nove horas da manhã e já tem família esperando, e a cozinha só começa a distribuir as refeições às 11h30. São filas imensas, de virar o quarteirão, e que ilustram como estamos longe de combater a fome de forma ideal”, desabafa.
Outro lado
A reportagem procurou a Prefeitura de São Paulo e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos para comentarem os resultados da pesquisa. A secretaria preferiu não comentar, pois alegou que não teve acesso ao estudo e que as questões exigiam a participação de “muitas pastas”. As perguntas enviadas foram: 1 – Qual índice tem sido utilizado para mensurar o alcance dos programas de combate à fome em São Paulo neste ano (mesmo intervalo da pesquisa) entre a população e qual foi o resultado desse alcance e baseado em quais parâmetros? 2 – A prefeitura tem feito algo para implementar o combate à fome de forma transversal, como pensar no impacto de outras politicas ao problemas, em especial o preço do transporte público? 3 – De que forma a prefeitura tem avaliado a disponibilidade dos aparelhos e como tem avaliado a possibilidade de sua expansão?