Há uma convergência entre evolução da classificação da depressão e o desenvolvimento do capitalismo
Dados de diversas pesquisas e instituições apontam que as questões de saúde mental estão aumentando no Brasil nos últimos anos. O movimento acompanha uma tendência global, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com informações do Ministério da Previdência, os transtornos mentais já estão entre as dez principais causas de afastamento do trabalho no país. A CID F42 (outros transtornos ansiosos) subiu do 10º lugar em 2021 para o 5º lugar, em 2023, com mais de 80 mil afastamentos. A CID F32 (episódios depressivos) também apresentou aumento expressivo, saltando de 49 mil casos em 2021 para quase 68 mil em 2023.
No cenário global, a situação é igualmente preocupante. A OMS indica que quase um bilhão de pessoas viviam com algum transtorno mental em 2019, e o impacto da pandemia de covid-19 agravou o quadro. Depressão e ansiedade aumentaram mais de 25% no primeiro ano da crise sanitária, enquanto os transtornos mentais permanecem como a principal causa de incapacidade no mundo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Elton Corbanezi, autor do livro Saúde mental, depressão e capitalismo, afirma que a lógica neoliberal intensifica a crise de saúde mental.
"Há uma espécie de convergência entre o desenvolvimento da classificação psiquiátrica da depressão clínica e o desenvolvimento do capitalismo. Ele exige um indivíduo cada vez mais performático, que cada vez desempenha, produz e realiza mais. Que ele não só cumpra as metas que tem, mas que as supere. Em um capitalismo que valoriza essa performance e essa excelência, é sintomático que a categoria de depressão acompanhe."
Corbanezi também aponta os contextos de grandes eventos globais, como a pandemia de covid-19, como fatores que exercem impacto direto na saúde mental e intensificam os processos de sofrimento e adoecimento.
"Tivemos uma aceleração de tendências sociais e um deslocamento para a vida digitalizada e plataformas online. A pandemia fez com que a educação se tornasse online, o trabalho remoto se tornasse o novo normal e, consequentemente, uma exigência de maior disponibilidade para o trabalho. Ela acelerou muitas tendências. Ela também acelerou o aumento dos transtornos psiquiátricos, ou, falando de maneira mais ampla, do sofrimento psíquico."
O professor ressalta ainda o peso que as mudanças climáticas exercem no cenário de ampliação das questões mentais. Nas palavras dele, o esgotamento de recursos naturais imposto pelo capitalismo guarda uma analogia com o aumento de condições como a depressão e a ansiedade.
"A crise ecológica e climática parte do princípio extrativista, de extração de recursos naturais. O que vivemos hoje é um esgotamento dos recursos. A crise psíquica, intensificada pela pandemia, pode ser vista sob o mesmo princípio. Extrai-se o máximo da subjetividade dos indivíduos para que eles sejam produtivos no capitalismo informacional. Não é mais o corpo que trabalha, mas as ideias, a inteligência, a iniciativa. Esse princípio leva a um esgotamento psíquico profundo."
Corbanezi afirma que os possíveis caminhos para reverter essa realidade passam pela coletividade e por mudanças estruturais na sociedade.
"Uma sociabilidade oposta à imposta pelo neoliberalismo pode favorecer a saúde mental. Isso não significa que em outros modelos de sociedade não existam problemas psíquicos, existem e eles são de outra natureza. Mas é a ideia de que, para os nossos problemas específicos, nossa forma de sociabilidade tende a agravar. É muito difícil atenuar e, por isso, ficamos remetendo ao indivíduo. Se torna um ciclo vicioso do qual não conseguimos sair."
Ouça a entrevista na íntegra no tocador de áudio abaixo do título desta matéria ou leia a seguir.
Brasil de Fato: Professor, a partir do repertório que o senhor acumulou nesse tempo de pesquisa sobre o tema, é possível dizer que o capitalismo impossibilita a boa saúde mental?
Elton Corbanezi: Essa é uma pergunta aparentemente simples, mas realmente muito complexa. É importante esclarecer um aspecto, eu falo a partir da sociologia, como sociólogo. Como disse o sociólogo estadunidense C. Wright Mills, assim como o sapateiro só vê o couro na frente, o sociólogo e a socióloga veem a sociedade. Então é muito difícil responder do ponto de vista do indivíduo, que é, no fim das contas, um objeto muito mais da psicologia. Mas, por outro lado, sociedade e indivíduo não existem sem o outro. Então há uma relação.
Já que falei da psicologia, faço uma menção muito rápida ao fundador da psicanálise, Freud, que no texto O mal-estar na civilização, que é um texto bastante sociológico também, pergunta justamente qual o sentido da vida. E ele diz que não dá para responder isso. Mas o que podemos inferir a partir da conduta das pessoas, dos indivíduos, é que eles buscam a felicidade. Então, se essa vida não tem sentido, a partir da conduta, podemos inferir que o que se busca é a felicidade.
No entanto - e Freud está escrevendo já na era industrial, que é o capitalismo -, ele vai dizer que, em que pese essa tentativa de ser feliz, ela é impedida pelo menos por três motivos: o primeiro deles é a natureza externa, as catástrofes ambientais etc. Podemos pensar nas queimadas hoje no Brasil. O segundo é a nossa natureza, do nosso próprio corpo que envelhece, que adoece. O terceiro aspecto que impede são as relações sociais, que embora sejam também motivo de felicidade, muitas vezes são absolutamente tensas.
Pensando um pouco no assunto, vivemos a mesma época de alguma forma. A felicidade, em termos sociais, é muito difícil de ser assegurada ao indivíduo, porque não tivemos ruptura com relação a esse período que Freud [Sigmund, psicanalista austríaco] está falando, que é já do capitalismo industrial. O neoliberalismo é uma nova etapa do capitalismo, podemos perfeitamente pensar dessa maneira.
Eu não vou responder se é possível ou não ser feliz, mas os recursos que vemos hoje em dia são atribuídos ao próprio indivíduo. Você tem que ser um bom gestor da sua própria vida, você tem que comer bem, você tem que se alimentar bem, você tem que fazer atividades físicas, meditação, medicação. Todos os recursos, em geral, são bastante individuais, muito voltados ao autocuidado.
Do ponto de vista sociológico e social, enquanto estrutura do mundo em que vivemos, ela, em larga medida, impede essa felicidade. Temos relações absolutamente competitivas, individualizadas, fragmentadas. Então, talvez um caminho, pensando estruturalmente, seja pensar em novas formas de sociabilidade, em um aumento qualitativo de relações sociais. São aspectos que podem talvez atenuar um pouco o sofrimento de não ser feliz.
Qual é a análise que o seu livro Saúde Mental, Depressão e Capitalismo traz sobre esse cenário?
Agradeço a pergunta por dois motivos. Primeiro, que permite esclarecer um pouco o que eu falei sobre a ruptura em relação ao período que Freud escreveu, e acho que é importante. E depois para comentar um pouquinho sobre essas pesquisas que eu realizei.
Eu falei que não houve uma ruptura em termos de que o capitalismo permanece, mas as formas são alteradas, os paradigmas são alterados. Então, antigamente, tínhamos o que no campo da sociologia chamamos de um capitalismo fordista, um capitalismo disciplinar, muito bem mostrado no filme Tempos Modernos do Chaplin [Charles, ator britânico], em que o corpo é chamado à obediência, o horário, o espaço, tudo absolutamente controlado. Isso é o capitalismo industrial.
Agora vivemos - a nomenclatura é variadíssima no campo da sociologia - um capitalismo pós-industrial, um capitalismo informacional, cognitivo, imaterial. Há, sim, uma mudança de paradigma muito significativa, em que não é mais o modelo da obediência institucional disciplinar, e muito mais um modelo da liberdade individual, da autonomia, e isso pesa sobre o indivíduo hoje.
Do ponto de vista da saúde mental, isso altera também os problemas. Na época de Freud, ele estava lidando com a histeria, com o problema da interdição, da obediência, da transgressão no nível do conflito psíquico. Hoje estamos lidando com patologias da liberdade, da realização de determinados valores sociais. O que é a depressão? É o fracasso diante de valores sociais que o indivíduo não consegue realizar. O burnout é o esgotamento.
O livro Saúde Mental, Depressão e Capitalismo foi publicado pela editora Unesp em 2021. Ele é resultado da minha tese de doutorado em sociologia na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que terminei no final de 2015. É um estudo sobre o desenvolvimento da categoria. Primeiro, da formação desse conceito que chamamos de saúde mental, porque ele é um conceito que tomou lugar, tem um espaço na discussão, na opinião pública, no debate público. Ele não é um conceito apenas científico, técnico. Antes ele era, mas hoje sabemos que não, e a pandemia mostrou isso muito claramente.
Para ele ganhar essa popularidade, o conceito de saúde mental teve um longo percurso desde os anos 1940, desde a fundação da ONU [Organização das Nações Unidas]. Podemos pensar que, em 1948, a OMS tem um papel bastante importante, junto com uma série de outros movimentos globais com relação à psiquiatria, aquilo que chamamos de desinstitucionalização da doença mental, que nada mais é do que o processo de desospitalização. Não deixar mais o doente mental fechado num hospital, numa instituição, e, sim, ter o tratamento no espaço aberto e comunitário.
Então são os movimentos da antipsiquiatria, o desenvolvimento da farmacologia, o desenvolvimento e a institucionalização dos direitos humanos. Tudo isso faz com que esse conceito de saúde mental vá substituindo lentamente o conceito [anterior] de doença mental. A primeira parte do meu estudo é justamente: de onde provém esse conceito de saúde mental que usamos no nosso dia a dia hoje? É uma tentativa de fazer uma espécie de genealogia dele.
Estabelecido isso, a segunda parte do estudo faz uma relação entre depressão e capitalismo, e a própria saúde mental. Se antes o conceito de doença mental estava circunscrito ao domínio do patológico, agora ele se amplia e envolve também o aspecto patológico em seus mais variados graus, desde o mal-estar, um sofrimento psíquico leve, até a psicose, as doenças mais graves como a esquizofrenia. Mas também envolve a medicina do bem-estar ou toda a questão do bem-estar.
E aí eu pego o caso da depressão, particularmente, e pergunto, em termos sociológicos, como é produzida a ideia de epidemia depressiva. Porque vivemos, desde os anos 1970, um momento em que a depressão adquire uma visibilidade muito grande, científica, oficial - pensando na própria OMS - e midiática. Ela aparece como o grande mal-estar do século 20, com projeções cada vez mais tenebrosas, inclusive para o século 21.
Eu procuro, a partir dessa genealogia da saúde mental, tentar entender como a depressão se torna essa doença tão paradigmática, tão emblemática do nosso período e como se produz socialmente o discurso de que nós vivíamos e viveríamos, cada vez mais, uma epidemia depressiva.
Para fazer isso, na segunda parte do estudo, eu faço uma análise sobre a categoria da depressão propriamente, como ela evolui, qual é o conhecimento psiquiátrico da depressão e como ele se desenvolve ao longo dessa segunda metade do século 20 até os nossos dias, acompanhando o próprio discurso da saúde mental.
Um achado que eu procuro sustentar no trabalho é que existe, de fato, a categoria central de depressão, que a nomenclatura chama de transtorno depressivo maior, aquele transtorno que realmente abate o indivíduo, que o deixa completamente prostrado. Mas, em torno dele, ao longo do desenvolvimento dos manuais psiquiátricos - em particular o DSM, que é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana, e que orienta a prática clínica de maneira geral e as pesquisas epidemiológicas -, eu encontrei uma variação, uma multiplicação muito significativa dos transtornos depressivos e mesmo uma atenuação do que se considera sintoma.
Há uma mudança significativa a partir do DSM-3, de 1980. Essa ideia de duração, frequência e intensidade vai ficando cada vez mais reduzida. Então você tem categorias como, por exemplo, transtorno depressivo com sintomas insuficientes. Se os sintomas são insuficientes, como tem o diagnóstico? É claro que há todo um discernimento clínico em relação a isso, não é algo irresponsável, é algo muito bem fundamentado, mas são categorias que vão mostrando como cada vez mais se tolera menos o sofrimento e a retirada da vida social.
O que define o transtorno mental? Diferentemente de outras doenças, você não pode fazer um exame laboratorial e dizer, 'o problema é esse'. Uma das maneiras de diagnosticar esses transtornos é a capacidade de funcionamento do indivíduo na vida social, familiar, escolar, profissional. Se o indivíduo não funciona muito bem e ele sofre diante disso, você chega ao diagnóstico.
O que podemos perceber é que a duração, frequência e intensidade são cada vez mais significativamente reduzidas. Por exemplo, no DSM-4, o luto normal, quando a pessoa perde um ente querido, poderia ter uma duração de até dois meses. Do DSM-4 para o DSM-5, isso foi objeto de muita discussão pública inclusive, essa duração do luto foi reduzida de dois meses para duas semanas.
É claro que existem muitas nuances, há muita complexidade, muita fundamentação, mas dizendo grosso modo, você tem uma redução significativa em termos de duração, que é um índice, um indicativo de que se tolera menos a retirada da vida social. É nesse sentido que eu procuro fazer uma relação com o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, sobretudo após os anos 1970 e 80, quando da ascensão do neoliberalismo como algo global, os processos de neoliberalização.
Isso indica para nós como há uma espécie de convergência entre o desenvolvimento da nosologia [ciência que estuda e classifica as doenças] psiquiátrica da depressão, da categoria clínica, e o desenvolvimento do capitalismo, que exige um indivíduo cada vez mais performático, que cada vez desempenha mais, que cada vez produz mais, que cada vez realiza mais. Que ele não só cumpre as metas que tem, mas tem que superar as metas. Hoje, pensando no capitalismo de plataforma, não basta dar o suficiente, tem que ser sempre excelente, sempre tem que ser mais. As avaliações têm que ser sempre excedentes.
Num capitalismo, que valoriza essa performance, essa excelência, é sintomático que a categoria de depressão acompanhe. Há uma redução e uma multiplicação das categorias diagnósticas, ainda que a categoria nuclear – aquela que realmente torna o indivíduo completamente disfuncional – sirva como a grande referência. Mas as categorias que gravitam em torno da categoria principal mostram isso de alguma forma. Se produz a ideia de uma depressão a partir também desses critérios próprios da sociedade capitalista, que são de produtividade, desempenho, performance.
Temos cada vez menos tempo para sofrer, então, no contexto do capitalismo?
Sim, é claro que estamos falando de uma maneira bastante esquemática. A realidade é sempre muito mais complexa, mas precisamos, ao mesmo tempo, radicalizar os traços para poder fazer análise. Eu acho que é nisso que se baseia também a análise sociológica. Sim, grosso modo, temos cada vez menos tempo para realmente sofrer. Essa redução do luto, do meu ponto de vista, é bastante sintomática, no sentido da ideia de redução de uma tolerância ao próprio sofrimento.
A pandemia de covid-19 exacerbou esse cenário?
Com relação ao luto, é sempre importante termos responsabilidade no que dizemos. Não significa que, se a pessoa sofre duas semanas, ela vai ter o diagnóstico. O discernimento clínico é fundamental para avaliar todo o conjunto. Mas, do ponto de vista mesmo epidemiológico e da descrição dos sintomas, isso se aplica, é essa a orientação que tem.
Com relação à pandemia, essa questão aparece de uma maneira bastante dramática, em particular no Brasil. A pandemia, para nós enquanto sociólogos, de maneira geral, foi um grande laboratório social. Inicialmente, vimos uma série de reflexões de intelectuais de muita relevância, dizendo que poderíamos estar em uma etapa de transição do capitalismo neoliberal e que o estado de bem-estar social seria reativado.
O que tivemos, e uma boa parte da análise sociológica mostra, foi uma aceleração de tendências sociais. Um deslocamento para a vida digitalizada, plataformas online, uma série de iniciativas que já estavam aguardando seu momento. A pandemia fez com que a educação se tornasse online, o trabalho remoto se tornasse o novo normal e, consequentemente, uma exigência de maior disponibilidade para o trabalho. Ela acelerou muitas tendências.
Ela também acelerou o aumento dos transtornos psiquiátricos, ou, falando de maneira mais ampla, do sofrimento psíquico. As dores são muito diferentes em relação às maneiras como se viveu todo esse processo. Mas o fato é que há uma série de estudos, inclusive da OMS, mostrando um aumento significativo dos transtornos mentais e do sofrimento psíquico, que já era uma curva. Ela intensificou bastante esse processo social.
O contexto de mudanças e catástrofes climáticas intensifica esse processo social?
Existem muitas relações e analogias entre essas duas crises. O medo do apocalipse, do fim do mundo, já gerou uma categoria, que não é formalmente clínica, mas a chamada ecoansiedade. É um sofrimento de ansiedade e angústia, principalmente sentido por jovens, em relação ao futuro ecológico, climático e ambiental. Isso traz uma impotência da ação individual e o medo em relação ao futuro.
Essa angústia é acompanhada da culpa por não conseguir agir de uma maneira que promova mudanças estruturais. Essa é uma relação interessante, embora bastante dramática, que liga saúde mental com preocupações ecológicas e climáticas.
Falando da pandemia, das mudanças climáticas, das dificuldades de respiração, também podemos pensar que a covid-19 matava por asfixia em boa parte dos casos. O ar é um elemento vital, sem ele não vivemos. É possível lembrar de outras formas de asfixia, como a que ficou simbolizada com a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, com relação ao racismo.
Podemos alargar um pouco mais essas relações e pensar em uma analogia. Nós vivemos em uma forma de organização social que produz um tipo de subjetividade. A nossa subjetividade não é natural e nem individual, ela é coletivamente construída. Nós compartilhamos valores de liberdade, autonomia, realização, ação e iniciativa. Essa subjetividade, levada ao extremo, também pode nos asfixiar.
Nesse sentido, eu acho que existe uma analogia profunda. A crise ecológica e climática parte do princípio extrativista da natureza, da extração de recursos naturais. O que estamos vivendo hoje é um esgotamento dos recursos. A crise psíquica que atravessamos, intensificada pela pandemia, também pode ser vista sob esse mesmo princípio. Procuramos extrair o máximo da subjetividade dos indivíduos, para que eles sejam produtivos no capitalismo informacional, cognitivo e material. Não é mais o corpo que precisa trabalhar, são as ideias, a inteligência, a iniciativa. É o mesmo princípio de extração de recursos e isso leva a um esgotamento psíquico.
Podemos pensar que esse modelo de sociedade leva a um esgotamento total, que é natural e psíquico. Movimentos ecológicos politicamente consequentes defendem que não se trata apenas de alterar o clima, mas de alterar o sistema. A cosmologia indígena também fala que não existe essa ideia de desenvolvimento sustentável. É uma contradição de termos. A noção de desenvolvimento do capitalismo é naturalmente insustentável.
Voltando à pergunta inicial: é possível ser feliz nesse paradigma? É claro que existem muitos graus, variedades, complexidades e é difícil fazer essa generalização. Mas, de maneira geral, temos a produção de um esgotamento total, um esgotamento dos recursos naturais e um esgotamento de recursos psicológicos subjetivos. Tudo mobilizado para que um determinado modelo de sociedade socioeconômico cultural funcione.
Em suas pesquisas, o senhor observou iniciativas, caminhos e maneiras de combater esse esgotamento mental e social?
Existem muitas iniciativas nesse sentido. Desde o ponto de vista institucional, podemos pensar na Rede de Atenção Psicossocial no Brasil, os CAPS, que priorizam formas coletivas de tratamento comunitário. Claro que há muitas deficiências na implementação. Há experiências muito diversas que também trazem um princípio menos individualizante que o neoliberalismo e a psiquiatria.
Existem experiências, como a psicoterapia institucional, que busca reverter as relações hierarquizadas da psiquiatria tradicional e traz coletivos ou oficinas de trabalho que ampliam significativamente as relações sociais. Isso tem muitos impactos positivos. Trabalhos como o de Nise da Silveira [médica psiquiatra brasileira] com relação à produção artística. Existem muitas iniciativas exitosas
Um exemplo emblemático é o trabalho de Guilherme Boulos [deputado federal e candidato à Prefeitura de São Paulo pelo Psol]. Ele fez um mestrado em psiquiatria na USP [Universidade de São Paulo] sobre a depressão em ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. A pesquisa mostra que pessoas que compartilham uma situação de precariedade absoluta, que ingressam no movimento com vidas despedaçadas, com problemas gravíssimos.
Ao serem integradas ao movimento e participarem do cotidiano, há um reconhecimento, uma superação da invisibilidade, uma participação na vida coletiva, solidariedade e aumento da autoestima. Mesmo que essas pessoas não consigam uma casa, o fato de participar da vida comunitária atenuou os índices de sofrimento relacionados à depressão.
Menciono essa experiência porque ela mostra como uma sociabilidade oposta à imposta pelo neoliberalismo pode favorecer a saúde mental. Isso não significa que em outros modelos de sociedade não existam problemas psíquicos. Existem e eles são de outra natureza. Mas é a ideia de que, para os nossos problemas específicos, nossa forma de sociabilidade tende a agravar. É muito difícil atenuar e, por isso, ficamos remetendo ao indivíduo. Se torna um ciclo vicioso do qual não conseguimos sair.
Há muitas experiências e saberes com os quais podemos aprender, a começar pelos nossos ancestrais e pelos povos indígenas. Eles têm muito a nos ensinar sobre a crise climática e sobre sociabilidade. O problema, como sempre, é estrutural.
Edição: Martina Medina