Danilo Serejo, líder quilombola em Alcântara, no Maranhão (MA), recebeu com espírito crítico o acordo firmado entre os quilombos alcantarenses e o Programa Espacial Brasileiro, conduzido pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e assinado e sacramentado na última quinta-feira (19).
“Considero um passo importante, mas é preciso ter cautela e evitar comemorações imediatistas”, afirmou Serejo.
“Os documentos assinados ainda não põem fim ao conflito como amplamente dito e divulgado. Apesar de importantes, o Decreto de Interesse Social e a Portaria de Reconhecimento não atacam diretamente o cerne do problema - a titulação -, que, de acordo com o Termo assinado, o governo tem o prazo de um ano para iniciar os trabalhos de titulação. Vai conseguir? Não sei. Torço que sim. Em não conseguindo, nada impede que militares rompam [o acordo]. Afinal, precedentes temos de sobra”, explicou o líder quilombola, em comunicado enviado ao Brasil de Fato.
O acordo coloca fim a um litígio de 44 anos em Alcântara. No início da década de 1980, 312 famílias quilombolas foram expulsas de suas casas pela Força Aérea Brasileira (FAB) para que o Programa Espacial em curso no país se desenvolvesse na região.
Desde então, os quilombolas tentam recuperar seu território e tiveram que enfrentar a pouca disposição de diálogo dos governos dos ex-presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), que tornaram possível que empresas estadunidenses se apropriassem das operações de lançamento de foguetes feitos no Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA).
O acordo firmado entre quilombolas e Programa Espacial Brasileiro determina que os quilombos deixem de questionar juridicamente a área ocupada pelo CLA. Por sua vez, o Brasil referendará a posição quilombola sobre seus territórios, oficializando a titulação de suas terras, o que deve ser feito em até um ano.
Em seu discurso, durante ato em Alcântara, Lula afirmou: “vamos dar um tratamento civilizado a uma parte de povo que está esperando justiça desde 1980, quando vocês foram expulsos dos territórios de vocês".
Perdão formal
Serejo adverte que o Estado brasileiro possui um histórico de descumprimento de acordos firmados com Alcântara. "Isso não me permite comemorar ainda. Até acordos judiciais os militares não cumpriram”, lembra.
O impasse entre o Brasil e os quilombolas foi parar, em 27 de abril de 2023, na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), onde o Estado brasileiro reconheceu que violou direitos de comunidades quilombolas e emitiu um pedido de desculpas formal às populações deslocadas forçadamente após a construção do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão.
Durante a audiência, o advogado-geral da União, Jorge Messias, falou em nome do Estado brasileiro. “Como consequência dessa violação, e ciente da natureza própria de que se revestem as medidas de reparação por violações ao direito internacional, em nome do Estado brasileiro manifesto nosso mais sincero e formal pedido de desculpas à senhora Maria Luzia, ao senhor Inaldo Faustino e aos demais membros das comunidades quilombolas de Alcântara”, afirmou o brasileiro, se referindo a alguns dos envolvidos no caso que participaram da audiência.
Danilo Serejo é representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), uma das organizações envolvidas no processo movido no âmbito da CIDH. Ele fez a defesa dos quilombolas no julgamento, pedindo cautela até o cumprimento pleno do acordo.
“O pacote é bonito, lustroso, brilhoso e cheira bem, mas eu sou cético porque o histórico de descumprimento de Acordos em Alcântara é grande e não me permite brindar nada ainda. Por ora, prefiro permanecer com minha cadeira nas mãos (risos). O Termo de Conciliação em si apresenta uma falsa sensação de solução, dada a fragilidade jurídica presente, mas, atende muito bem a interesses outros do que proteger efetivamente as comunidades”, diz o líder quilombola.
História do conflitos
O histórico da contenda remonta a 1983, quando 312 famílias de quilombolas foram expulsas de seu território, em Alcântara, município de 22 mil habitantes, e transferidas para agrovilas mais ao sul do estado. Lá, ganharam lotes de 16 hectares.
“Não sei nem porque chama ‘agrovila’, de agro não tem nada. É um projeto que deu errado. Eu moro em uma das agrovilas, nunca deu certo, nos colocaram em um lugar onde não temos como nos sustentar”, explica Antônio Marcos Pinho Diniz, presidente do sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara, em entrevista ao Brasil de Fato, em 2022.
Três anos antes, o então governador do estado, Ivar Saldanha (PSD), havia desapropriado 52 mil hectares do território ocupado pelos quilombolas e os entregou para a União. A medida fazia parte do projeto de construção do Centro de Lançamento de Alcântara CLA, encampado pelo ditador João Batista Figueiredo (1979-1985) e administrado pela FAB.
Em 2008, um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação elaborado pelo Incra, garantiu 78,1 mil hectares da região para as comunidades quilombolas e limitou o espaço da base aérea a 8 mil hectares.
Em 2010, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Estado reivindicou outros 12 mil hectares na área costeira de Alcântara. A nova aquisição nunca foi confirmada, mas as 792 famílias de quilombolas da região vivem, desde então, com medo dessa possibilidade.
Em março de 2019, Brasil e Estados Unidos firmaram um contrato que garante aos estadunidenses o direito de explorar a base de Alcântara. A possibilidade de ampliação da área do CLA, — que hoje é de 8 mil hectares — está prevista no documento.
Edição: Douglas Matos