Três ramos industriais muito rentáveis estiveram na aurora da modernidade: o metalúrgico, o naval e o açucareiro. Rivalizavam em sofisticação tecnológica e importância estratégica. A indústria açucareira nasceu globalizada e o teor energético do açúcar mudaria a condição alimentar da humanidade.
Para produzi-lo além-mar, o colonizador assassinou nativos, trouxe escravizados da África e tocou fogo na mata.
O engenho precisava de gado como fonte proteica, força de tração e meio de transporte. O couro servia para mil aplicações. A cultura do tabaco e a extração do ouro também precisaram do boi.
Os sertões foram tomados pelos rebanhos. O colonizador dizimou povos originários e tocou fogo em bioma especialíssimo, favorável à reprodução humana. Na caatinga, o fogo era aceso antes das chuvas para o rápido florescimento de ramagem que engordasse o boi.
Centenas de espécies que ajudavam a nutrir a população sumiram para sempre. A drenagem natural das chuvas foi destroçada. Antigos bebedouros e nascentes desapareceram. No Ceará, já no final do século 18, o colonizador criara o maior rio seco do mundo, o Jaguaribe.
Na Europa, a indústria têxtil avançara no século 19. Mais fogo na mata para produzir algodão.
Os ricos e civilizados aprenderam a beber café e, para produzi-lo, os colonizados continuaram tocando fogo na mata.
No Brasil, as cidades cresciam e demandavam proteína animal. Para a criação de bovinos, seja extensiva (em terras abertas) ou em espaços demarcados, tocava-se fogo na mata.
A reprodução dos rebanhos passou a depender de chapadas montanhosas e, sobretudo, do Vale do Parnaíba. Todos cantavam "o meu boi morreu, o que será de mim, vou mandar buscar outro, maninha, lá do Piauí". Essa foi a primeira canção entoada de norte a sul do Brasil.
A agressão aos biomas mostraria suas consequências em 1877, quando eclodiu a maior crise humanitária da história do Brasil: meio milhão de pessoas morreram de fome, sede e peste. A população brasileira girava em torno de dez milhões.
Não fosse o refrigério do Vale do Parnaíba, onde havia água, peixe, carne, mel e frutas nativas, a mortandade seria maior. Meio século se passara desde que dois cientistas austríacos descreveram o Piauí como a Suíça brasileira.
Os países industrializados precisaram de cera de carnaúba, óleos vegetais e borracha natural. A exploração avançou nos biomas do Meio Norte e na Amazônia. As divisas resultantes beneficiariam a industrialização concentrada no Sudeste, observou Celso Furtado.
A ditadura militar empenhou-se em garantir a venda das riquezas naturais. Abriu estradas na floresta e ofertou grandes glebas ao estrangeiro.
Os governos democráticos persistiram com igual orientação, agora entregando a mata aos monocultores e mineradores. As velhas práticas de dizimação dos povos originários persistiram. Além de fogo, o mato foi atingido por produtos químicos.
A defesa ambiental entrou em pauta há décadas sem que houvesse revisão do modelo agrícola basicamente definido na colonização. O Estado apoiou os agroexportadores.
Essa de "celeiro do mundo" é roubada. O lucro não fica aqui. Vai para o estrangeiro que controla as finanças e o comércio internacional. Beneficia quem produz máquinas e insumos agrícolas.
A agricultura moderna não gera empregos no campo: gera demandas à indústria. No caso brasileiro, não beneficia nem o campo nem a cidade.
Monocultura para exportação é desgraça. Incendeia a mata, empobrece o ambiente e prepara calamidades. Enriquece poucos e deixa o povo sem arrimo. O Piauí, que forneceu proteína para boa parte dos brasileiros, hoje bebe leite de São Paulo.
Desastre ambiental não é emergência, é rotina histórica, velha como a colonização; é traço permanente da economia agrícola prioritariamente voltada para a demanda externa.
Há quem diga que os incêndios de hoje são criminosos, provocados para atingir Lula. Assim, encobre-se perversidade secular. Que os bandidos sejam presos, mas não vale esquecer que o crime maior é o tipo de agricultura incentivado pelo Estado.
Não há plano de combate ao fogo que dê jeito. Nem programa de defesa ambiental que atenue a perda da biodiversidade ou programa assistencial que tire da penúria milhões de famintos de hoje e de amanhã.
O que precisamos é de uma agricultura que produza comida farta, barata, diversificada, saudável e que não nos jogue fumaça nos olhos.
Onde se viu governo progressista bater palmas para o Matopiba?
O Brasil precisa de um tipo de desenvolvimento que sepulte a mentalidade colonial prevalecente, inclusive em importantes parcelas da esquerda.
*Manoel Domingos Neto é doutor em História pela Universidade de Paris e professor da Universidade Federal Fluminense.
**Este é um artigo de opinião e não expressa necessariamente linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires