Imagine se a maior cidade do Brasil oferecesse alimentação livre de agrotóxicos nas 2,7 milhões de refeições que alimentam um milhão de crianças na rede municipal de ensino. Um círculo virtuoso em que bebês e crianças passariam a ter acesso a uma alimentação mais saudável desde os primeiros anos de vida e em que as compras públicas garantiriam a pequenos produtores mais segurança para investir na transição agroecológica e na produção orgânica.
Parece um sonho lindo, mas poderia ser a realidade da alimentação escolar na cidade de São Paulo, não fosse o descumprimento sistemático de uma legislação municipal que torna obrigatória a inclusão de orgânicos na merenda. A capital deveria estar a apenas dois anos de garantir 100% de alimentação livre de venenos. Mas a realidade está bem distante da meta: no ano passado, apenas 4% do que foi servido nas escolas era orgânico. Os contratos de compras firmados em 2023 somam R$ 10,8 milhões, segundo informou a Secretaria Municipal de Educação. Caso a lei fosse cumprida, a Prefeitura de São Paulo deveria ter adquirido cerca de R$ 230 milhões de orgânicos e/ou itens agroecológicos, valor que representa metade do total de gastos com alimentos e conforme determina o plano de metas criado pela legislação municipal.
Apenas uma parte desses contratos está disponível no site da Secretaria Municipal de Educação. São compras de banana, doce de banana, feijão e polpa de tomate orgânicos.
Para efeito de comparação, há pouco mais de dez anos, em 2013, a primeira compra pública de orgânicos para a alimentação escolar em São Paulo foi de quase mil toneladas de arroz orgânico em um contrato de R$ 2,4 milhões firmado com uma cooperativa gaúcha. Ao ser criada, em 2015, a Lei 16.140 previa um aumento progressivo e ano a ano das compras de orgânicos feitas pela Prefeitura de São Paulo para a alimentação escolar. O objetivo era sair de 3% do total de compras em 2017 para 100% em 2026.
Em 2018, o percentual de aquisição de orgânicos estava perto de 5%.
Essa marcha à ré fez com que agricultores se vissem obrigados a rever planos e investimentos. “Acompanhei todo o processo da lei. Fomos uma das primeiras cooperativas a fornecer produtos orgânicos para a prefeitura, depois o doce de banana”, lembra Marcelo Fukunaga, que faz parte da Cooperativa de Agricultura Familiar de Sete Barras, interior de São Paulo.
Na época não se imaginava que uma guinada ideológica e de modelo de governança da gestão municipal inviabilizariam a plena execução de uma ideia sonhada e batalhada durante alguns anos, em que pese todo o esforço para criar um arranjo institucional apto às peculiaridades da produção orgânica e agroecológica. Agricultura Orgânica e Agroecológica.
Demanda antiga
Criar uma lei que obrigasse o poder público municipal a comprar esses alimentos era uma demanda antiga de entidades da sociedade civil ligadas ao tema e que teve a adesão e a colaboração de gestores públicos e vereadores. Essas discussões culminaram em um texto mais amadurecido em relação à primeira tentativa de apresentar um projeto de lei.
Em 2015, o ambiente político na cidade de São Paulo tornou-se favorável para que o projeto fosse apresentado pelo Legislativo municipal, por vereadores de diferentes matizes ideológicos, e sancionado pelo então prefeito, Fernando Haddad – hoje, ministro da Fazenda.
A chamada Lei dos Orgânicos de certa forma caminha na mesma direção do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Pnae, uma política pública bem sucedida atualmente responsável por alimentar 40 milhões de estudantes. Uma lei federal de 2009 criou uma previsão de repasses do governo federal para que a compra da agricultura familiar corresponda a pelo menos 30% dos recursos.
A lei municipal vai além. Prevê compras de orgânicos e/ou alimentos de base agroecológica, além de propor aumento progressivo até a totalidade das compras (em vez de apenas um percentual).
Na regulamentação da legislação, foi criado um Plano de Introdução Progressiva de Alimentos Orgânicos ou de Base Agroecológica, com metas anuais e monitoramento por parte dos órgãos de controle e uma comissão mista. A Prefeitura de São Paulo não nos informou se houve de fato o controle social previsto no texto, nem o motivo de a legislação não estar sendo cumprida.
“A alimentação escolar movimenta o sistema de produção de alimentos. O volume realmente é muito grande. Então, se a Prefeitura de São Paulo decidir comprar banana, ela vai comprar muita banana”, explica Giorgia Russo, atual presidente da Comissão Gestora da Lei de Orgânicos na Alimentação Escolar de São Paulo e especialista em Saúde Pública pelo Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).
Desde abril do ano passado, a comissão voltou a se reunir periodicamente para discutir o tema.
Raio privatizador
Tudo andaria mais ou menos bem até 2018, ano em que o município comprou hortaliças, arroz, suco de uva, doce de banana, banana e molho de tomate orgânicos, além dos alimentos da agricultura familiar previstos no Pnae. O ex-prefeito João Doria entrava no segundo ano de seu curto mandato à frente da capital paulista (2017-2018).
“Quando entra o Doria, essa engrenagem estava funcionando. Havia uma equipe técnica muito robusta que segurou um tempo essa onda. A lei dos orgânicos foi avançando, ela estava sendo cumprida”, lembra Giorgia Russo. “Avançaram com as compras, mas os desafios ficaram meio que abandonados. E, com a pandemia, essa engrenagem para de funcionar totalmente.”
Em 2019, a comunicação institucional da prefeitura chegou a divulgar informações distorcidas sobre a legislação, misturando os números de agricultura familiar e de orgânicos. A gestão Doria e a de seus sucessores, Bruno Covas e o atual prefeito e candidato à reeleição, Ricardo Nunes, apostaram na terceirização da gestão da rede municipal de educação, o que acabou afetando diretamente as compras da alimentação escolar.
Essa aposta, na prática, passou a inviabilizar e reduzir muito as compras de orgânicos, na direção contrária à que vinha sendo adotada até então e sob protestos das equipes envolvidas e organizações da sociedade.
Jabuticaba
“A não execução [da lei dos orgânicos] está diretamente relacionada com a terceirização. Até 2016, as creches conveniadas representavam 30% das refeições servidas e recebiam esses alimentos. A partir de 2017 e 2018, cada uma recebe recursos para que comprassem à sua maneira. Ali já houve um impacto considerável”, conta um servidor municipal que participou desse processo. “Hoje, salvo engano, está tudo adquirido pela rede parceira.” São cerca de 2.200 creches nesta situação, segundo consta na plataforma de dados abertos da gestão municipal – a Secretaria de Educação não respondeu se os números estão atualizados.
A cidade de São Paulo tem três modelos de gestão das escolas: a direta, a terceirizada e a conveniada. Na administração direta, o poder público faz as compras dos alimentos e os distribui a escolas e creches. É um modelo considerado ideal para esse tipo de política pública, pela facilidade de controle e de execução das contratações.
No modelo terceirizado, as compras são feitas por uma empresa licitada para prestar serviço de preparo e distribuição da alimentação às unidades educacionais. E, por fim, há o modelo conveniado, “o que chamamos de jabuticaba paulistana”, ironiza Giorgia Russo.
Para zerar a fila de espera nas creches, a Prefeitura de São Paulo firmou convênios com unidades educacionais fora de sua rede, ampliando, assim, a oferta de vagas públicas.
Enquanto na gestão terceirizada uma empresa externa é responsável pela merenda e o processo deve ser homologado pela Coordenadoria de Alimentação Escolar (Codae), órgão da Secretaria Municipal da Educação, nas creches conveniadas são as próprias entidades mantenedoras que compram e preparam as refeições.
Ou seja, a prefeitura passou a enviar dinheiro em vez de alimentos para as unidades conveniadas que administram os Centros de Educação Infantil.
“Em ambos os casos, a Codae define as diretrizes e realiza o acompanhamento do serviço prestado e da qualidade da alimentação”, informou, em nota, a Secretaria Municipal de Educação.
O problema é que nem as empresas de alimentação do modelo terceirizado, nem as creches conveniadas são obrigadas a comprar de produtores da agricultura familiar e menos ainda pagar mais por orgânicos ou agroecológicos — a lei permite ao Executivo municipal comprar esses alimentos pagando até 30% a mais em relação ao convencional.
“Nesses casos, a dinâmica vai ser da praticidade, então você liga para o cara do Ceagesp e em questão de horas está lá. A agricultura familiar não é assim, não vai ter essa mesma gama de alimentos o tempo todo”, observa Caio Rennó, integrante de uma associação mista de técnicos e mais de 40 agricultores familiares que atendem o Pnae e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Juntos, produzem frutas, legumes, folhas e temperos orgânicos que vão para mercados, restaurantes e cozinhas industriais em São Paulo, resultado de um processo logístico aperfeiçoado ao longo de sete anos. Com uma equipe mista e colaboração de profissionais de diferentes áreas, houve mais facilidade no uso de ferramentas tecnológicas e no acesso aos sites de compras institucionais. Uma realidade que não é a de todos os pequenos produtores.
Retrocesso
As compras públicas foram ainda mais tímidas no ano de 2024, em meio às consequências do colapso climático e à urgência em se rediscutir sistemas alimentares. Os contratos disponíveis na página de transparência da prefeitura somam R$ 2,18 milhões – novamente, a Secretaria de Educação não respondeu se esse é o total de recursos gastos ou se o sistema está desatualizado.
Neto de produtores de banana da região do Vale do Ribeira (SP), Marcelo Fukunaga tornou-se um produtor agroflorestal em 2010 e hoje produz mandioca, palmito pupunha, maracujá, milho, feijão e PANCs. Ele aponta, no entanto, limitantes para os agricultores familiares acessarem esses contratos, a começar pelo custoso processo de certificação orgânica, objetivo final da transição agroecológica.
“De tanto depender, fomos buscando alternativas em grupos de consumo, empórios, pequenos mercadinhos e hoje fornecemos pra esses grupos”, explica o produtor.
A falta de uma estrutura de distribuição voltada para esses alimentos e de mais assistência técnica para a agricultura familiar também acaba aumentando o preço final e desestimulando uma produção mais sustentável. Também pesam no bolso do agricultor os custos para conquistar e manter a certificação orgânica. “A lógica é invertida. Quem produz com veneno é que deveria ser auditado, e não nós.”