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Débora Diniz: 'Brasil vive efervescência sobre urgência da descriminalização do aborto como nunca havia visto'

Antropóloga está com novo documentário sobre jornada de uma mulher negra de SP que decide fazer aborto na Argentina

Ouça o áudio:

"Esse é um caminho importante para o que chamamos de descriminalização social e as pessoas retirarem o estigma, retirarem as inverdades sobre o aborto" - Arquivo pessoal
As pessoas estão compreendendo que descriminalizar o aborto não é banalizar

Para a antropóloga Débora Diniz, a reação da população brasileira às ameaças de retrocessos de direitos garantidos ao aborto é a prova de que o país está "intensamente imerso no movimento da onda verde da América Latina do Caribe", fazendo referência à articulação que vem garantindo o avanço da pauta no continente. 

A especialista se refere, principalmente, ao que ficou conhecido como PL do Estupro, projeto de lei apresentado em junho deste ano na Câmara dos Deputados e que equipara o aborto legal em idade gestacional acima de 22 semanas, inclusive em casos de estupro, ao crime de homicídio simples. 

"A reação a esse revés sofrido, com campanhas, com opinião pública, com pessoas que jamais haviam se pronunciado sobre aborto, como foi a primeira-dama, a Janja, que se pronunciaram publicamente contra o PL, é um sinal de que algo de muito intenso está acontecendo no país", disse em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (27).

"O processo é lento, como foi lento em todos os países, em que a reforma legal aconteceu sobre aborto", analisa.

Diniz tem reconhecimento internacional por sua atuação nas áreas de bioética, feminismo, direitos humanos, e saúde. Além de sua atuação acadêmica, a especialista atua como documentarista, tendo lançado nove trabalhos, a maioria deles sobre o aborto, no Brasil. 

O mais recente, que ainda não estreou para o público no geral, está circulando em festivais. Uma Mulher Comum conta sobre a vida de uma brasileira que decide fazer um aborto na Argentina. 

"Scarleth é uma mulher negra da periferia de São Paulo, casada com o Leonardo, filha de Magarete e que tem três filhos. E ali, no momento, se vê grávida numa mudança de métodos de planejamento familiar.  E ela diz: 'Eu não posso ter um quarto filho'. Só que ela também diz: 'Eu não posso arriscar-me na clandestinidade. Eu preciso encontrar uma saída segura e que não viva o fantasma de ser uma criminosa'. E por isso que ela vai à Argentina." 

Confira a entrevista na íntegra

Neste sábado, dia 28, se celebra o Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe. Com qual sentimento que chegamos para esta importante data?

A onda verde teve início na Argentina, com o processo de reforma legal do aborto, que culmina na descriminalização do aborto em 2020. Vários países da América Latina e do Caribe, como o México, Colômbia e, antes mesmo da Argentina, o Uruguai já haviam revisado a legislação criminal sobre aborto, entendendo o aborto como a questão de saúde pública e modificando as legislações criminais. 

Ou seja, dizendo que uma necessidade de saúde não pode ser um crime. Nós vemos agora processos de discussão legislativa no Chile, no Equador, e países bastante conservadores como a República Dominicana também estão enfrentando reformas ou ao menos tentativas de reforma legal. 

Então eu não teria dúvidas de dizer que o espírito da onda verde, essa compreensão regional que o aborto é antes uma questão de direitos fundamentais, de cuidado em saúde, de impacto em saúde pública do que uma questão de perseguição criminal, ela está intensa na América Latina.  

Você sente que o Brasil custa a navegar nesta onda verde?

Eu não diria que o Brasil custa navegar na onda verde. Eu diria ao contrário. O Brasil está intensamente imerso no movimento da onda verde da América Latina do Caribe e eu dou alguns exemplos: a tentativa de retrocesso legal do Legislativo com um PL que colocava o estuprador no centro da cena, ignorava os direitos das meninas e perseguia ainda mais criminalmente as mulheres que tinham sofrido estupro. 

A reação a esse revés sofrido, com campanhas, com opinião pública, com pessoas que jamais haviam se pronunciado sobre aborto, como foi a primeira-dama, a Janja, que se pronunciaram publicamente contra o PL, é um sinal de que algo de muito intenso está acontecendo no país.  

O processo é lento, como foi lento em todos os países, em que a reforma legal aconteceu sobre aborto. É repleto de idas e vindas, mas o Brasil vive uma efervescência sobre a urgência da descriminalização do aborto, como nunca havia visto. Ou como aconteceu em São Paulo, o fechamento do Hospital Cachoeirinha, é um exemplo dessa força e contraforça. 

Mas nós temos hoje um processo do que chamamos de descriminalização social, ou seja, as pessoas compreendendo que descriminalizar o aborto não é banalizar. É, sim, retirar o crime de cadeia e poder cuidar das mulheres e das meninas, de todas as pessoas que venham a precisar do aborto. Ou seja, é um processo de compreensão social necessário para a transformação legal. 

É como diz o ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, antes mesmo de decidir a ação em curso, é preciso que as pessoas comuns, que a sociedade como um todo compreenda sobre do que trata essa ação, a ação que está em curso, à espera de julgamento no Supremo Tribunal Federal. 

O que ela [a ação] pede é que nenhuma mulher, menina, seja perseguida criminalmente, seja presa por ter feito um aborto. Até mesmo porque ela é uma mulher comum, ela é uma mulher comum da vida, da nossa convivência no país.  

Em 2018, durante a audiência pública do Supremo Tribunal Federal que você participou, um dos pontos do seu discurso foi uma crítica aos métodos que as pesquisas de opinião sobre aborto utilizam. Poderia explicar melhor?

Pesquisas de opinião são importantes para medir termômetros de eventos baseados em decisões ou experiências. Quando nós perguntamos em quem as pessoas vão votar, nós temos um marco de um processo decisório. Quando nós vamos para pesquisas de opinião, especialmente em temas morais, como é o aborto, em que você faz a pergunta "você é contra ou a favor", há vários equívocos nesse tipo de pergunta. 

O primeiro deles é que perguntas com forte conotação moral, elas geram uma expectativa de uma resposta certa nas pessoas que estão respondendo. Imagine você que alguém estava fazendo uma pergunta sobre algo que tinha ficado classificado como um crime. Por que eu vou dar opiniões contrárias a alguém que eu não conheço, alguém em que eu não confio? 

O segundo ponto é que é muito difícil alguém posicionar-se a favor do aborto. As pessoas estão do lado de cuidar das mulheres, estão ao lado de não deixar as mulheres morrerem, as pessoas estão ao lado das mulheres não serem presas. Ou seja, há um erro de formulação na pergunta ao colocar uma questão moral de contra ou a favor como se ela fosse binária, só duas escolhas. E há um gradiente de possibilidades, certamente as pessoas vão responder: "depende" ou "em que situações?". 

E uma questão que é intensa politicamente, legalmente, moralmente, nas crenças filosóficas individuais. Então, claro que há alternativas de perguntas. Uma delas é: "você acha que uma mulher deve ser presa por fazer um aborto?" 

E aqui é muito importante perguntar que mulher é essa. Se nós sabemos que uma em cada sete mulheres aos 40 anos já vai ter feito pelo menos um aborto no Brasil, nós estamos falando de mulheres tão comuns quanto a sua mãe, sua irmã, sua filha, sua vizinha, alguém da sua igreja, alguém da sua comunidade. São mulheres que têm filhos, que professam uma fé, elas são as mulheres comuns brasileiras.  

É claro que quando nós olhamos os dados com cuidado, nós encontramos que as mulheres mais vulneráveis, as mais impactadas pelas desigualdades, como são as mulheres negras, as mulheres mais jovens, as mulheres de regiões mais pobres, elas sofrem mais o impacto da lei criminal do que as mulheres que têm o acesso a bens, à informação, a recursos.  

Por exemplo, nós sabemos que para cada 10 mulheres brancas que façam um aborto, outras 15 são negras. Ou seja, há uma desproporção do impacto da criminalização, da falta de acesso à informação, da falta de acesso aos métodos, pelas desigualdades brasileiras.  

Qual é a melhor maneira que a senhora entende que devemos avançar com as discussões sobre aborto no país?

Se nós queremos verdadeiramente reduzir o aborto no Brasil, evidências de outros países, evidências da ciência mostram que o melhor caminho é a descriminalização. Isso pode ser estranho, porque há quem diga, de maneira equivocada, que uma descriminalização do aborto poderia levar a uma banalização. Mas isso não tem nenhuma evidência científica.  

A descriminalização do aborto leva à sua redução. E a pergunta é: por quê? Porque quando uma menina precisa fazer um aborto, é porque ela sofreu violência. É porque ela está em um ambiente que a coloca em risco. E, ao chegar a um serviço de saúde, não haver estigma, não haver perseguição, não haver barreiras. Nós podemos, assim, prevenir a violência. Nós podemos interromper o ciclo de tortura a que ela é submetida. Nós podemos prevenir um segundo aborto. 

A mesma coisa acontece com uma mulher adulta. Ou porque os métodos falharam, ou porque ela não tem uma correta adesão aos métodos, algo está acontecendo na sua vida, no seu planejamento reprodutivo, e ela precisa de um aborto. 

Ao falar a verdade nos serviços de saúde, nós podemos prevenir o segundo aborto, nós podemos cuidar dessa mulher, e essa mulher bem-informada, em vários aspectos de cuidados em saúde, se torna responsável pela educação em saúde na família, na comunidade, no seu ambiente de trabalho. Quanto melhor informada estiver a mulher, melhor informado o seu círculo de vida vai estar para a prevenção do aborto. 

Você está com um novo documentário, Uma Mulher Comum. Poderia apresentá-lo para nós?

O filme Uma Mulher Comum retrata a história de Scarleth e é uma mulher comum da vida brasileira. Ela é uma mulher negra da periferia de São Paulo, casada com o Leonardo, filha de Magarete e que tem três filhos. E ali, no momento, se vê grávida numa mudança de métodos de planejamento familiar. 

E ela diz: "Eu não posso ter um quarto filho". Só que ela também diz: "Eu não posso arriscar-me na clandestinidade". "Eu preciso encontrar uma saída segura e que não viva o fantasma de ser uma criminosa". E é por isso que ela vai à Argentina. 

Então o documentário, que está em vários festivais, e vai estar em breve nas redes sociais de acesso livre, com um kit sobre como trabalhar [o assunto] em sala de aula, nas comunidades, em conversas, ele mostra isso, mostra essa mulher comum, vivendo uma experiência comum às mulheres brasileiras.  

É sobre uma mulher comum, com um aborto comum, no sentido não de banal, mas de uma experiência vivida. E esse é um caminho importante para o que chamamos de descriminalização social e as pessoas retirarem o estigma, retirarem as inverdades sobre o aborto e conversarem sobre a mulher comum vivendo uma experiência reprodutiva que foi vivida pelas suas avós, pelas suas mães. São vividas por elas e vão, continuamente, ser vividas pelas mulheres como nós.  


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Edição: Martina Medina