SAÚDE

'A maconha é a principal estratégia de redução de danos', diz Flávio Falcone, o palhaço da Cracolândia

Ao BdF Entrevista, Falcone denuncia internações forçadas, falta de apoio aos Caps e encarceramento de dependes químicos

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Comunidades terapêuticas: "maior parte das pessoas tem 18, 25 , 30 internações", diz Falcone. - Beatriz Drague Ramos

Rir dos fracassos e defeitos é uma das chaves desenvolvidas por Flávio Falcone, conhecido como o 'Palhaço da Cracolândia', para criar vínculos de cuidado de maneira horizontal com a população em situação de dependência química do centro de São Paulo. Para além das risadas, o médico especializado em psiquiatria, formado pela Universidade de São Paulo (USP) e também palhaço, junto a Andréa Macera, que incorpora a palhaça Mafalda Mafalda, levam música e dança ao fluxo da Cracolândia há 12 anos, todas as quintas-feiras.

O projeto que une arte, palhaçaria e um tratamento baseado na autonomia das pessoas vulnerabilizadas da Cracolândia a partir da redução de danos é o Teto Trampo e Tratamento (TTT) que propõe, segundo o próprio médico, "disputar uma narrativa de qual é a solução para a Cracolândia". 

Parte do projeto se desenvolve no Slamis, em que os palhaços e também integrantes do TTT empurram um carro de som pelas ruas do centro de São Paulo até o chamado fluxo (concentração de pessoas em situação abusiva de substâncias químicas). Lá é promovido um show de calouros com jurados do próprio fluxo. Uma pista de dança também é formada entre os frequentadores do local, que participam de uma competição brincada de quem canta ou dança melhor.

O TTT mostra que a solução para as pessoas da região não é rápida e passa sobretudo por moradia, afeto e cuidado – e não por repressão. "Não é uma solução rápida, não é uma solução única para todos. Não precisa usar violência, não precisa tirar do território e é possível sim recuperar essas pessoas se você oferece moradia, que é uma necessidade básica. O que que os modelos tradicionais fazem? A moradia vem como uma recompensa da abstinência", afirma Falcone.

Ao longo de mais de uma década, Flávio se deparou com pessoas que entram e saem de comunidades terapêuticas e outros aparelhos de internação, sem no entanto deixarem o vício para trás. "É o tempo todo, tanto é que a maior parte das pessoas tem 18, 25, 30 internações em comunidade terapêutica e isso é ineficaz do ponto de vista do cuidado e do tratamento."

Por outro lado, ele pondera que a abstinência e as internações muitas vezes compulsórias servem para o aumento do poder político das igrejas neopentecostais. Nos governos Temer e Bolsonaro, as comunidades terapêuticas (CTs) cresceram. Estudo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e da ONG Conectas Direitos Humanos, lançado em abril de 2022, mostrou que foram gastos R$ 560 milhões para financiar vagas de internação nesses locais, entre 2017 e 2020. Desse montante, R$ 300 milhões saíram dos cofres do governo federal.

Já no atual governo Lula, até maio deste ano foram previstos R$ 56 milhões em orçamento somente em emendas parlamentares para subsidiar o funcionamento dessas comunidades, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Ainda de acordo com o texto, em 2023 a dotação prevista foi de R$ 65,1 milhões e não engloba emendas de bancada e de comissões temáticas, somente emendas individuais.

Em geral alocadas em residências coletivas, as CTs promovem tratamentos baseados na abstinência. O estudo do Ipea e da Conectas mapeou ainda instituições que utilizavam o trabalho não remunerado e "atividades espirituais" entre os métodos de tratamento. Segundo a pesquisa, 82% das CTs disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas – 40% pentecostais e 27% católicas. A leitura da Bíblia é uma atividade diária em 89% dos locais, e a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%. Essas organizações privadas não fazem parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Como contraponto, Falcone defende que o Caps (Centro de Atenção Psicossocial) é a melhor alternativa para o tratamento de uso abusivo de substâncias químicas. No entanto, os equipamentos sofrem com baixo investimento. "É muito triste ver atualmente que grande parte do dinheiro que é destinado para tratamento de dependência química, ao invés de estar sendo destinado para construir novos Caps, está sendo destinado para as comunidades terapêuticas por conta do tamanho do poder e do lobby que esse segmento conquistou, e eles estão extremamente organizados."

Falcone atua desde 2007 com pessoas em situação de rua. Trabalhou no Caps em São Bernardo, na Grande São Paulo, durante a gestão de Luiz Marinho (PT). O Caps oferece atendimento ambulatorial e multidisciplinar para pessoas que sofrem com o uso problemático de drogas e em situação de vulnerabilidade. Foi indicado para integrar a equipe do programa De Braços Abertos, criado pelo então prefeito Fernando Haddad (PT), que tinha por objetivo implementar a política de redução de danos na região da Luz, no centro de São Paulo, na época o principal território da Cracolândia. Também integrou o programa Recomeço, na gestão do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), no qual foi exonerado.

Flávio Falcone é o convidado desta semana do BdF Entrevista. Na conversa ele fala sobre as origens da Cracolândia, palhaçaria, gestão do território e sobre o projeto Teto Trampo e Tratamento.

Fruto do neoliberalismo e higienismo

Filha do avanço do neoliberalismo, a Cracolândia – ou "Cachaçolândia", como ele mesmo nomeia de forma irônica – é consequência do que os movimentos negros chamam de falsa abolição da escravidão, uma vez que a maioria da população é negra. Mais especificamente, 45,8% pardas e 30,8% pretas, de acordo com uma pesquisa da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) publicada em 2020.

"Do mesmo jeito que os antepassados das pessoas da Cracolândia na época de 1888 saíram sem indenização, sem terra, sem emprego, sem roupa, sem nada e foram morar nas praças, os descendentes dessas pessoas ainda estão morando nas praças. E o que a gente vê de 2020 pra cá, é que esse número chega a 80 mil pessoas na cidade de São Paulo nesse momento."

Interesses políticos compõem o pano de fundo da região que concentra pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social, hotéis antigos, empreendimentos imobiliários e um forte aparato de policiais civis e militares que rondam os bairros, diz ele. "A atual prefeitura e o governo do Estado claramente querem que esse território seja um território que serve à classe média e principalmente a classe média branca. A pobreza é considerada como uma sujeira no território."

No entanto, a repressão policial deixou de ser utilizada como instrumento de expulsão e de dispersão das pessoas em dependência química, dando lugar ao encarceramento, diz Flávio. Segundo ele, pessoas em regime aberto que não comparecem em juízo para justificar suas atividades são presas. "Para você entrar no Fórum da Barra Funda para assinar todo mês o livro dos egressos, você tem que estar de calça e sapato. Então, obviamente, as pessoas que estão na situação de rua, e ainda mais na Cracolândia, não vão assinar a obrigação. O que o poder público está fazendo agora? Identificando todo mundo que é egresso e que não está indo assinar e mandando de volta para a cadeia. Estamos vivendo um requinte de violência."

O que é visto no cotidiano de Falcone é também retratado em números. De acordo com relatório elaborado pelo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, 90% das prisões em massa em 2022 na Cracolândia foram consideradas ilegais pela Justiça e arquivadas.

A pesquisa intitulada "Operação Cachimbo: relatório das detenções em massa realizadas na Cracolândia" mostrou, por exemplo, que a detenção das pessoas da Cracolândia provocou um efeito chamado "porta giratória entre a delegacia e as cenas de uso". De setembro a novembro de 2022, na sexta fase da Operação Caronte, foram feitas 641 detenções, de 535 pessoas, média de 15 prisões por dia, e três dias de internação.

"A relação entre estar nas ruas do centro de São Paulo e ser conduzido às carceragens da Polícia Civil parece indicar uma reatualização de um velho modo de gerir a ordem urbana e estabelecer fronteiras no espaço público, em que o espectro da prisão torna-se modo de controle e ameaça da população vulnerável", diz o relatório.

Maconha como redução de danos

Além do trabalho, da moradia e das múltiplas opções de tratamentos de saúde para quem sofre com o uso problemático de drogas, Falcone diz que o uso da maconha como estratégia de redução de danos já se faz presente no dia a dia dos dependentes químicos e que a planta e seus produtos derivados podem trazer benefícios para essa população. "A maconha é uma grande solução para a Cracolândia e não só a maconha como medicamento, mas toda cadeia produtiva em que ela está envolvida, por exemplo, as associações de maconha medicinal."

Nesse sentido, ele pondera que uma estratégia seria desenvolver uma associação de pacientes de maconha medicinal com as pessoas da Cracolândia, de forma a gerar emprego, por exemplo. "O emprego delas seria plantar a maconha e a maconha também seria o principal medicamento que tiraria elas da situação realmente lamentável por conta do uso intensivo do crack. Não tenho dúvida de que a maconha é, diria, uma das principais soluções que a gente tem já disponível, já para agora."

Ele ressalta que o acesso a maconha já está disponível para parte da sociedade. "A classe média branca já está inclusive plantando uma maconha em casa com habeas corpus. Por que as pessoas na Cracolândia não podem fazer o mesmo?", questiona.

A necessidade de criminalização de pessoas pobres e negras está por trás do pouco acesso à maconha medicinal da camada socialmente vulnerável, diz Falcone. "Essas pessoas precisam ser criminalizadas. A grande dificuldade que a gente tem de implementar uma política desse tipo, por exemplo, é muito mais uma questão social e racial do que: 'será que isso vai funcionar?'. É óbvio que isso vai funcionar, porque já funciona na prática e qualquer pessoa que trabalha na Cracolândia sabe que a maconha é a principal estratégia de redução de danos, feita por eles mesmos, sem a gente nem orientar que façam isso."

Confira alguns trechos da entrevista abaixo. No vídeo acima, você pode conferir a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Flavio, você é médico e também é formado em palhaçaria. Como ela entra na sua vida e por que?

Flávio Falcone: Eu faço a formação de palhaço junto com a residência de psiquiatria e, na época em que eu estava fazendo essa formação, aconteceu o lançamento do filme do Doutores de Alegria. Por conta desse filme, aconteceu uma disseminação dos palhaços no hospital, várias organizações surgiram nesse momento e foi meio que uma popularização dessa prática. A pessoa que chama preceptor, que é a pessoa que era responsável no ensino dos residentes na época em que eu estudava, era meu colega de formação de palhaço. Então, já na residência de psiquiatria, eu começo a fazer palhaço no molde tradicional, que o Doutores da Alegria inclusive importou do modelo do Patch Adams, que é um norte-americano, fazendo intervenção dentro de enfermaria psiquiátrica.

Já nessa época, eu começo a perceber o potencial do palhaço de conseguir coisas que a medicina tradicional não conseguia. Então, uma das coisas que me chamou mais atenção nesse início da palhaçaria dentro da psiquiatria foi eu dentro de uma enfermaria psiquiátrica conversando com uma paciente que é portadora de esquizofrenia. Uma das características da esquizofrenia pode ser que a pessoa pare de falar e aí tinha uma paciente lá que não tinha falado nada com a equipe até a chegada do palhaço com quem ela começou a conversar. Então já nesse primeiro momento eu percebi como essa figura ressoava com esse universo da psiquiatria. 

O que acaba acontecendo é que quando eu me formo, o palhaço toma uma proporção tão importante na minha vida, e na minha vida pessoal, inclusive. O palhaço tem o poder de transformar o nosso pior lado, que são os nossos defeitos, isso é da teoria do palhaço, inclusive, a gente ri do palhaço porque ele tropeça, não porque ele anda direito. Então o palhaço ele é conhecido inclusive como o arquétipo do erro, o arquétipo do fracasso e eu coloco como uma condição de que: ou eu ia juntar as duas coisas, ou eu ia abandonar a medicina e ia ser só palhaço.

E aí eu tive a sorte de conseguir um trabalho em São Bernardo do Campo numa conjuntura que era na época o segundo mandato do governo Lula e a eleição do Luiz Marinho, que agora é ministro, na época ele era prefeito de São Bernardo do Campo.

São Bernardo foi eleita a cidade para experimentar o modelo da reforma psiquiátrica, da política antiproibicionista e de uma intervenção mais ligada à redução de danos e menos ligada à proposta da abstinência total e da internação, que é o clássico que existe na área da dependência química.

Eu encontro pessoas que, desde os anos 1970, estavam militando no movimento da reforma psiquiátrica e aí, quando eu proponho fazer o palhaço, imediatamente o palhaço é absorvido pela equipe do Caps, onde eu trabalhava. No primeiro dia que eu chego para trabalhar no consultório da rua e chego na praça de palhaço, eu piso na calçada de palhaço e a praça inteira vem falar comigo sem eu fazer nada, só pela minha presença com essa figura, que é uma figura que está no inconsciente coletivo da humanidade.

Eu entendi que existe uma identificação inconsciente imediata entre essa figura que é o arquétipo do palhaço e os fracassados do nosso sistema capitalista e isso faz com que eu crie um vínculo com essa população que o médico não é capaz de criar, porque é um vínculo de igual para igual, é um vínculo horizontal.

O médico, por toda a história da medicina, é uma profissão elitizada, é uma profissão de brancos, é uma profissão em que as pessoas que atuam são pessoas identificadas com a classe dos opressores. Então, o vínculo do médico com a população de rua sempre é um vínculo de hierarquia. É um vínculo de "eu sou o detentor do saber e vou dizer para você o que você deve fazer". Que é o que acontece inclusive até hoje na maior parte das políticas públicas, principalmente as políticas proibicionistas e que centram a intervenção na tal da internação.

Ao longo dos últimos 10 anos nós tivemos pelo menos 3 principais programas oferecidos pelo governo do Estado e Prefeitura na Cracolândia. O Redenção, o De Braços Abertos e o Recomeço. A partir da sua experiência, o que funcionou ou funciona e o que não funcionou em cada um deles?

A melhor opção que você tem para lidar com um problema tão complexo quanto o problema da Cracolândia – porque a Cracolândia não é só um problema de dependência química, é um problema muito mais complexo e ilegalmente social inclusive e diria que até racial também, porque a maior parte das pessoas que vivem na Cracolândia são pessoas pretas ou pardas. A melhor estratégia é você usar todas as possibilidades e quem propõe todas as possibilidades é o pensamento da redução de danos.

A redução de danos inclui a estratégia da abstinência total entre as estratégias possíveis dentro do tratamento, desde que isso faça sentido para a pessoa que está sendo tratada. Então, já de cara, do ponto de vista de eficácia, você vai ter mais eficácia oferecendo o maior número de possibilidades de tratamentos.

A diferença é que os programas que propõem a abstinência como única solução têm uma eficácia a longo prazo baixíssima, a maior parte dos pacientes não consegue ficar abstinente por um período prolongado de tempo. Enquanto que na proposta da redução de danos, o parâmetro não é abstinência: o parâmetro é a autonomia que o sujeito conquista, que é justamente o que ele perde quando ele faz um uso problemático de droga.

Então o trabalho da redução de danos é a gente retomar a autonomia do indivíduo, sendo que ele pode ficar abstinente ou fazer redução do uso, dependendo da singularidade de cada caso.

Eu acho que se você usar o parâmetro da ciência como um parâmetro para você escolher a política pública, o que mais funciona segundo os parâmetros científicos, você inegavelmente teria que usar redução de danos como política pública.

O problema é que a Cracolândia é um ativo político, não é só uma região na cidade, ela mobiliza, mobiliza poder político. A gente está vendo agora, por exemplo, nessa época da eleição, praticamente toda entrevista, todo debate se pergunta para o candidato o que ele vai fazer com a Cracolândia. As ações na Cracolândia, elas não necessariamente respeitam o que a ciência diz que mais funciona.

Funcionários do Redenção na Rua divulgaram em maio uma carta aberta na qual denunciam supostas internações forçadas na Cracolândia promovidas por profissionais terceirizados do Serviço de Cuidados Prolongados (SCP), realizado por funcionários da Afne, organização social que administra o Caps IV Redenção. Você teve contato com algum caso desse tipo?

Eu tenho conhecimento dessas denúncias, essas denúncias são verídicas. Não é só os funcionários da saúde que estavam com essa prática, as forças de segurança pública também estavam orientadas a realizar essa prática e isso não tem em embasamento científico nenhum, mas é uma prática que alimenta a parte conservadora da população, que quer uma solução única e eficaz.

Inclusive, a gente teve um delegado de polícia que dizia isso, que estava fazendo um trabalho de convencimento da população de que, se a gente não tivesse a internação compulsória, não tinha como resolver o problema da Cracolândia. Isso é uma medida para atender a necessidade fascista da população, porque temos uma grande parcela da população de São Paulo, que está cada vez mais alinhada com um discurso fascista, com um discurso de eliminar os fracos, de eliminar aqueles que não conseguiram prosperar no sistema capitalista.

Outro lado

O Brasil de Fato entrou em contato com a organização social para comentar as denúncias. A matéria será atualizada quando houver posicionamento. 

Edição: Nicolau Soares