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Onde há fumaça, há boi: estados líderes na pecuária concentram maior número de incêndios, mostra estudo

Dados levantados pela ONG Mercy For Animals mostra relação entre expansão da fronteira agrícola com avanço do fogo

Ouça o áudio:

Registro de fazenda na Amazônia durante invenstigação para elaboração de estudo - Foto: Mercy For Animals

A capital da pecuária brasileira, São Felix do Xingu (PA), foi também a campeã em incêndios neste ano. O município de 65 mil habitantes concentra mais de 2,5 milhões bois no seu território e registrou 2.522 focos de incêndio entre janeiro e a primeira quinzena de setembro de 2024. 

Os dados compilados pela ONG Mercy For Animals fazem parte de um levantamento maior que mostra a correlação entre a pecuária e o fogo no país. 

Entre os dez estados com maior número de incêndios neste ano, oito também são os que têm maior rebanho bovino no território. Mato Grosso e Pará concentram o maior número de cidades da lista.  

"A gente pode dizer que o boi segue no rastro do fogo, que vem depois do desmatamento", defende George Sturaro, Diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da Mercy For Animals, em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (2).

"Existe um ciclo histórico de destruição dos biomas brasileiros impulsionado pela expansão da pecuária bovina e também da monocultura, principalmente da monocultura de soja, cuja maior parte é destinada à alimentação de animais criados em confinamento, porcos, galinhas, frangos." 

Sturaro explica que a pecuária utiliza o fogo em dois momentos. Primeiro, é para "limpar" uma área que foi recém desmatada. Ou seja, o fazendeiro derruba as árvores de maior porte e o restante da vegetação é destruída pelo fogo, para preparar o terreno para o pasto.  

"De tempos em tempos, esse pasto precisa ser renovado. E a forma que se usa para renovar novamente é o fogo. Então, os fazendeiros tocam fogo no pasto." 

O pesquisador diz que este vem sendo o modelo aplicado para o Cerrado e Amazônia, pelo menos, nos últimos 40 anos, principalmente com o movimento imposto pela ditadura militar conhecido como Marcha do Boi. Mas o especialista vai além. 

"Se a gente olhar o modelo de, entre aspas, desenvolvimento econômico do Brasil, ele em linhas gerais, ele permanece inalterado ao longo dos últimos 40, 50 anos. Ele está fortemente baseado em cultivos extrativistas, monoculturas." 

"Pelo menos algo em torno de 80% das exportações agrícolas do Brasil estão baseados em 10 produtos, com uma participação predominante da soja e produtos de origem animal, como carne bovina, carne de frango."  

É um modelo econômico baseado em monocultivo de exportação, principalmente, que não se diferencia muito no seu ethos do modelo colonial que a gente teve nos últimos 500 anos", finaliza.

Confira a entrevista na íntegra 

Esses resultados surpreenderam vocês? 

O dado não nos surpreendeu. Na verdade, confirmou uma impressão que a gente tem, não apenas nós, mas grande parte das organizações que trabalham com a agenda animal e também e também pela agenda do meio ambiente. 

Há muitos anos, talvez décadas, que existe essa relação entre a pecuária, o desmatamento e a queimada. Isso é algo que faz parte da história do Brasil, talvez desde os anos 1970, quando começa a expansão da fronteira agrícola para o interior do país, principalmente para o Cerrado, para a região Norte, para a Amazônia.  

Então, a gente pode dizer que o boi segue no rastro do fogo, que vem depois do desmatamento. 

Então, existe um ciclo histórico de destruição dos biomas brasileiros impulsionado pela expansão da pecuária bovina e também da monocultura, principalmente da monocultura de soja, cuja maior parte é destinada à alimentação de animais criados em confinamento, porcos, galinhas, frangos.  

O interessante é que esses estados estão localizados justamente nesses biomas que mais sofrem com a expansão da fronteira agrícola, que são Cerrado e a Amazônia. 

Ali onde está concentrado os focos de incêndio, desmatamento e também a expansão da pecuária.  

Um caso bastante emblemático que eu gostaria de trazer é o do município São Félix do Xingu, no estado do Pará. São Félix do Xingu foi o município que registrou maior número de focos de incêndio no Brasil até o início de setembro. 

E ele é também o município com a maior população de bovinos do Brasil, aproximadamente 2,5 milhões de bois nesse município. 

E porque é interessante para a pecuária o usos do fogo? 

A queimada está relacionada de duas formas com a pecuária. O primeiro uso que a pecuária faz da queimada é para a limpeza de áreas recentemente desmatadas que serão, então, destinadas ao cultivo de pasto para alimentar os bois. 

Então você tem uma zona lá que geralmente era floresta. Essa área é ocupada, tradicionalmente ela é grilada. São removidas as madeiras que têm alto valor comercial, as árvores maiores são removidas e aí sobra uma vegetação arbustiva, sobram raízes e esse material tem que ser removido para que possa então ser plantado o pasto e a forma tradicional e mais barata de remoção desse material é o uso do fogo. 

Então, depois do desmatamento, vem a queimada para limpar, como eles dizem na linguagem da pecuária, e em cima dessa terra é plantado o pasto. De tempos em tempos, esse pasto precisa ser renovado. 

E a forma que se usa para renovar novamente é o fogo. Então, os fazendeiros tocam fogo no pasto.  Esse pasto queimado também ajuda a nutrir o solo para o novo ciclo de plantio de pasto.  

Então, a pecuária extensiva ela faz uso tradicionalmente do fogo, seja para limpar a área, seja para limpar o pasto.  

Eu gosto sempre de lembrar que a pecuária e a soja estão muito interligadas no ciclo do desmatamento do Brasil. À medida que aumenta a demanda por produtos de origem animal, você vai ter um aumento da área dedicada à pecuária e também da área dedicada ao plantio daqueles grãos que serão usados para alimentar animais, principalmente soja e milho. 

A soja, por ser uma atividade econômica mais rentável e de maior complexidade logística, ela acaba se expandindo sobre áreas que eram ocupadas pela pecuária. Então o sojicultor faz uma proposta de compra de terras para o pecuaristas, se apropria daquela terra e passa a plantar soja. 

O pecuarista coloca esse dinheiro no bolso e se muda para a região de fronteira agrícola. Compram lá uma nova fazenda, desmatam uma área, queima, e assim vai... 

Essa é a história dos últimos 30 a 40 anos, de, entre aspas, desenvolvimento econômico nessa região de fronteira agrícola do Brasil. 

Então a pecuária se expande e vai sendo empurrada para a região de floresta, para as regiões ainda nativas do país por causa da expansão da soja também.  

O senhor está falando de um modelo aplicado de 30 a 40 anos, mas podemos dizer até mais, quem sabe 50, se analisarmos as ações impostas no período da ditadura militar, certo? 

Se a gente olhar o modelo de, entre aspas, desenvolvimento econômico do Brasil, ele em linhas gerais, ele permanece inalterado ao longo dos últimos 40, 50 anos. Ele está fortemente baseado em cultivos extrativistas, monoculturas. 

Pelo menos algo em torno de 80% das exportações agrícolas do Brasil estão baseados em 10 produtos, com uma participação predominante aí da soja e produtos de origem animal, como carne bovina, carne de frango.  

Então, assim, é um modelo econômico baseado em monocultivo de exportação, principalmente, que não se diferencia muito no seu ethos do modelo colonial que a gente teve nos últimos 500 anos. 

E se a gente olhar nos últimos, talvez de 1985 pra cá, quando começou a redemocratização do Brasil, esse modelo, ele tem se intensificado.  

Em 1985, quando o Brasil inicia o processo de redemocratização, perto de um terço do nosso PIB era indústria ainda. Hoje, a indústria não contribui, nem com 10% do PIB. 

Então esse modelo ele está independentemente de governo, da matriz ideológica, a orientação ideológica do governo, esse é o modelo que no Brasil, infelizmente,  se estabeleceu. 

E quais caminhos vocês entendem para combater essa lógica?

Na nossa interpretação, essa situação que vem ocorrendo no Brasil ano após ano de queimadas cada vez mais intensas e extensas é resultado de um modelo de produção de alimentos insustentável, que é agravado ainda pela emergência climática que a gente vem atravessando.  

Então, se a gente for olhar ao longo dos últimos anos, os períodos de estiagem seca no Brasil, eles têm ficado cada vez mais longos. E isso é um fator de risco para surtos de queimadas, como esse que a gente tem visto.

Essa situação está relacionada com a mudança no clima no âmbito global. E ela está relacionada também com as nossas escolhas que a gente fez como sociedade em relação ao nosso modelo de produção de alimentos. 

A notícia boa é que uma transformação dos sistemas alimentares pode ajudar a gente a equacionar isso. A gente tem proposto mudar o sistema alimentário, mudar a forma como a gente propõe, como a gente produz alimentos e mudar os padrões de consumo de alimentos. 

Mais especificamente, a gente tem defendido a necessidade da redução do consumo de produtos de origem animal, porque os produtos de origem animal, os alimentos de origem animal, eles têm uma pegada [gasto] ambiental muito elevada, tanto em termos de emissões de carbono quanto em termos de a pegada hídrica, de biodiversidade. 


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Edição: Thalita Pires