As pessoas estão aqui dentro da cidade [São Paulo], mas não sabem que estão dentro da Mata Atlântica
No final de setembro, o Rio Madeira, que banha Porto Velho (RO), atingiu o menor nível já registrado na história: 25 centímetros. É o segundo ano consecutivo que esse recorde é quebrado. Ano passado, neste mesmo período do ano, o rio chegou a 1,25 metro de profundidade, quando a média histórica apontaria para 3,8 metros.
Essa situação calamitosa se soma a outro fenômeno que vem se tornando corriqueiro, embora também seja algo recente: a tomada da cidade por fumaça oriunda de incêndios na região.
Para a escritora e ativista Txai Suruí, esse cenário obrigaria que a pauta principal das eleições municipais em todo estado de Rondônia fosse o combate às mudanças climáticas.
No entanto, em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (4), a liderança indígena afirma que em Rondônia mudança climática "é uma antipauta".
"Não é que eles não sabem falar, é porque eles não querem, é porque eles se negam falar dessa pauta ambiental, com medo de perder eleitores, porque continua fortalecida essa ideia de que o agronegócio é que carrega o Brasil, o que não é a verdade".
"O agronegócio se beneficia muito dos insumos que o governo dá para ele, mas não devolve isso para a sociedade."
Txai Suruí vem se notabilizando nos últimos anos com uma das principais ativistas do movimento indígena, liderando movimentos de Norte a Sul do país na luta por direito aos povos originários e no combate às mudanças climáticas.
Em 2021, ela alcançou uma abrangência internacional ao se tornar a primeira indígena a discursar em uma abertura de conferência do clima, a COP 26.
Na entrevista, Txai Suruí reforçou como eleições municipais são espaço, sim, para debater o combater o negacionismo climático, isso na Amazônia ou em qualquer parte do país.
"Como viveu durante muito tempo essa narrativa de desconexão com a natureza, muitas vezes as pessoas que estão dentro da cidade perdem o seu pertencimento, que têm naquele lugar, que têm naquele bioma."
"As pessoas estão aqui dentro da cidade [de São Paulo], mas não sabem que estão dentro da Mata Atlântica. Estão dentro da cidade de Manaus, não sabe que estão dentro da Amazônia."
Suruí também trouxe um relato de sua irmã, que recém teve o primeiro filho, em Porto Velho.
"A minha irmã falou uma coisa pra mim, que eu fiquei pensando muito. O meu sobrinho, ele tem dois meses de vida. E a gente fez um ato lá em Porto Velho, junto com os outros atos que tiveram aqui em São Paulo, em Belém, no Recife, também pelo clima."
"Fizemos algumas falas e uma das falas da minha irmã foi exatamente essa: que o meu sobrinho, o filho da minha irmã, nasceu e até hoje não respirou ar puro."
Confira a entrevista na íntegra
Os debates sobre os direitos da população indígena e o combate às mudanças climáticas cabem nas eleições municipais também?
Exatamente. Muitas vezes a gente pensa no Congresso Nacional, nos âmbitos federais, porque é onde estão acontecendo as coisas, onde estão passando os projetos de lei, mas o âmbito municipal também é importantíssimo.
Minha professora até falou isso: principalmente os não indígenas, nascem, vivem e morrem onde? É nas cidades. Então, como que a gente não vai dar o devido valor para o lugar onde a gente vive, para onde a gente cresce, cria a nossa família, cria o nosso pertencimento?
O lugar onde realmente a nossa vida cotidiana acontece todos os dias é dentro das cidades. A maioria da população amazônica também hoje está dentro das cidades.
E como viveu durante muito tempo essa narrativa de desconexão com a natureza, muitas vezes, as pessoas que estão dentro da cidade perdem o seu pertencimento, que têm naquele lugar, que têm naquele bioma.
As pessoas estão aqui dentro da cidade [de São Paulo], mas não sabem que estão dentro da Mata Atlântica. Estão dentro da cidade de Manaus, não sabe que estão dentro da Amazônia. A gente tem que trazer esse pertencimento.
Você imagina Porto Velho, capital de Rondônia. A gente passou dois meses inteiros vivendo a fumaça, respirando fumaça, entendeu?
Você respirava, você sentia que era fumaça, não era árvore.
A minha irmã falou uma coisa pra mim, que eu fiquei pensando muito. O meu sobrinho, ele tem dois meses de vida. E a gente fez um ato lá em Porto Velho, junto com os outros atos que tiveram aqui em São Paulo, em Belém, no Recife também pelo clima.
Fizemos algumas falas e uma das falas da minha irmã foi exatamente essa: que o meu sobrinho, o filho da minha irmã, nasceu e até hoje não respirou ar puro.
Mas a natureza, até nesse sentido, ela preza por nós, ela cuida da vida e mandou chuva, para limpar o céu, para limpar o céu de Porto Velho, porque se não fosse a natureza, nem isso a gente ia ter.
E a natureza manda a chuva para todos nós, para aqueles que queimaram, para aqueles que não queimaram. E isso me fez refletir demais.
E como você sente que está o debate eleitoral em Porto Velho?
Nossos candidatos não falam da mudança climática. São pouquíssimos os candidatos a vereador que trazem essa pauta muito forte. Até porque isso, na verdade, em Rondônia, é uma antipauta.
Não é que eles não sabem falar, é porque eles não querem, é porque eles se negam falar dessa pauta ambiental, com medo de perder eleitores, porque continuam fortalecendo essa ideia de que o agronegócio é que carrega o Brasil, que não é a verdade.
O agronegócio se beneficia muito dos insumos que o governo dá para ele, mas não devolve isso para a sociedade.
Um exemplo muito claro disso é a própria Porto Velho. Porto Velho tem o maior rebanho bovino de uma capital, mas também, apesar de toda essa riqueza, você não vê isso refletida na sociedade, você não vê isso refletida na cidade.
Porque apesar disso, e de toda essa riqueza, de todo esse agronegócio que eles esbanjam, você não vê espaços de lazer na cidade, você não vê espaços de cultura, você não vê essas coisas, você não vê a coletividade sendo valorizada, ou espaços coletivos sendo construídos
Além disso, você vai olhar os índices e Porto Velho tem o pior índice de desenvolvimento humano entre as capitais da Amazônia. Porto Velho tem os maiores índices de feminicídio nas capitais amazônicas. Porto Velho tem os maiores índices de queimada e também nas capitais amazônicas.
Você não viu em nenhum momento, nenhum dos nossos prefeitos, nem o nosso governador, nenhum desses representantes dando qualquer tipo de orientação para a população de usar a máscara, de se hidratar, de fechar a janela de casa, dos perigos que a queimada pode trazer, quais que são os cuidados que a gente pode tomar.
E mais do que isso, uma consciência ambiental mesmo.
Porto Velho foi um exemplo, mas a gente pode dar os exemplos de outros lugares, dentro da Amazônia e fora da Amazônia.
Por exemplo, na última vez que eu fui em Manaus, eu descobri, através do Uber, não foi nem ninguém na palestra que eu vi, que me contou que a cidade de São Paulo tem mais árvores que a cidade de Manaus.
Por quê? Porque dentro dos planos diretores das nossas cidades não se fala de mudanças climáticas.
Então, diante de tudo isso, a gente vê como urgência eleger pessoas comprometidas com clima, mulheres indígenas, pessoas indígenas, aqueles que tragam sem medo a pauta da vida, a pauta do futuro, a pauta de se debater as mudanças climáticas também.
Como você comentou, sua atuação política está nacionalizada, participando de atos por todo país. Como você tem acompanhado o movimento indígena para as eleições deste ano? Qual a expectativa?
A gente tem um número recorde na história. É o maior número de candidatos indígenas, então, isso aí já mostra como o próprio movimento indígena entende a importância de estar ocupando esses cargos.
Mas eu vou te contar, de todas as campanhas que eu venho acompanhando, apesar da maior quantidade de pessoas indígenas da história, uma coisa que eu acompanho muito é o quão racista e preconceituosa é tanto a política quanto a nossa sociedade.
De achar que os povos indígenas, que essas candidaturas indígenas, não têm capacidade de assumir uma prefeitura, não têm a capacidade de assumir um cargo como esse.
Temos nossa própria forma de autogovernança, temos a nossa própria forma de fazer a nossa política interna. Somos nações indígenas e eles ainda acham que a gente não tem a capacidade. Ainda nos olham como incapazes, como ignorantes, como burros, como preguiçosos.
Então eu admiro muito todos os candidatos e candidatas indígenas que tiveram coragem de dispor o seu nome.
Porque vejam, muitos dessas candidaturas, elas não vêm, diferente das do não indígenas, por uma coisa pessoal, individual, mas vêm mesmo por um chamado da própria luta, da própria coletividade.
Existem algumas candidaturas indígenas que não estão alinhadas como estes valores que você está defendendo, pelo contrário, são defensoras do agronegócio, levantam a bandeira do bolsonarismo. Como você vê isso?
É importante que a gente entenda que a representatividade por si só não pode ser vazia, não adianta a gente colocar uma mulher para nos representar se ela lutar contra os nossos direitos.
O capitalismo faz isso, ele coopta as pessoas, traz elas, inclusive, a vender aquilo que elas têm de mais sagrados. Porque, na nossa essência, como povos indígenas, a nossa essência é a da proteção da natureza, somos seres de natureza.
A nossa essência não é a da exploração desse lugar. Então, se tem alguém que está fazendo isso, é porque já foi cooptado. Cooptado pelo próprio pensamento da destruição, do agronegócio que eu falei que está sendo ensinado até hoje para a nossa população em Rondônia.
Então uma representatividade vazia por si só não vale. Na verdade, é só uma estratégia do outro lado para que a gente não tenha representatividade verdadeira.
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Edição: Martina Medina