Coluna

Cinema Negro é Cinema Brasileiro, mas dados de participação econômica insistem em dizer o contrário

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Set com a diretora Joyce Prado da Oxalá Produções; levantamento sobre o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro indica que a categoria ator é a que mais premia não-brancos: 22% dos premiados - Wallace Robert/Oxalá Produções
Há um descompasso entre diretrizes do governo e da Ancine, com diretoria de indicados de Bolsonaro

*Por Tatiana Carvalho Costa, presidente da Apan (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro)

O audiovisual brasileiro – sobretudo no que se chama de "indústria" – ainda é um reflexo das profundas desigualdades raciais e sociais que estruturam o Brasil. Se, por um lado, tivemos avanços nas políticas públicas voltadas para a equidade racial no país, por outro, profissionais negros pouco participaram no crescimento de 700% do audiovisual independente brasileiro desde meados dos anos 1990, estimulado por um robusto conjunto de legislações e regulamentos que possibilitaram, por exemplo, a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). O fundo movimenta, anualmente, mais de R$1 bilhão, que ainda seguem um fluxo de concentração quando olhamos para os números relacionados a raça e gênero.   

Estudos do Grupo Multidisciplinar em Ações Afirmativas (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a partir de dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), apontam que entre 1995 e 2018 somente 2% dos filmes brasileiros de maior público tiveram direção de homens negros. Um levantamento recente do Grupo na história do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2002 e 2023) indica que "a predominância de brancos, especialmente homens, é quase absoluta" em todas as categorias avaliadas. A categoria com maior quantidade não-brancos é a de ator, na qual homens pretos, pardos e indígenas chegam a 22% dos premiados; na direção dos filmes, eles são 9% dos vencedores – nenhuma mulher negra figura sequer entre os indicados à melhor direção. O cinema brasileiro segue sendo, em sua imensa maioria, identitário: branco, masculino e cisgênero. 

Os anos Temer e Bolsonaro representaram um triste momento para o país e pioraram o cenário de desigualdades. Com a eleição de Lula e Alckmin em 2022, e a consequente reconstrução do Ministério da Cultura, alimentamos a esperança de ver implementadas políticas públicas antirracistas para uma efetiva democratização. Há visíveis esforços para a consolidação de uma Política Nacional de Cultura que dê conta da multiplicidade de profissionais e agentes econômicos no setor, com desdobramento, no audiovisual, na construção do Plano de Diretrizes e Metas para o próximo decênio. Celebramos, ainda, as Instruções Normativas que determinaram Ações Afirmativas na execução de 20% do orçamento da Lei Paulo Gustavo e 25% da Política Nacional Aldir Blanc, ainda que, em muitos casos, a implementação dessas medidas por gestores públicos nos estados e municípios esteja longe do ideal. 

Nesse contexto, faz-se necessária uma execução de políticas antirracistas em nível federal que diminuam o atual descompasso entre as diretrizes do governo Lula e os resultados do que é executado pela Ancine, cuja diretoria, com independência do governo, ainda é composta de uma maioria de nomes indicados por Bolsonaro. 

Nossa defesa é a da implementação de mudanças estruturantes para democratizar a distribuição dos recursos públicos do Fundo Setorial Audiovisual (FSA). Nesse sentido, defendemos as políticas afirmativas pensadas em sua perspectiva reparatória, compreendendo que, para que haja justiça social, é necessário também um sentido de justiça econômica. O que reconhecemos como Brasil e o que se constituiu historicamente como riqueza econômica no país foi conquistado com bases firmes e violentas nas centenárias políticas de Estado de escravização e genocídio de pessoas negras e indígenas. Portanto, o Estado brasileiro tem uma dívida histórica com essas populações. A reparação histórica é uma urgência.  

Desde outubro de 2023, comemoramos as inéditas paridade de gênero e presença negra em duas instâncias da estrutura de governança do audiovisual brasileiro: o Conselho Superior de Cinema (CSC) e o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA). Tanto o Comitê quanto o Conselho têm sua composição nomeada pelo Governo Federal e contam com a presença de representantes da Ancine. O CSC é responsável por formular políticas e estratégias gerais para o audiovisual brasileiro e o CGFSA tem a responsabilidade de, a partir dessas políticas, administrar os recursos do FSA, definir investimentos anuais, estabelecendo critérios e acompanhando a implementação das ações. 

Essa participação social resultou nos avanços que vimos, no final de setembro, com o histórico anúncio do Plano Anual de Investimentos 2024, que prevê cotas de 25% para empresas vocacionadas em editais seletivos de produção e comercialização, além de apontar a retomada de linhas importantes para o desenvolvimento e sustentabilidade econômica do audiovisual independente. As empresas vocacionadas, nesse contexto, são aquelas geridas por 50% ou mais de pessoas negras e/ou indígena (no caso da determinação do CGFSA, incluem-se também pessoas com deficiência) e que se dedicam à produção de conteúdos audiovisuais a partir dessas perspectivas. As cotas para esse tipo de empresa, adotadas de maneira transversal nos editais, são um importante passo para a diminuição das desigualdades, mas não representam uma política estruturante. Ainda há muito o que se fazer para a diminuição da brutal desigualdade racial no setor. 

Levantamentos de dados presentes no Observatório do Cinema e Audiovisual (OCA) da Ancine mostram que, de 2011 a 2021, a remuneração média mensal de profissionais refletiu a desigualdade racial do país: pessoas negras receberam, em média, R$ 3,7 mil, enquanto pessoas brancas e amarelas tiveram remuneração de mais de R$ 6 mil em funções semelhantes no setor. 

De acordo com o levantamento Participação por gênero e por raça nos diversos segmentos da cadeia produtiva do audiovisual, produzido pela Ancine, entre 2018 e 2021, do total geral dos projetos inscritos para as Chamadas Públicas do FSA para comercialização, produção, entre outras modalidades, 83% eram dirigidos por pessoas brancas e 11,8% por pessoas negras. A participação de mulheres não passou de 20%. Dos projetos aprovados e contratados nestas chamadas, 87% tinham pessoas brancas na direção contra 11,4% de pessoas negras. Essa diferença aumenta para uma proporção impressionante quando os orçamentos chegam a R$ 5 milhões ou mais: 92,8% de direção branca contra 4,9% negra. Cinema Negro é Cinema Brasileiro. Mas os dados nos mostram uma evidente exclusão quando pensamos no que se projeta de pujança de uma "indústria nacional". 

Essa escandalosa diferença vai ao encontro do abismo social brasileiro, sobretudo quando tocamos nas questões econômicas. A inclusão das empresas vocacionadas e a paridade de gênero nos editais seletivos é um passo importantíssimo, mas não pode ser episódico e nem somente restrito à produção e comercialização. É fundamental que esse espaço seja permanente e progressivamente ampliado e que se considerem também as políticas afirmativas para as áreas de formação, difusão e preservação. Para diminuir as desigualdades, é preciso não só um conjunto de diretrizes de políticas públicas estruturantes, mas, também e sobretudo, vontade política para executá-las.  

É urgente que as lideranças da Ancine se empenhem para desenhar uma política interna antirracista e que se diminuam a burocracia kafkiana da agência, incluindo a reformulação do sistema de pontuação e a adoção de metodologias não-excludentes no sentido de uma efetiva democratização do acesso às verbas públicas aliado ao desenvolvimento econômico do setor audiovisual. O Brasil é o país mais negro fora da África. Enquanto não houver um grande esforço para ampliar os espaços de representatividade e participação econômica da pluralidade da população brasileira no audiovisual, a política pública executada pela Ancine seguirá sendo excludente. 

A luta por igualdade racial no audiovisual brasileiro é uma jornada contínua que requer a implementação e a execução eficaz de políticas públicas estruturantes e robustas. O Ministério da Cultura tem apontado avanços importantes. Entretanto, a Ancine, como órgão regulador, precisa alinhar suas ações com as diretrizes governamentais e das demandas de uma sociedade diversa como a brasileira, para garantir que os avanços se traduzam em uma verdadeira inclusão no setor. Somente assim será possível alcançar um cenário em que a pluralidade de vozes e experiências brasileiras possa se expressar plenamente e de maneira sustentável no cinema e no audiovisual brasileiro. 

Quilombo do Audiovisual Negro 

Esta coluna é um espaço para reflexões e debates sobre as produções e ações de profissionais do audiovisual negro. Aqui vamos conversar sobre mercado, políticas públicas, ações afirmativas e estratégias para a ampliação da presença e permanência de pessoas negras no audiovisual e nos imaginários. 

Sobre a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) 

Criada em 2016, a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, apartidária e com articulação, mobilização, incidência política, ações e representação nas cinco regiões do país. Desde sua criação, a associação defende o fortalecimento das Ações Afirmativas como princípio e estratégia política fundamental para a garantia da inclusão da população negra no setor audiovisual e para o avanço na luta de combate ao racismo no Brasil. A APAN é fruto de uma articulação histórica de cineastas e profissionais do audiovisual brasileiro voltadas a potencializar as políticas públicas e as ações de mercado que fomentem e ampliem o audiovisual negro no país. A APAN, tem como eixo central para sua incidência a articulação política, pautar e tensionar a construção de caminhos para o audiovisual brasileiro atento a um debate racial, de gênero e territorialidade. 

*Este é um artigo de opinião e não reflete necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires