QUAL A SAÍDA?

Depois da cheia: o difícil recomeço de famílias ribeirinhas atingidas por enchentes no Recife

Moradores reconhecem a insegurança do local onde vivem, mas temem planos de reassentamentos em outras áreas

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Cabeleireira Agatha Santos precisou se mudar para poder reconstruir a própria casa após as enchentes de 2022 - Afonso Bezerra
Eu já não sou mais a mulher de antes, mas eu não tenho condições de sair daqui

A rotina de Edna Maria mudou radicalmente depois da enchente de maio de 2022, no Recife. Ela mora às margens do rio Capibaribe, na Vila Arraes, e teve a casa completamente inundada após as fortes chuvas daquela temporada.

"Foi um ano que a gente vai levar realmente para o resto da vida. Me deixou com crise de ansiedade. Não pode dar uma chuvinha que seja, que eu já fico sem conseguir dormir", relatou a moradora. 

Até hoje, as marcas da água continuam pelas paredes. A casa é adaptada para evitar novas inundações. Muros nas janelas, batentes mais altos e móveis suspensos, para evitar novos prejuízos.  

"Muita coisa aqui em casa a gente fez no improviso. Meu guarda-roupa mesmo: o meu esposo fez de cimento, porque eu não quero mais de madeira. Investir em alguma coisa? Eu não comprei mais móvel nenhum. O sofá eu já peguei no lixo e botei aqui dentro de casa". 

Edna não é a única. Na vizinhança, outra história luta para se reconstruir. A cabeleireira Agatha Santos viu a casa ser tomada pelas águas do Capibaribe. Depois da cheia, a casa foi interditada e, sem ter para onde ir, Agatha batalha para reconstruir o imóvel. Esbarrou em diversas negativas em programas da prefeitura e, até agora, tenta refazer o lar com o que recebe com os cortes de cabelo e ajuda de amigos. 

"Nessa cheia que teve, foi babado assim porque a gente sempre passa por cheias e cheias, mas nunca chegou lá em cima na minha casa", destaca a intensidade inédita da enchente. 

Em comum, estas famílias têm o receio de precisar sair do local onde moram por causa de projetos de adaptação às mudanças climáticas. Mesmo com programas bem avaliados tecnicamente, elas não confiam nos planos de reassentamento da prefeitura, que removem as famílias de áreas de riscos e adotam a política do auxílio moradia. 

Em 2022, a prefeitura do Recife contraiu um empréstimo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, no valor de quase dois bilhões de reais, para desenvolvimento do programa ProMorar. 

A movimentação foi feita após as tragédias na cidade. Naquele ano, 133 pessoas morreram devido às fortes chuvas, com enchentes e deslizamentos de barreiras. 

O plano envolve a construção de parques alagáveis na cidade, obras de infraestrutura e revisão na metodologia de gestão. 

O ProMorar deve levar obras para quase 40 comunidades no Recife. Uma dessas ações é o serviço de macrodrenagem do rio Tejipió, um dos mais prejudicados no Recife. Mas a população tem receio da metodologia de remoção, dos valores pagos como indenização e o local onde serão realocados.

A prefeitura, por sua vez, informa que o programa "vai reassentar a menor quantidade possível de famílias".  Segundo o comunicado, "o objetivo principal do programa é melhorar a qualidade de vida e promover a inclusão socioterritorial da população de baixa renda da cidade do Recife, majoritariamente instaladas nas Comunidades de Interesse Social (CIS) do Recife".

Ainda segundo a prefeitura, o programa será executado "de acordo com as necessidades de cada comunidade. O Plano de Reassentamento será apresentado e validado junto à população beneficiada pelo programa."

As margens dos rios recifenses espelham a desigualdade da cidade. O pesquisador André Araripe explica que, historicamente, a cidade cresceu negligenciando as águas, sem criar políticas públicas de conservação, nem de convivência harmônica com cursos dos rios.

Agora, com o avanço das moradias nas margens, o lugar vive um problema urgente para proteger famílias e construir uma política habitacional consistente, que respeite as peculiaridades e as tradições das populações atingidas. 

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas(ONU), Recife é 16ª cidade do mundo mais ameaçada pelas alterações climáticas, principalmente pelo avanço do mar. 

O problema central das comunidades ribeirinhas, essas que estão nos cursos d 'água, nos rios, ou em canais da cidade, não é necessariamente porque está chovendo mais, ou porque o rio está mais caudaloso. É porque essas comunidades não têm infraestrutura urbana. E elas estão se adensando cada vez mais.

Enquanto isso, Edna e Agatha vivem com a memória das enchentes assombrando seu cotidiano e tentam encontrar perspectiva para reconstruir a vida sem medo de novas inundações 

"E para sair daqui, para ir morar de aluguel, eu não vou. Eu não vou deixar minha casa que eu trabalhei, que eu lutei para ter ela, para sair daqui para morar de aluguel, que é isso que a prefeitura vai propor se vier me tirar daqui. Eu tenho medo, eu não vou dizer que eu não fico com medo a cada chuva ou cheia. Eu tenho medo, eu já não sou mais a mulher de antes, de ficar na minha casa, arrumar minha casa, ter minhas coisinhas como eu era antes. Mas eu não tenho condições de sair daqui", conclui Edna Maria. 
 

Edição: Nathallia Fonseca