PANDEMIA DE APOSTAS

'Transformamos o país numa lavanderia', diz consultora do Idec sobre regulação tardia de bets

Regras editadas quatros anos após liberação dos jogos 'já chegam obsoletas', diz especialista

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Sem controle do governo, sites de aposta embolsaram cerca de R$ 68,2 bilhões em 12 meses - Foto: Bruno Peres/Agência Brasil
O bolso do consumidor é um só. Quando o gasto com apostas cresce, ele tirou a renda de outra coisa

O governo federal começou a bloquear nesta sexta-feira (11) o acesso a mais de dois mil sites de apostas não credenciados para funcionar no Brasil. A medida está prevista na regulamentação das bets sancionada no ano passado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e que, só agora, quatro anos após a liberação dos cassinos online, começa a surtir algum efeito prático no país.

Durante esse período, as bets se proliferaram no Brasil. Nos últimos 12 meses, embolsaram cerca de R$ 68,2 bilhões. Comprometeram 0,62% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro; 0,95% do consumo total e 1,92% de toda a massa salarial brasileira.

Tornaram-se um negócio tão grande que o esforço do governo para controlar o que ele mesmo chama de pandemia das apostas, por meio de leis e portarias, pode ser em vão. Isso é o que pensa Ione Amorim, economista e consultora do programa de serviços financeiros do Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec).

“Essa regulamentação já chega extremamente obsoleta”, afirmou em entrevista ao podcast Três por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato. “Abrimos a porteira [para os sites] e transformamos o país numa lavanderia [de dinheiro].”

Nesta sexta-feira (11), o Três por Quatro trata do mercado das apostas online. Aborda os riscos que esse tipo de jogo causa para a saúde mental e financeira dos cidadãos, e os efeitos disso tudo sobre a economia nacional.

Esse tipo de jogo foi liberado no país em 2018 por uma lei sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB). A lei estabeleceu que o governo tinha até 2022 para regulamentar a atividade. Jair Bolsonaro (PL) estava no governo quando o prazo expirou. Ele nada fez para tirar a regulamentação do papel, que só veio quando Lula assumiu.

Para Ione, após todo esse tempo em que as bets funcionaram sem regulamentação, controlá-las agora tornou-se quase impossível.

Juliane Furno, professora da Faculdade de Economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e comentarista-fixa do Três por Quatro, também criticou a demora na regulamentação das bets no Brasil. Segundo ela, a ação veio como uma política pública para tratar do que ela chama de “fato consumado”.

“Primeiro você autoriza o funcionamento. Depois da generalização desse tipo de aposta, fica muito difícil não a regulamentação e até eventualmente a proibição”, afirmou ela, que é contra a liberação dos jogos, mas já não acha mais possível proibi-los.

“O que fez o Brasil se tornar um grande destaque internacional e atrair todas as empresas de apostas do mundo foi exatamente a falta total de uma regulamentação”, acrescentou Ione.

Problemas crescentes

Ione afirmou que, sem regulamentação, as bets usaram das mais diversas estratégias para atrair apostadores. Influenciadores foram contratados para fazer propaganda de falsas táticas infalíveis de ganhar dinheiro. A publicidade desse tipo de jogo tornou-se tão agressiva que tirou a capacidade dos cidadãos de avaliar corretamente os riscos envolvidos.

“As pessoas dizem: ‘aposta quem quer’. Mas a verdade é que as pessoas estão sendo tão estimuladas que as empresas conseguem entrar na mentalidade delas”, disse Ione.

Ela lembrou que jovens e até crianças viraram jogadores contumazes no Brasil – algo que, por lei, não poderia ocorrer.

A regulamentação inclui barreiras para esse tipo de publicidade. Ione reforça que as regras chegam num momento em que parte da população já está viciada nos jogos.

“Tem professores que relatam que estudantes estão usando recursos do programa Pé de Meia para apostas. Tem uma quantidade expressiva de usuários de um programa social importante, que o é o Bolsa Família, que utiliza parte da transferência de renda para apostas”, acrescentou Juliane, sobre o jogo descontrolado de alguns apostadores.

Impactos na economia

Felipe Tavares, economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), também participou do Três por Quatro. Ele confirmou que o crescimento do mercado de apostas no Brasil já tem efeitos nocivos sobre a economia do país.

“O bolso do consumidor é um só. Quando o gasto com apostas cresce, quer dizer que o consumidor tirou a renda dele de alguma outra coisa”, explicou. “O varejo continua crescendo, mas cresce menos do que poderia por causa das apostas.”

A CNC, em pesquisa sobre o mercado de apostas, já identificou que os cassinos online colocaram 1,3 milhão de brasileiros em situação de inadimplência e retiraram R$ 1,1 bilhão do consumo do varejo nacional.

A mesma pesquisa da CNC identificou que as apostas comprometem ainda mais a renda das mulheres mais pobres, o que agrava os problemas sociais. “O grande sucesso da estruturação do Bolsa Família foi entender que era preciso priorizar a mulher como chefe de família. Mas agora esse público está cada vez mais intenso nas apostas”, afirmou Tavares, antevendo os efeitos das bets sobre a saúde e bem-estar de crianças.

O economista disse que a CNC já se posicionou a favor do banimento das apostas online no Brasil. Juliane afirmou que até imaginou, no passado, que a arrecadação com impostos das bets poderia ser positiva para as contas públicas nacionais. Hoje, ela revê essa posição e também é contra a ampliação do mercado de jogos no Brasil.

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.

Edição: Nathallia Fonseca