Criado em 5 de junho para analisar e discutir saídas para a proposta que criminaliza a disseminação de fake news, o Grupo de Trabalho (GT) sobre Regulamentação das Redes Sociais, instituído pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), não saiu do papel. O colegiado tinha prazo de funcionamento de 90 dias prorrogáveis por mais 90, período dentro do qual deveria produzir um relatório. Até agora, no entanto, o GT não chegou sequer a firmar um cronograma de atividades e, portanto, não se reuniu nenhuma vez.
O GT é composto formalmente por 20 parlamentares e tem como foco o texto do Projeto de Lei (PL) 2630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. A proposta estipula normas de operação e transparência a serem seguidas por provedores de redes sociais e de serviços de mensagens no que se refere a conteúdos falsos. O PL também prevê, entre outras coisas, que, depois de eventualmente aprovadas, as normas recaiam apenas sobre plataformas com mais de 2 milhões de usuários no Brasil. É o caso de redes e aplicativos como Facebook, X/Twitter, WhatsApp e Telegram.
O PL fixa ainda regras para cadastro de contas, procedimentos de moderação de postagens, produção de relatórios trimestrais de transparência, além de impulsionamento de conteúdos e publicidade na rede. Também projeta a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que deverá ser criado pelo Congresso Nacional para avaliar os relatórios produzidos pelas plataformas e cumprir outras tarefas.
A proposta já foi aprovada pelo Senado em junho de 2020, mas encontrou uma série de entraves na Câmara. Apesar de ter tido a tramitação de urgência aprovada pelos deputados em abril do ano passado, o PL gerou intensa queda de braço entre parlamentares do campo da esquerda e integrantes da ala bolsonarista, sendo esta crítica ao projeto. A dificuldade em se produzir um consenso em torno do tema esteve ilustrada no placar da votação de urgência: foram 238 votos favoráveis e 192 contrários. Para ter o mérito posteriormente aprovado, o PL precisaria de pelo menos 257 votos favoráveis.
A matemática apertada elevou o termômetro das discussões e fez com que Arthur Lira adiasse a colocação do mérito em votação no plenário. Foi a partir disso que se lançou a ideia de criação do GT, materializada em junho. A iniciativa não agradou a todos porque, entre outras coisas, diferentemente das comissões, os GTs, da forma como existem na atualidade, não têm previsão regimental e por isso acabam operando como iniciativas muito soltas dentro da dinâmica da Câmara, sem um rito rígido de trabalhos e, portanto, correndo um risco maior de caírem no vazio.
Limbo
Com a estagnação do grupo, o PL 2630/2020 foi jogado em um limbo político do qual ainda não tem previsão de sair. "Além de a pauta ter ficado estancada, o GT aparenta ter desconsiderado os vários anos de construção coletiva sobre o tema, atingida por meio de inúmeras audiências públicas e reuniões com especialistas", afirma Bruna Martins dos Santos, da Coalizão Direitos na Rede, que aglutina mais de 40 entidades civis e especialistas interessados em debater a garantia de direitos no âmbito da internet.
Também integrante do Grupo Consultivo Multissetorial do Fórum de Governança da Internet das Nações Unidas, a especialista lamenta também a engenharia política adotada na formulação do GT. "O novo GT tem uma composição confusa, que, além de enviesada, é composta de membros do parlamento que foram colocados lá estrategicamente para interromperem evoluções no texto, uma vez que a grande maioria dos parlamentares é contra novas regulações ou é composta por reincidentes contumazes na disseminação de desinformação", resgata.
Os deputados Filipe Barros (PL-PR), Gustavo Gayer (PL-GO) e Marcel Van Hattem (Novo-RS), por exemplo, estão entre os membros do GT que votaram contra a urgência do PL e pertencem a siglas que costumeiramente criticam a ideia de imposição de regras para as plataformas. Bruna dos Santos ressalta que, diante da inconciliável disputa entre as bancadas legislativas em torno do projeto, o país segue acumulado prejuízos no que diz respeito ao assunto. Um deles tem sido a falta de uma norma específica para situações que envolvem casos como o de Elon Musk, proprietário do X e alvo recente de investigações e sanções do Supremo Tribunal Federal (STF) por utilizar a rede social para atacar a democracia.
"O nosso país perde muito, uma vez que estamos passando por mais um processo eleitoral com grande disseminação de misinformação [divulgação de informação errada por acidente] e desinformação [divulgação proposital de dados falsos], deep fakes [técnica de manipulação de vídeos e áudios por meio de inteligência artificial (IA)] e conteúdo gerado por IA com o objetivo de confundir o eleitor, e ainda não dispomos de mecanismos que nos permitam responsabilizar plataformas digitais por conta da inércia e desinteresse em lidar com esse tipo de discurso", critica a especialista da Coalizão.
A jornalista Bia Barbosa, da coordenação do coletivo Diracom, que estuda o tema das plataformas digitais e questões transversais, chama a atenção para o cenário escorregadio que se criou no âmbito do sistema de Justiça por conta da ausência de uma norma específica para lidar com o problema das fake news. Ela lembra que o país conta com distintas legislações que podem ser adotadas para interpretar determinadas condutas no ambiente digital.
"Temos o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Estatuto da Criança do Adolescente (ECA), a Lei do Estado Democrático de Direito, etc. Todas essas legislações podem e devem ser aplicadas. O problema é que, quando não se tem uma legislação específica sobre o tema, a aplicação em conjunto ou não dessas outras legislações depende muito da avaliação e da disposição do juiz de plantão que vai analisar cada caso. Isso é muito ruim", aponta, ao defender a necessidade de consolidação de um padrão de tratamento sobre o tema.
Legislativo X Judiciário
Em meio ao cenário de abandono da pauta, a tendência agora é que o assunto seja definido pelo STF, que deverá julgar ainda este ano três ações ligadas ao segmento das plataformas e ao Marco Civil da Internet. Nas últimas semanas, o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, disse publicamente que o tema entrará na pauta dos ministros após as eleições municipais. Diante do cochilo do Congresso em relação ao PL 2630, a tendência é que o assunto dispare uma nova série de ataques à Corte por parte de parlamentares – especialmente os do campo mais reacionário – que frequentemente se queixam de suposta interferência do Supremo em assuntos do Legislativo.
"E isso tem riscos também porque a posição do STF, pelo menos de uma parte importante dele, liderada pelo ministro Alexandre de Moraes, é de uma tendência a uma equiparação em termos de responsabilização das plataformas aos meios de comunicação tradicionais. E, por mais que a gente entenda que elas têm muitas diferenças, o risco maior é que isso pode vir por meio de uma declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet", afirma Bia Barbosa.
O artigo 19 da lei estipula que, "com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário".
"A questão é que o Marco Civil da Internet fala de provedor de conteúdo, então, ele se aplica para absolutamente tudo que está na camada de conteúdo da internet. Ele não se aplica só para a rede social", pontua Bia Barbosa. A especialista do Diracom sublinha que, ao gerar um amplo efeito dominó da responsabilização por conteúdos postados na rede, a eventual declaração de inconstitucionalidade do artigo 19 também teria potencial para criar deformações no processo.
"Você pode transformar, por exemplo, os portais de notícias em responsáveis por comentários que seus leitores deixam nas matérias, assim como pode colocar os sites de avaliação de restaurantes como responsáveis pelos comentários que os seus usuários fazem. Um site [de hospedagem] como o Booking poderia passar a ser visto como responsável pelos comentários que os hóspedes deixam sobre os hotéis. Será um impacto gigante no mundo da internet se a decisão do Supremo for simplesmente pela inconstitucionalidade e sem uma modulação. É um risco que corremos", alerta a coordenadora do Diracom, que também tem mestrado em Políticas Públicas.
A respeito do tema, o STF tem sob sua alçada o Recurso Extraordinário (RE) 1037396, que discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet; o RE 1057258 e dois recursos a ele associados, que miram a responsabilidade de aplicativos e ferramentas de internet pelo conteúdo gerado por usuários, com a possibilidade de supressão de conteúdos por vias judiciais; e ainda a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, cujo recorte é a possibilidade de bloqueio do WhatsApp por decisões judiciais.
Edição: Thalita Pires