A colonização não acabou, ela segue atualizada nos dias de hoje
“Uma anciã, por exemplo, que é parteira, tem um saber tradicional que é a nossa pós-doutora nos territórios”, defende a escritora Geni Núñez.
Enquanto avança no estudo academicista dentro da psicologia, no qual já é doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a pensadora indígena trabalha em paralelo para questionar o discurso que vem de dentro dessas instituições, denunciando a forma colonialista de legitimar o conhecimento e a pesquisa no Brasil.
"Algo que na psicologia nós temos falado, na articulação de indígenas psicólogos, é que nós queremos pintar a psicologia de jenipapo e urucum, para que a psicologia seja também um espaço que reconheça a diversidade”, defende a escritora em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (14).
“A gente vai ver que muitos dos currículos nas universidades não só têm uma perspectiva diferente da nossa, mas contra nós. São teorias, modelo de mundo, que se afirmam através da afirmação do nosso desaparecimento, do rebaixamento das nossas culturas, dos nossos modos de vida", afirma a dona do canal Genipapos, com mais de 350 mil seguidores nas redes sociais.
A escritora acabou de voltar da Feira Literária de Paraty (Flip), na qual ficou com dois livros entre os mais vendidos, sendo um deles seu mais recente lançamento, Feliz Por Enquanto.
Além dele, Descolonizando Afetos também esteve na lista dos que tiveram maior procura do público.
Na entrevista, Geni Núñez fala sobre o sucesso de seus livros e discute os desafios para indígenas seguirem acessando e permanecendo espaços “colonizados”, como as universidades.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: Os debates sobre colonialismo vêm ganhando força, e diversos movimentos têm encontrado formas de denunciar as maneiras que ele segue infligindo a nossa sociedade. Podemos afirmar que a nossa forma de amar também está dentro desse pacote de efeitos do período colonial?
Geni Nuñez: Nós temos lembrado que a colonização não acabou, ela segue atualizada nos dias de hoje. E a colonização, dita de modo muito resumido, é a imposição violenta de um único jeito, uma única língua, uma única religião, um único jeito de amar, uma única maneira de ser e estar no mundo.
Eu tenho apontado o quanto que isso nos invade, sobretudo nas maneiras como a gente aprendeu a se relacionar, como se aquele caminho fosse o único verdadeiro, o único possível.
É um convite que nós fazemos, de se articular com várias outras lutas. A gente tem a compreensão de que a terra, por exemplo, não devia ter dona, nenhum humano deveria ser dono de uma terra.
Temos dito que todo território tem direito à liberdade, desde o nosso próprio corpo, até as florestas, os rios, as matas. Então, a descolonização, ela passa por todas essas dimensões.
Então, sim, nossa forma de amar está colonizada?
Certamente. É algo muito desafiador, por vezes, porque um dos efeitos da colonização é a gente acreditar que aquilo é uma escolha individual, que foi algo espontâneo e voluntário. Eu me relaciono desse jeito porque eu quis assim.
Então, um convite que eu trago no meu trabalho é para que a gente desconfie se algo é feito por bilhões de pessoas do mesmo jeito, sendo que cada pessoa é um mundo é uma diversidade de modo de vida.
Tudo que se apresenta como única maneira universal de existência é parte desse projeto de imposição.
Como o capitalismo e a colonização interferem na relação conosco e com as outras pessoas?
Nós temos comentado que em vários momentos aparece essa ideia de que é algo novo, então, como se o cuidado com a Terra fosse algo novo, o parto humanizado fosse algo novo.
Uma série de práticas e saberes dos nossos povos tem sua autoria borrada e são apresentados como um novo produto. Algo que eu tenho trazido no meu trabalho é de que há muitas maneiras de se relacionar e de estar no mundo, e elas não têm nada de novo.
Assim como quando alguém diz: "ah, agora a homosexualidade está na moda". Como se a diversidade sexual fosse algo super recente.
Isso também é parte dessa colonização que nos faz acreditar que tudo aquilo que não é a norma é algo inventado, é algo falso, é algo fajuto, é algo que é frágil, que não tem veracidade, né?
A primeira noção de adultério, que os missionários utilizavam, é um adultério espiritual. Eles diziam que aquele povo que adorava mais de um deus era um povo adultero.
É justamente essa ideia de fidelidade que inspira a monogamia, porque é isso que a gente aprende. Como eu sei que sou amada? Se eu não for amada e desejado ao mesmo tempo que outras pessoas.
Sua resposta me fez lembrar de um conceito que você apresenta nos seus trabalhos, o de "caravela epistêmica". Poderia explicar melhor do que se trata, por favor?
Quando os colonizadores chegaram no nosso território, havia essa ideia de que aquela terra era terra sem dono, porque não consideravam os nossos ancestrais como pessoas. Só era considerado pessoa se fosse civilizado, cristão e humano.
A gente vai olhar para essa discussão e vai perceber que essas outras formas de se relacionar são categorizadas como algo que não é desenvolvido, como algo que é supostamente animalesco, atrasado, como algo que é inferior, que é pecaminoso, que é vergonhoso.
O que tenho dito no meu trabalho é que tudo que é parte da diversidade é antagônico à monocultura, em todas as suas faces.
Como foi seu processo de ingresso na universidade? Foi desafiador encarar os choques culturais?
Minha mãe vem do território do Paraguai, na fronteira com o Mato Grosso do Sul, e eu passei toda a minha infância lá, depois fui para Santa Catarina.
Algo que na psicologia nós temos falado, na articulação de indígenas psicólogos, é que nós queremos pintar a psicologia de jenipapo e urucum, para que a psicologia seja também um espaço que reconheça a diversidade do nosso luto, que reconheça a nossa diversidade de línguas, de costumes, de territórios também.
Que reconheça a diferença de contexto de nós que estamos nas cidades agora e também dos parentes que estão em retomadas, por exemplo.
No meu trabalho, algo que eu tenho buscado fazer, e acho que todos nós, de alguma forma, no movimento indígena, é a gente ter a memória dessa luta também no nosso ativismo.
É pensando nisso que eu me desafio a seguir falando também de poesia, seguir falando da nossa cosmogonia, das nossas línguas, dos nossos costumes, porque a gente não é só morte e violência, por mais que ela nos atinja de maneira tão, tão invasiva e dolorosa.
A gente segue nesse reflorestamento, que é um reflorestamento literal, que acontece nos territórios, mas é também esse reflorestamento do imaginário, de outras perspectivas
Fale mais dessa frase, sobre “pintar a psicologia de jenipapo e urucum”...
Olha, eu sou muito grata à luta do movimento indígena, as gerações que me antecederam, porque sem isso eu não seria possível, em todos os sentidos.
A gente vê que a nossa geração agora, de acadêmicos indígenas, é uma presença inédita nas universidades, é algo, assim, muito recente ainda.
Então, nós temos lutado muito pela permanência, não só no sentido financeiro, mas também em tudo que perpassa essa permanência.
A gente vai ver que muitos dos currículos nas universidades não só têm uma perspectiva diferente da nossa, mas contra nós. São teorias, modelo de mundo, que se afirmam através da afirmação do nosso desaparecimento, do rebaixamento das nossas culturas, dos nossos modos de vida.
É muito hostil, muitas vezes, estar nesse espaço.
Outra questão que nós temos pautado é de que uma anciã, por exemplo, que é parteira, ela tem um saber tradicional que é a nossa pós-doutora nos territórios, né? Então é questionar essa ideia de que você só tem direito de viver bem se você tiver uma carreira, um currículo. E olha lá, né?
Então nós temos pensado também nesse direito, nessa possibilidade de construir saberes e trocas que não tenham essa meritocracia como fundamento.
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Edição: Geisa Marques