BDF ENTREVISTA

Embaixadora Irene Vida Gala defende presença feminina na política externa: 'Mulher não manda filho pra guerra'

Ela lembra que quando começou, nos anos 80, Itamaraty não usava palavras no feminino como embaixadora ou ministra

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Diplomata Irene Vida Gala, subchefe do Escritório de Representação do Itamaraty em São Paulo - Wikidipl / Wikimedia Commons
Gosto muito de dizer que eu sou embaixadora. Tenho título e faço questão de usar

"Uma mulher não manda seu marido, seu filho para a guerra. Em um espaço com maior número de mulheres fazendo política e, mais do que isso, pensando política, teremos um ambiente de maior cooperação e menos confronto."

Essa é a avaliação – citando um ditado angolano – da diplomata Irene Vida Gala, subchefe do Escritório de Representação do Itamaraty em São Paulo, ao BdF Entrevista.

Ao longo de sua trajetória profissional, Gala especializou-se nas relações do Brasil com países do continente africano, bem como na temática de gênero nas relações internacionais e tem constantemente apoiado esforços para a maior presença de mulheres na carreira diplomática como presidente da da Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB).

Quando iniciou sua trajetória profissional na década de 1980, ela recorda que o Itamaraty não usava palavras no feminino como embaixadora ou ministra. Se muita coisa mudou desde então, ela ressalta que é preciso avançar.

"A diplomacia não é vista como uma carreira para mulheres. Precisamos, em primeiro lugar, mudar essa imagem. Por isso o trabalho que a nossa associação faz eu acho tão importante. Gosto muito de dizer que eu sou embaixadora. Tenho título e faço questão de usar, para que as meninas, jovens e estudantes consigam olhar e falar: 'Há mulheres, é um espaço para mim'."

Além da mudança da percepção das mulheres sobre a carreira de diplomata, Gala defende a aplicação de cotas no Itamaraty de forma a garantir efetivamente a presença de mulheres. 

"Hoje em dia, nós precisamos efetivamente fazer ações afirmativas que mostrem que há a disposição da estrutura de estado de acolher mulheres na diplomacia. Para fazer isso, você tem que por cotas. A cota é o sistema que mostra a disposição da acolhida." Leia abaixo, trechos da entrevista:

Brasil de Fato: O Itamaraty é machista?

Irene Vida Gala:  Muito machista. A gente espera mudar nisso, né? Ele reflete uma sociedade que é patriarcal, misógena. Então infelizmente essa é uma constatação, não singulariza o Itamaraty, mas o que a gente quer fazer é mudar essa estrutura na sociedade brasileira.

Estamos progredindo, sobretudo com as gerações mais velhas, mas acho que infelizmente ainda nos falta uma liderança que seja mais articulada no sentido de falar e fazer, trazer mulheres para o primeiro plano. Das 20 maiores embaixadas do Brasil no mundo, só uma liderada por mulher, que é embaixada do Brasil em Washington, as outras 19 são chefiadas por homens. 

Chegou a aumentar com o Lula, em relação ao Bolsonaro, de 13% a 20%, a fatia de embaixadas lideradas por mulheres.

Aumentou um pouquinho, mas ainda deixa muito a desejar. É marginal esse aumento, nossa expectativa era que o presidente Lula e o nosso ministro, em função do discurso, incorporarem essa população de mulheres em um processo político.  A gente imaginava que fosse ter bastante mais espaço, mas isso não se materializou, então para nós significa que a luta continua.

Você dedicou muito de sua carreira à paridade de gênero, uma maior igualdade dentro do Itamaraty. O que te motivou a isso? Teve algum gatilho?

Olha, teve um gatilho, um que tem a me sensibilizado para essa questão de gênero. Meu segundo posto na carreira foi em Angola, e eu fui para para lá durante o período do auge da guerra, cheguei lá em 93 e saí de lá em 96.  Naquela época havia uma discussão em torno de um processo de paz que era totalmente ocupado esse espaço de negociação por homens e as mulheres queriam participar. Elas diziam: "uma mulher não manda seu filho, seu marido pra guerra". Essa fala me marcou muito. 

Já no ano 2000, a ONU aprovou na Assembleia Geral, e depois do Conselho de Segurança, a primeira resolução sobre women peace and security, (mulher de paz e segurança) dando a diretriz de que todos os processos de paz deveriam ter mulheres na negociação. 

Havia um movimento das minhas colegas para se discutir a questão de gênero e eu me juntei a esse movimento dentro do Itamaraty. Enfim, no ano passado, depois de 10 anos criamos uma associação de mulheres diplomatas brasileiras e meus colegas me convidarem para ser a primeira presidenta da Associação das mulheres diplomatas brasileiras, cargo que eu deixei em julho passado, mas no qual continuo militando de outras formas, inclusive no nosso sindicato. 

Quais os principais avanços e retrocessos no Itamaraty, desde a época que você começou, nos anos 1980?

Tenho 40 anos de carreita, entrei em 1984 e a evolução é total. Naquele momento que eu entrei, havia uma série de simbologias que mostram que a mulher não existia. Não tínhamos as carreiras no feminino, era a embaixador, a secretário, a ministro, todos os cargos não usavam o feminino. Nós não podíamos usar a calça comprida. 

São coisas meio pitorescas, mas que mostram qual era o ambiente daquela época. Eu costumo dizer que quando eu entrei a questão de gênero não era assunto, a gente tinha que se realmente participar daquele ambiente e se mimetizar.

Houve avanços, nós somos a embaixadora, temos uma associação, uma pauta nossa. Não houve retrocesso, mas mas é absolutamente impactante ver os números:  quando entrei as mulheres eram 23 % da minha turma. Hoje, o percentual de mulheres segue em 23%. Então, 40 anos depois, nós não evoluímos nos números. Não chega a ser retrocesso, mas não houve avanço.
 

                                                                                                        ***

Na entrevista completa (no vídeo abaixo), Vida Gala fala também sobre os esforços do governo para repatriar cidadãos brasileiros do Líbano, o papel da diplomacia, relações brasileiras com a África e questões envolvendo o Itamaraty como machismo e conservadorismo. 

Edição: Leandro Melito