O círio, quando ele chega, não tem jeito, a gente só pensa em comida
O Círio de Nazaré é Natal, ano novo e Carnaval. Belém se transforma desde o final de setembro na expectativa da população de viver a rua e abrir a porta para deixar o cheiro da maniçoba convidar as pessoas a entrar, explorando uma das principais características do povo paraense, a hospitalidade.
Além da procissão católica de acompanhar a trajetória da Santa pelo centro da cidade, o Círio é um momento de expressão cultural, com shows a céu aberto de graça, exaltando a arte do estado e também com artistas convidados. Toda a festividade termina com o almoço de domingo reunindo famílias.
"O Círio, quando ele chega, não tem jeito, a gente só pensa em comida, porque a cidade de Belém cheira a maniçoba, cheira a tucupi, cheira a cultura por todos os cantos", celebra Tainá Marajoara, ativista e cozinheira do Iacitatá, espaço que fortalece a agroecologia e culinária local amazônica no centro da capital paraense.
A cozinheira de um dos boxes do tradicional Mercado do Ver-o-Peso, Maria Paula Campos, conta o segredo de uma boa maniçoba.
"Leva tudo que leva numa feijoada. E é da folha da mandioca, moída, a gente cozinha por oito dias para tirar o amargo, porque ela é amarga que nem um animal consegue comer. É tradicional a maniçoba do Círio, em todas as casas", explica Campos.
Tradição de família
Sandra Nascimento Rabelo é a responsável pelo preparo da maniçoba no tradicional "Almoço do Plácido", que reúne 60 pessoas da família Nascimento no bairro Marambaia, em Belém.
"Eu fui pegando aos poucos e eu faço da maneira que eu gosto. Eu quase não ponho a parte suína, eu ponho mais a parte bovina. E é para muita gente, porque além da maniçoba existem outras coisas também né, como o pato no tucupi, que é um dos pratos típicos dessa época", conta.
"Eu acho um ato muito de gratidão, sabe? É um momento que a gente está unido e todo mundo sentindo aquele mesmo prazer”, celebra a cozinheira. “Sempre peço todos os anos. Não só todos os anos, mas como todos os dias, para que dê bastante saúde para a minha família. E que cada vez eles se fortaleçam mais. Graças a Deus que existe essa união", complementa.
Indústria de alimentos no Círio
Tainá Marajoara, no entanto, chama atenção para o avanço da indústria de alimentos sobre a festividade. Descendente de indígenas da Ilha de Marajó, ela participou diretamente dos debates e articulação para que a comida fosse considerada como cultura no Brasil.
"O carnaval da Bahia é equivalente ao que acontece com o Círio aqui, essa questão do domínio das marcas, das corporações de alimentos, dizendo que elas fazem parte da festa. Só que elas não fazem parte da festa, porque não se faz maniçoba com margarina, não se faz pato no tucupi com margarina. Margarina não conta como o sabor do Círio. Porque na nossa cultura alimentar, elas não fazem parte das nossas receitas", explica. "As nossas receitas não têm ultraprocessados", reafirma a indígena, uma das lideranças do movimento Círio sem Veneno.
Cozinheiro no Iacitatá, Carlos Ruffeil lembra que a presença das grandes marcas também gera impactos econômicos e sociais para comunidades tradicionais e de pequenos agricultores, além das famílias de feirantes.
"Muda a tradição de ir na feira e comprar a maniva, o tucupi. Você vai tirar do povo. Quem tirava tantas toneladas hoje só tira a metade, porque a outra metade vai para o supermercado", coloca.
"Tem o indígena que está lá cuidando da semente, tem o quilombola que está cuidando dos roçados, existe uma complexidade cultural que tem um ápice quando o outubro chega, é quando tudo converge para a Belém. E essas confluências de culturas, elas vêm desaguar aqui no Ver-o-Peso", complementa Marajoara.
Edição: Thalita Pires