Coluna

Homenagem a Gustavo Gutiérrez, pai da teologia da libertação

Imagem de perfil do Colunistaesd
O jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (esq.) e o teólogo peruano Gustavo Gutierrez após receberem o Prêmio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades 2003 em Oviedo, norte da Espanha - MIGUEL RIOPA / AFP
O eixo estruturador dessa teologia é a opção pelos pobres em defesa da justiça social

No dia 22 de outubro, morreu em Lima Gustavo Gutiérrez (1928-2024), considerado o iniciador da Teologia da Libertação, aos 96 anos.

Era um querido amigo com quem, a partir dos anos 1970, colaborei para desenvolver uma teologia que refletisse a realidade da América Latina, marcada por injustiças sociais e pobreza aviltante. Para ele, como para todo teólogo, o centro da indagação era Deus, primeiramente como experiência de vida, especialmente a partir do sofrimento humano, e, em segundo lugar, como objeto de reflexão reverente.

O tema que o acompanhou ao longo da vida foi o sofrimento. Ele mesmo enfrentou a poliomielite, passando anos em cadeira de rodas e, após uma cirurgia, caminhava com dificuldade. Pequeno, manco, com traços de índio quéchua, Gutiérrez era dotado de uma inteligência extraordinária, criatividade, humor e belas “trouvailles”, como esta: “os políticos só pensam em uma intenção, isto é, na segunda.” Em suma, era um homem bom, simples, humilde e espirituoso.

Sua grande questão, com fundo biográfico, era: como compreender Deus diante do sofrimento do inocente? Como entender Jesus ressuscitado em um mundo onde as pessoas, vítimas da opressão, morrem antes do tempo? E como encontrar o Deus libertador em uma sociedade marcada pela falta de fraternidade e solidariedade?

A mensagem cristã não se limita à vida eterna e ao Reino de Deus, mas oferece estímulos para melhorar a vida presente, especialmente a dos pobres e oprimidos, na convicção de que a vida eterna e o Reino começam aqui na Terra. O próprio Jesus histórico foi um pobre que não tinha onde reclinar a cabeça. Por isso, Gutiérrez entendia a teologia como “uma reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra da revelação”.

O livro fundador de 1971, Teologia da Libertação: Perspectivas, foi escrito em um contexto em que outros pensadores, como Juan Luis Segundo no Uruguai e Segundo Galea no Chile, também buscavam novas perspectivas de libertação, sem que nos conhecêssemos. Ouvíamos um chamado, que creio vir do Espírito, e éramos apenas microfones que amplificavam esse som.

O eixo estruturador dessa teologia é a opção pelos pobres, em defesa da justiça social e da libertação. Gutiérrez afirmava: “Os pobres são os prediletos de Deus, não porque sejam cristãos ou bons, mas porque Deus, identificando-se com eles, é bom e misericordioso." O Deus vivo opta por aqueles que têm menos vida. Esse é o fundamento teológico da opção pelos pobres, por sua opressão e libertação.

Homem profundamente espiritual, viveu com os pobres no bairro periférico de Rímac, em Lima. Dessa inserção, surgiram quase todas as suas obras, como Beber do Próprio Poço, O Deus da Vida, A Força Histórica dos Pobres, e Em Busca dos Pobres de Jesus Cristo: O Pensamento de Bartolomeu de las Casas.

Como outros teólogos da libertação, enfrentou incompreensões e perseguições, especialmente do Cardeal de Lima, Cipriani, da Opus Dei, que o acusava de marxista. Essa ideia foi reforçada pelo Cardeal López Trujillo, de Medellín, na Colômbia. Contudo, essa acusação não se sustenta e sempre foi usada contra aqueles, como Dom Helder Câmara, que defendem os pobres como vítimas de injustiças e exploração que demandam transformação histórica e social. Na América Latina, o conceito de "pobre" se expandiu para incluir indígenas, negros, mulheres e outras minorias. Assim, surgiram diversas vertentes da Teologia da Libertação, cada uma com seu método e foco específicos. O método é sempre o mesmo: ver a realidade sofrida, julgar à luz da fé e agir para transformar essa realidade, tendo como protagonistas os próprios oprimidos.

Portanto, a libertação parte da fé. Marx nunca foi pai ou padrinho da Teologia da Libertação, como alguns ainda afirmam sem fundamento. Sua inspiração se encontra nas fontes da fé cristã, nas Escrituras e na tradição de figuras como São Francisco de Assis e São Vicente de Paulo, que colocaram os pobres no centro de suas preocupações.

Gutiérrez recebeu inúmeros prêmios e títulos de doutor honoris causa, mas não dava importância a essas honrarias, sempre se identificando com a pobreza e os pobres. O Papa Francisco o recebeu em Roma como um reconhecimento de sua reflexão, que enriquece toda a Igreja. Durante suas exéquias, o Papa enviou a seguinte mensagem: "Hoje penso em Gustavo Gutiérrez, um grande homem de Igreja que soube estar calado quando era necessário, soube sofrer quando lhe coube, e soube produzir tanto fruto apostólico e uma teologia rica. Que descanse em paz."

Nós que o conhecemos em seu trabalho e no dia a dia testemunhamos que viveu e morreu com claros sinais de santidade pessoal. Sentiremos muitas saudades dele.

Edição: Nathallia Fonseca