Mulheres da Terra

Conheça a luta pela terra das mulheres do Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas (BA)

Primeira reportagem da série traz a história de quatro lideranças de um dos quilombos mais antigos do Brasil

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Quilombo Quingoma, possivelmente o mais antigo do país ainda ocupado, segue lutando pela regularização fundiária de seu território - Beatriz Tuxá / CESE

No Quilombo Quingoma, localizado em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (BA), um grupo de mulheres quilombolas lidera uma luta constante pela sobrevivência de seu território e comunidade. Rejane Rodrigues, Raquel Conceição, Gabriela Sacramento, Ana Lucia dos Santos (conhecida como Donana) e Rosemeri Nascimento são figuras centrais nesta batalha, atuando como guardiãs do legado do quilombo reconhecido como um dos mais antigos do Brasil, criado em 1569.

E é sobre essas cinco lideranças que vamos falar nesta primeira reportagem do projeto Mulheres da Terra, realizado pelo Centro de Comunicação Democracia e Cidadania da Universidade Federal da Bahia (CCD/UFBA), com apoio do Brasil de Fato Bahia e do Grupo de Pesquisa de Geografia dos Assentamentos na Área Rural (GeografAR).

Estas mulheres não apenas lideram, mas também organizam e preservam a cultura, a memória e a vida desse território ancestral. O projeto Mulheres da Terra busca destacar a importância de suas ações, reconhecendo a valiosa contribuição de Rejane, que atua como a principal liderança; Gabriela, que preside a Associação Agrícola Novo Horizonte e cuida das questões jurídicas; Donana, Yalorixá que oferece apoio espiritual às lideranças; Raquel e Rosemeri, que coordenam a articulação interna de resistência.

Apesar do reconhecimento oficial como território quilombola pela Fundação Cultural Palmares desde 2013, e da inclusão na Área de Preservação Ambiental (APA), o Quilombo Quingoma enfrenta uma situação de vulnerabilidade. O processo de regularização fundiária foi interrompido, em 2015, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A área é constantemente ameaçada por projetos de expansão urbana e especulação imobiliária, incentivados pelo governo estadual e municipal, que buscam transformar a região em uma zona de desenvolvimento urbano.

Por isso, a luta dessas mulheres é marcada por um esforço incansável para proteger suas terras e preservar sua cultura. Elas enfrentam um ambiente hostil, onde o racismo, a violência e as injustiças ambientais são constantes. O trabalho de liderança, embora vital, é exaustivo e, frequentemente, requer sacrifícios pessoais, incluindo tempo longe da família e impactos na saúde.

Lideranças femininas

Para Rejane Rodrigues, a força para continuar a luta vem da ancestralidade. "Trago a ancestralidade guiando o meu corpo na luta. Quem luta são os ancestrais e o lado espiritual. Nossos corpos são instrumentos da espiritualidade", explica. Essa conexão espiritual é uma fonte de força e inspiração, motivando não apenas Rejane, mas todas as mulheres do Quilombo Quingoma a persistirem, apesar dos desafios.


Rejane Rodrigues, uma das lideranças femininas do Quilombo Quingoma / Arquivo pessoal

Rejane, cuja trajetória como líder começou aos 12 anos, é uma figura admirada na comunidade. Ela desafia as expectativas de gênero, mostrando que as mulheres podem e devem estar na linha de frente da luta por direitos e reconhecimento.

"Por ser mulher, a gente trava algumas lutas, porque as pessoas acham que mulheres são para estar dentro de casa, fazendo as coisas. Eu não. Eu nasci para a luta, eu gosto de estar na luta e, por ter nascido assim, isso faz com que as pessoas da comunidade vejam em mim uma protetora", afirma.

Donana, uma das líderes espirituais do quilombo, reforça o poder da participação feminina na luta. Para ela, as mulheres, especialmente as negras, são dotadas de uma ousadia e um senso de justiça que as impulsiona a defender os oprimidos.

"Eu sou contra qualquer tipo de injustiça, então eu sempre fico do lado daqueles que estão sendo oprimidos… Procuro defender até aqueles que não sabem o que está acontecendo com a vida deles", diz Donana, destacando seu compromisso com a justiça social.

No entanto, a dedicação dessas mulheres muitas vezes resulta em conflitos com seus companheiros, que nem sempre entendem ou apoiam a intensidade de seu engajamento. "É muito claro que, por ter mulher na frente, eles se acomodam e deixam a mulherada tomar a frente disso tudo… Quando temos ações fora da comunidade, eles estão presentes, mas, no dia a dia, na articulação, os homens não aparecem", aponta Rosemeire.

Esse cenário não é exclusivo do Quilombo Quingoma. No Brasil, mulheres negras são  líderes em muitas comunidades tradicionais, organizações comunitárias e entidades sociais. Elas desempenham um papel fundamental na gestão e organização, protagonismo enraizado em um legado ancestral de liderança e cuidado, transmitido de geração em geração. No Quingoma, essas líderes aprenderam com suas antecessoras e, agora, compartilham esses conhecimentos para as novas gerações.

O compartilhamento  de saberes é uma prática tradicional nas relações sociais de africanidade, similar à forma como se aprende nas religiões de matriz africana. Por isso, Rejane, que também é pedagoga, destaca a importância das crianças na comunidade. Para ela, as crianças não são apenas o futuro, mas o presente. Ela vê a educação das crianças sobre sua cultura e identidade quilombola como uma missão vital, especialmente porque esses temas raramente são abordados na educação formal.


Raquel Conceição fala da profunda ligação com o território / Arquivo pessoal

Território

Muitas pessoas podem se perguntar: por que essas mulheres abdicam tanto de sua rotina e vida em prol da luta pelo território? O que muitos não compreendem é que, para comunidades quilombolas, o território é sinônimo de identidade e faz parte de sua existência. "O que sinto pelo território é difícil de explicar; quando estou fora, é como se eu ficasse com uma sede que só passa quando estou lá dentro", relata Raquel.

A territorialização de comunidades quilombolas no Brasil representa a luta contra a colonização e a valorização dos modos de vida quilombola, estando inserida no contexto da questão agrária e racial do país. "Nascer na comunidade é uma forma de resistência", destaca Rejane. Para ela, trata-se de não se curvar à vida urbana e às suas dinâmicas, que reforçam a estigmatização, periferização e subalternização de pessoas pretas.

A vivência no território é o que define a vida dos quilombolas. É plantar no fundo do quintal, tomar banho no rio que corta o território, compartilhar a vida em um ambiente tranquilo com outros quilombolas, aprender e ensinar. Por isso, a existência do território é tão vital, e muitas vezes coloca em risco a vida de suas lideranças. Como ocorreu, tragicamente, com Mãe Bernadete, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, brutalmente assassinada por proteger seu território de projetos de especulação e mega-empreendimentos.

Para garantir a sobrevivência do Quilombo Quingoma, muitas dessas mulheres precisam estar distantes de seu território, como é o caso de Rejane, principal liderança, que está há 90 dias distante da comunidade sob proteção do Estado por ter recebido ameaças de morte.

Regularização fundiária

Desde a promulgação do Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988, que reconhece a propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades quilombolas e exige que o Estado emita os respectivos títulos, persiste uma batalha entre as comunidades quilombolas e o Estado para que este cumpra seu dever de regularizar esses territórios.

Essa luta se reflete não apenas na titularização, mas também no processo de certificação. Segundo dados do GeografAR, das 944 comunidades negras rurais e quilombolas identificadas na Bahia, existem 696 certificadas pela Fundação Cultural Palmares, 371 processos abertos no Incra e apenas 37 comunidades com seus territórios total ou parcialmente regularizados, mesmo após mais de 20 anos do de publicação do decreto que prevê os processos de regulamentação fundiária para territórios quilombolas.

A ausência dessa regularização resulta no aumento de conflitos e violência contra as pessoas quilombolas. Esse é o cenário vivenciado por Rejane Rodrigues, Raquel Conceição, Gabriela Sacramento e Ana Lúcia dos Santos no Quilombo Quingoma. Situação semelhante foi o que culminou no assassinato de Mãe Bernadete, assim como no assassinato da liderança indígena Nega Pataxó, no Baixo Sul da Bahia.


Rosemeri Nascimento conta que são as mulheres que lideram a luta pelo território no cotidiano da comunidade / Arquivo pessoal

Esses casos são parte de uma realidade mais ampla: em 2023, a Bahia foi o estado com maior número de conflitos no campo registrados por uma pesquisa da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Caderno de Conflitos no Campo 2023, realizado pela CPT, mostra que os conflitos no estado vêm aumentando desde 2016. E a maioria das vítimas de conflito no estado são pessoas quilombolas, de comunidades de fundo e fecho de pasto, indígenas e sem terra.

A titularização do território é o grande sonho das mulheres do Quingoma. Elas acreditam que esse dispositivo legal pode levar a uma maior preservação da comunidade e de suas vidas.

"A minha missão se concentra na defesa desse território sagrado, que abriga esse patrimônio humano que são os quilombolas. Meu maior desejo, enquanto idosa de 60 anos, é poder celebrar a titularização desse território. Não vai ser a solução de tudo, mas, pelo menos, se ninguém puder arrancar um pedaço do coração da gente, que é esse território, aí a gente já vai estar menos vulnerável", afirma Ana Lúcia.

Os quilombos e os territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais no Brasil têm-se mostrado importantes para a preservação do meio ambiente, das relações sociais coletivas e a biointegração de ambas, garantindo presentes e futuros possíveis em contextos de crises cíclicas, em especial a crise climática. Essa relação é sustentada por um profundo respeito pela terra, que não é vista como capital material por essas comunidades, mas como meio de reprodução da vida, orientada pelos valores de ancestralidade, espiritualidade e afetividade.

O reconhecimento legal da Comunidade Quilombola Quingoma é um direito garantido pela Constituição Federal, mas que, na prática, só será possível devido à luta empenhada e organizada pelas mulheres do Quingoma na defesa do seu território vital.

Fonte: BdF Bahia

Edição: Gabriela Amorim