A poluição causada por plástico nos oceanos atinge hoje montantes alarmantes no Brasil: o país despeja anualmente 1,3 milhão de toneladas desse tipo de resíduo nos mares, o equivalente a 8% de todo o plástico que chega aos oceanos do mundo. A estatística faz com que o Brasil ocupe a 8ª posição no ranking dos dez maiores poluidores globais e a primeira quando o assunto é a situação da América Latina.
O problema pode ser traduzido em outros números: pesquisadores já encontraram microplástico em nove de cada dez espécies dos peixes mais consumidos no planeta. Além disso, na Amazônia brasileira, 98% dos peixes já apresentam resquícios de plástico no intestino e nas brânquias.
As estatísticas integram o relatório Fragmentos da destruição: impactos da poluição plástica na biodiversidade marinha brasileira, divulgado este mês pela Oceana, organização sem fins lucrativos que atua na conservação dos mares. Em conversa com o Brasil de Fato, o analista de campanhas da entidade, Iran Magno, chama a atenção para o alcance do plástico tem tido junto à fauna dos oceanos.
"Esse plástico tem afetado toda a cadeia alimentar e a ecologia das espécies. As tartarugas estão entre os grupos mais afetados pela poluição plástica, porque evoluíram para entender itens flutuando no oceano como alimento. Hoje elas não conseguem diferenciar o plástico da sua fonte de alimentação", sublinha, ao afirmar ainda que o problema exige uma mudança de postura por parte de atores do Estado brasileiro.
Além de se engajar na campanha "Pare o tsunami de plástico", que envolve dezenas de organizações e promove um abaixo-assinado virtual (https://pareotsunamideplastico.org/ ), a entidade tem feito apelos também pela aprovação do projeto de lei (PL) 2524/2022, que está parado no Senado e prevê uma mudança de rumos para o país na produção de plástico. "A gente tem uma tarefa de casa importante pra fazer. A gente acredita na nossa capacidade e criatividade como país de reverter esse quadro", afirma o especialista. Confira a seguir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: O Brasil despeja anualmente 1,3 milhão de toneladas de resíduos plásticos no oceano. Queria começar pedindo para você explanar aqui pra gente que tipo de impacto esse número astronômico nos traz ao meio ambiente.
Iran Magno: Quando a gente chegou neste número, a gente chegou olhando pro Brasil como país continental, em que a maior parte da população mora na faixa costeira – de acordo com o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], 54% moram em áreas costeiras. A gente é um grande produtor de plástico, então, esse número não chega como uma surpresa diante do tamanho do país e do que a gente consome. Mas acho que ele mostra que a gente ainda tem uma responsabilidade importante em pensar esse problema [olhando] de frente e pensar soluções que de fato revertam o problema.
Quando a gente olha essa quantidade imensa de lixo chegando no mar todos os anos, a gente vê que isso equivale a 1,3 milhão de carros pequenos de poluição e lixo sendo despejados nos nossos oceanos todos os anos. Esse plástico tem afetado toda a cadeia alimentar e a ecologia das espécies. Vale destacar algumas espécies que o estudo aponta, como as tartarugas, que são animais que estão neste planeta há muito mais tempo do que a nossa própria espécie e sobreviveram à extinção dos dinossauros, hoje estão entre os grupos mais afetados pela poluição plástica porque, na sua trajetória de evolução, evoluíram pra entender itens flutuando no oceano como alimento. Muitas vezes elas se alimentam de algas e águas-vivas, mas hoje elas não conseguem diferenciar o plástico da sua fonte de alimentação.
Esse plástico acaba ficando preso no seu trato gastrointestinal e muitas vezes até leva esses animais a óbito. O estudo demonstra que isso não se restringe só às tartarugas. A presença do plástico na forma de microplástico, que é o plástico que fica no ambiente e vai se fragmentando em partículas cada vez menores, é constatada desde o plânctons, que está na base da cadeia alimentar, até a macrofauna. Esse microplástico está sendo biodisponibilizado e tem se movido por toda a cadeia.
Isso demonstra que a gente precisa olhar o problema de frente e tomar as rédeas da situação como país. E acho que um ponto interessante quando a gente fala de plástico é que ele não conhece fronteiras. Essa poluição, hoje em dia, está no ambiente terrestre, está nos rios, que são, muitas vezes, o carregador desse plástico até o mar, está nos oceanos, mas também está no organizamos dos seres vivos, que somos nós.
A publicação da Oceana atualiza os dados de um outro relatório que vocês fizeram em 2020. O que vocês perceberam de lá pra cá, em termos comparativos?
Acho que a mensagem mais importante neste momento é entender que a situação continua grave e que, como país, precisamos atuar mais consistentemente rumo à solução. É por isso que defendemos a discussão e aprovação de um projeto de lei (PL) que tem tramitado no Senado e que estabelece a economia circular de plástico. E por que esse PL propõe e por que ele é interessante? Hoje em dia muita gente conhece o sintoma da poluição, que é essa que está no oceano, no meio ambiente. Mas a gente ainda tem falhado em discutir a raiz do problema. A forma de produzir o plástico é bastante problemática.
No relatório de 2020, a gente trouxe um dado que olhava pro tamanho da produção de plástico descartável no país. Naquela ocasião, eram 2,95 milhões de toneladas de plástico de uso único todos os anos. São itens como sacolas, talheres, copos, pratos. Esses itens são produzidos para a gente utilizar por poucos minutos e viram lixos que não são nem adequados à reciclagem. A gente precisa fechar essa torneira porque esses itens são um fator importante pro agravamento do problema.
Sobre o projeto de lei 2524/2022, que você mencionou, o texto está parado no Senado. Gostaria que você explicasse o que é economia circular de plástico e quais as dificuldades para se fazer essa proposta avançar politicamente no Congresso Nacional.
O PL propõe que a gente produza plástico de uma forma mais inteligente. A primeira parada dessa jornada para uma transição seria fechar a torneira dos plásticos que são problemáticos, não são adequados à reciclagem e vão de fato ser produzidos para virarem lixo ambiental. Nessa categoria se encaixam os plásticos de uso único, os descartáveis, e aqueles que já mencionei. A gente precisa assegurar que tudo que a gente produza seja apto à reciclagem e ao reuso.
Um exemplo é a garrafa pet, que hoje compõe uma parte importante da renda de catadores de materiais recicláveis, é um produto reciclável, mas é reciclável quando é transparente. Quando você tinge, muitas vezes ela não tem a mesma reciclabilidade da garrafa transparente. Uma das coisas que o PL 2524 propõe é que a gente pense na forma como a gente produz, repense design de produto para que aquilo que a gente produzir aqui no país seja de fato reciclável ou apto ao reuso.
Uma das grandes importâncias desse PL é que ele conte com o apoio da sociedade, por isso que a Oceana e outras 80 organizações da sociedade civil se uniram em apoio a esse projeto de lei na campanha "Pare o tsunami de plástico". É uma campanha que informa a sociedade sobre o desafio de combater a poluição de plástico, informa também que ela não é um problema só dos oceanos e está muito perto da gente. Todo mundo pode agregar forças nessa campanha, que tem um abaixo-assinado (https://pareotsunamideplastico.org/ ).
O PL 2524 está no meio de uma disputa no Senado em que tem contado com a rejeição e o embarreiramento da bancada ruralista. Quais são as maiores dificuldades para que uma proposta dessa natureza avance?
Esse é um texto que fala pra gente rever a forma como produz. Há muitas décadas a gente já vem falando de poluição marinha e vem lidando só com o sintoma – a gente fala que o consumidor precisa gerir melhor seus resíduos, que os municípios precisam ter um sistema melhor de gestão, etc. –, mas a parte da produção, que está intrinsecamente ligada à raiz do problema, ainda não foi atacada. As indústrias que produzem plástico têm resistência ao avanço do projeto, mas hoje em dia essa já é uma discussão global. Vários países têm estabelecido legislações com algum grau de restrição aos plásticos descartáveis. Isso tem ocorrido com os Estados-membros da União Europeia, com países da África, como Nigéria e Gana, até os nossos vizinhos Peru e Chile, que também têm algum grau de restrição.
Aqui no Brasil a gente ainda está deixando a desejar. A gente ainda não é consistente em olhar para a forma como a gente produz plástico, e isso precisa avançar. Esse é um problema de ordem ambiental, mas é também um problema social e econômico e precisa contar com um processo de transição liderado pelo poder público, pelos tomadores de decisão para que de fato se estabeleçam novas formas de produzir plásticos, estabeleçam alternativas mais sustentáveis do que o plástico e assegurem que isso ocorra de maneira justa, com a manutenção dos postos de trabalho. É um processo que precisa ocorrer e já tem tomado aí a atenção global, inclusive na construção de um tratado internacional de combate à poluição marinha que tem sido discutido no âmbito da ONU [Organização das Nações Unidas].
Considerando tudo isso que você falou e o fato de o Brasil ser o 8º maior poluidor de plástico do mundo e o maior da América Latina, além do projeto de lei, de que forma o país poderia deixar de amargar esse título e se voltar para uma forma mais sustentável de consumo? Quais políticas públicas poderiam ser articuladas para se atingir um outro patamar de desenvolvimento em termos de consumo de plástico?
No nosso ponto de vista, o fato mais urgente e necessário é realmente que a gente feche a torneira dos descartáveis. Olhar para o início da cadeia de produção e parar de produzir plástico que só vai virar lixo é algo super importante. Dentro dessa discussão de como que a gente avança em soluções, temos também que dar a responsabilidade a cada um dos atores de acordo com o seu tamanho. Muito é dito sobre o papel do consumidor, e é importante que a gente siga gerindo nossos resíduos de forma mais organizada, mas só a responsabilidade do consumidor não vai reverter o quadro.
Então, a indústria, que ainda está muito tranquila e um pouco isenta de responsabilidades em relação ao problema que cria, também precisa ser responsabilizada, precisa ajustar a forma como produz plástico e o poder público precisa estabelecer medidas que assegurem a transição pra um país mais limpo pra todos nós.
Você poderia falar mais sobre experiências bem-sucedidas de fora do Brasil que inspiram essas medidas propostas por vocês?
O estudo inteiro é baseado em referências do que tem de mais novo na ciência. Sobre conteúdo, toda a nossa argumentação e os dados são focados nisso. A respeito de referências internacionais de avanços, na União Europeia existe uma diretiva que estabeleceu diversas formas de abordagens sobre ajustes na produção de plástico. O primeiro item é fechar essa torneira e fazer com que os plásticos descartáveis deixem de ser produzidos, tem mecanismos falando em repensar o design de produto e alguns lugares têm legislações específicas sobre um item ou outro. Tem países que têm leis banindo unicamente sacolas, outros têm leis banindo copos e canudos. Tem uma diversidade de soluções nisso.
No Brasil, a gente ainda não tem nada disso. O primeiro PL falando sobre o banimento de plástico de uso único foi apresentado em 2007 e desde então está engavetado na Câmara dos Deputados. Hoje em dia tem mais de 70 PLs que foram anexados a esse PL. Então, tem uma quantidade imensa de PLs falando sobre a regulação da produção de plásticos que estão parados lá. E, no Senado, temos o PL 2524, que a gente defende e que estabelece um pensamento um pouco mais arrojado, não só em cima de fechar a torneira do que é mais problemático, mas no sentido de repensar a forma como a gente produz plástico.
Acho que, olhando esses exemplos do que acontece internacionalmente e o cenário interno, a gente tem uma tarefa de casa importante pra fazer. A gente acredita na nossa capacidade e criatividade como país de reverter esse quadro. É uma questão difícil, não é fácil, mas a gente precisa realmente repensar o uso e a produção disso.
Edição: Thalita Pires