O mundo está apreensivo, e as apostas correm soltas diante do Fla-Flu que se tornou a disputa presidencial entre Kamala Harris x Donald Trump. Muitos pensam que a população estadunidense com direito a voto vai escolher seu novo líder entre dois extremos. Mas, será? Em vários pontos, sim, sobretudo no âmbito das políticas sociais.
Não é à toa, por exemplo, que a grande maioria dos afro-americanos deve votar em Kamala. Também os europeus se lembram de como foram esculhambados durante o governo Trump, e o mesmo vale em vários aspectos para a América Latina. Mas, em outros temas importantes, não fará tanta diferença ou nenhuma. Vou abordar três deles: a questão palestina, a exploração de petróleo e gás de xisto, e a relação com a China.
Estamos assistindo ao vivo a um genocídio, e quem tem dúvida sobre esse termo deve admitir, no mínimo, que se trata de um massacre indiscriminado. Há um festival de declarações e preocupações por parte de autoridades estadunidenses, mas o governo de Israel só consegue fazer o que está fazendo porque sabe que, no fundo, pode contar com o apoio incondicional dos EUA.
O governo Joe Biden enviou navios de guerra não para pressionar Netanyahu a declarar imediatamente o cessar-fogo, mas para avisar ao Hezbollah e ao Irã que um ataque mais forte a Israel será retalhado pela força militar estadunidense. É sob os olhos do governo Biden que Israel simplesmente expulsa a agência para refugiados palestinos (UNRWA), a única válvula de escape humanitária nos territórios ocupados, em particular em Gaza.
Kamala pode até ter alguma ambiguidade, mas, na campanha, foi obrigada a defender essa mesma política. Logo, não é verdade que Netanyahu precise esperar a chegada de Trump, embora sua convivência com o republicano seja mais amigável e ele não precise mais perder tempo com as inúmeras e inúteis visitas do Ministro de Relações Exteriores democrata, como foi o caso de Antony Blinken no governo Biden.
Há um problema em Michigan, que concentra uma população árabe-americana e de americanos de origem palestina. Ao mesmo tempo, Michigan é um estado-pêndulo (swing state), ou seja, um dos sete que vão determinar o resultado das eleições. Mesmo assim, Bill Clinton, enviado a Michigan para usar seu capital político em prol do voto para Kamala, teve a inacreditável capacidade de, no dia 31 de outubro, fazer um discurso defendendo o massacre, com uma linguagem próxima à propaganda do Estado de Israel, justificando na prática a punição coletiva e indiscriminada.
Esse posicionamento "bipartidário" (compartilhado por ambos os espectros políticos), embora às vezes com tintas ligeiramente diferentes, se explica não só pelo lobby sionista nos próprios EUA, mas também, e sobretudo, pela importância do Oriente Médio para garantir a liderança global dos EUA. Israel é ainda um aliado atômico fundamental para exercer essa liderança na região. Junta-se a isso, no caso de Trump, o fanatismo de alguns grupos evangélicos. Logo, não é muito provável que os palestinos tenham alguma ilusão a respeito dos resultados das eleições.
O segundo exemplo é a exploração de petróleo e gás de xisto por meio da tecnologia de fracionamento hidráulico (fracking) em solo estadunidense. Em meados da década de 2000, os EUA estavam em pânico, pois cerca de 70% de seu consumo de petróleo vinha de importações, muitas vezes de países considerados pouco amigáveis ou instáveis.A invasão no Iraque, em 2003, deve ser vista, inclusive, nesse contexto.
A solução, porém, veio do que paradoxalmente é chamado nos EUA de "revolução energética". Pois é, em pleno século 21, o país com maior capacidade financeira e tecnológica apostou não em sair do fóssil, mas em voltar para o fóssil, inclusive em condições ambientais que parecem mais com a exploração do final do século 19.
Mas deu certo: o país mais que dobrou sua produção de hidrocarbonetos e se tornou, de forma surpreendente, o maior produtor de gás e petróleo do mundo. Os EUA tornaram-se, na prática, autossuficientes, considerando também o acesso ao petróleo e gás do Canadá. E, após a guerra na Ucrânia, tornou-se o maior exportador de gás para a União Europeia e o maior exportador de Gás Natural Liquefeito (GNL).
Dessa forma, os EUA superaram, pelo menos por enquanto, uma grande vulnerabilidade. Todos os governos apoiaram esse processo: Bush Jr., Obama, Trump, Biden e qualquer um dos dois candidatos. Sim, em algum momento da sua carreira política, Kamala fez campanha por um tipo de moratória sobre o xisto, e Trump abraçou o xisto como se fosse seu brinquedo preferido, mas, ao final, ambos se declararam a favor de continuar essa política, não obstante as considerações ambientais.
E isso por um motivo simples: o xisto dá aos EUA a energia necessária para garantir sua competitividade econômica e soberania energética, necessárias, inclusive, para suas forças armadas. Logo, os ambientalistas e outros setores preocupados com a dependência do xisto não terão nenhuma ilusão, e os investidores e interesses financeiros em torno do xisto terão dormido tranquilamente essa noite.
Por último, podemos dizer que também em relação à China, há pouca ou nenhuma diferença. Embora Kamala traga mais previsibilidade e racionalidade, o ponto é que ambos os espectros políticos consideram como sua mais elevada missão garantir a reafirmação da hegemonia estadunidense e entendem que, para isso, é fundamental estancar a ascensão chinesa.
Por isso, inclusive, Biden, ao iniciar seu governo, não interrompeu as sanções econômicas e tecnológicas contra a China, introduzidas pela chamada "guerra comercial" iniciada por Trump. Pelo contrário, em vários aspectos, sobretudo no que diz respeito aos microprocessadores, aumentou o cerco. E, mesmo com relação a Taiwan, embora Trump, como homem de negócio tenha uma visão mais transacional e, em caso extremo, poderia negociar um acordo para abandonar a ilha a seu destino, isso é teoria.
Como vimos nas negociações que fez com a Coreia do Norte, na prática, ambos continuarão usando Taiwan como ferramenta na sua estratégia de conter a China, e serão as próprias forças armadas e de inteligência que terão a tarefa de evitar uma escalada indesejada no estreito de Taiwan.
Os três exemplos discutidos aqui têm em comum o fato de expressarem a vontade compartilhada de insistir na liderança dos EUA, ou melhor, a dificuldade de imaginar um mundo no qual os EUA não sejam o número um. Não ter concorrentes ou potencias que contestem seriamente esse posto permite ao país seguir escolhendo suas políticas com a certeza de inimputabilidade.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
** Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais da UFABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
Edição: Rodrigo Durão Coelho