O governo federal assinou em 25 de outubro, quase nove anos após o crime da Samarco, em Mariana (MG), o acordo que definiu novos termos para a reparação aos atingidos pelo rompimento da barragem da mineradora na bacia do rio Doce.
Na cerimônia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu que, embora seja o maior acordo de reparação já realizado na história, ele não está à altura das expectativas de quem foi impactado pela tragédia.
Apesar de reconhecerem avanços, movimentos populares e as famílias dos 49 municípios afetados pela lama tóxica denunciam que não participaram do processo e só tiveram conhecimento dos termos uma semana antes da divulgação do acordo.
O BdF Explica desta semana mostra o que está em jogo a partir de agora em relação aos direitos das famílias que tiveram suas vidas destruídas pelas mineradoras.
No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, controlada pelas gigantes Vale e BHP billiton, despejou 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração na bacia do rio Doce, matando 19 pessoas, desalojando centenas de famílias e destruindo comunidades inteiras em Minas Gerais e no Espírito Santo.
A lama atingiu 663 quilômetros de corpos hídricos até chegar ao oceano Atlântico, causando a interrupção do acesso à água potável para 1,2 milhão de pessoas.
Milhares de trabalhadores informais tinham o rio e seus 113 afluentes como fonte principal de subsistência. De acordo com dados divulgados pelo Ministério Público Federal, o rendimento médio geral das famílias na bacia do rio Doce passou de R$ 2.014,60 para R$ 826 após o crime, uma queda de quase 60%. Aquelas com renda mais baixa sofreram ainda mais. A variação média foi de R$ 1.504,52 para R$ 433,84, uma redução de 72% na arrecadação.
Apesar de serem as responsáveis pelo crime, coube às mineradoras, ao longo dos últimos nove anos, o papel de gerenciar a reparação. Para isso, foi criada judicialmente, em 2016, a Fundação Renova.
A atuação da entidade, no entanto, acumula críticas devido à falta de solução para diversos problemas básicos para as famílias atingidas. Dentre os 40 compromissos de reparação não cumpridos pela Renova, citamos alguns a seguir.
Em relação à moradia, apenas uma parte das famílias dos distritos destruídos pela lama recebeu novas casas. Até novembro de 2023, por exemplo, 58 moradores de Bento Rodrigues, em Mariana, haviam morrido sem que a comunidade fosse completamente reconstruída.
Sobre o pagamento de um Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) de um salário mínimo, o benefício não abrange todos os municípios atingidos e foi cortado para diversas famílias desde sua implantação. O rio continua contaminado com metais pesados, apesar das propagandas da Renova na mídia comercial.
No município mineiro de Barra Longa, a população de 5 mil habitantes convive desde 2015 com surtos de problemas de pele e respiratórios. Enviado ao Ministério Público em março de 2018, o relatório do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS) comprovou a contaminação de onze moradores de Barra Longa por metais pesados. Todos tinham níquel no sangue.
Três anos depois, uma reportagem do Brasil de Fato revelou que 6 dos 11 participantes do estudo já morreram. Esse e outros resultados das análises toxicológicas que comprovam a contaminação da população por metais pesados são desconsiderados e escondidos pela entidade ao longo dos anos.
O descaso com os atingidos fez a Renova acumular, desde 2016, 85 mil processos no Judiciário brasileiro entre ações coletivas e individuais envolvendo o crime.
Valores da nova reparação
Criticada publicamente por Lula na cerimônia do fim de outubro, a fundação que representa as mineradoras será extinta com o novo acordo de repactuação. A governança da reparação, a partir de agora, será feita de forma descentralizada entre o governo federal, os estados, os ministérios públicos e as defensorias.
O novo acordo, também motivado pela inércia do judiciário, estabelece um investimento, por parte das mineradoras, de R$ 100 bilhões em novos recursos. Há ainda outros R$ 32 bilhões voltados a obrigações a serem feitas pela Samarco e mais R$ 38 bilhões em valores supostamente já investidos pela Fundação Renova.
No total, são cerca de R$ 170 bilhões, que serão geridos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a serem pagos pelas empresas durante 20 anos a municípios, estados, famílias e organizações atingidas.
Em comparação à proposta de 2022, que não avançou durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o atual acordo dobra o valor de recursos novos disponibilizados para a reparação dos atingidos.
Mas o montante é ínfimo se comparado ao lucro exorbitante das mineradoras. Só em 2023, o lucro líquido da Vale foi de R$ 40 bilhões. Já a BHP lucrou quase R$ 45 bilhões. Juntas, as duas gigantes, lucraram, no ano passado, aproximadamente 85% da quantia que será investida na reparação em novos aportes financeiros.
Avanços e retrocessos no novo acordo, segundo os atingidos
Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), nove anos depois do crime cometido pelas mineradoras, não há o que celebrar, embora o movimento considere que a repactuação apresentada inaugure uma nova etapa da luta popular.
O MAB enumera alguns avanços com o novo acordo. Além do protagonismo do poder público na condução do processo de reparação, afastando as empresas desse papel, há um destaque para a continuidade dos trabalhos das assessorias técnicas, entidades escolhidas pelas próprias comunidades, para dar suporte a reparação
Há também a oferta de fundos específicos destinados aos povos Indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, às mulheres, aos pescadores e agricultores familiares.
No último tema, o acordo foi celebrado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que destacou a possibilidade de ampliação de seu Programa Popular de Agroecologia.
Hoje, liderada pelo movimento, são mais de 2 mil hectares em processo de restauração ambiental nos 37 assentamentos ao longo da bacia do rio Doce.
Outro avanço é na oferta de R$ 12 bilhões em ações de saúde, tanto na construção de equipamentos públicos, como na criação de um fundo perpétuo para custear o Sistema Único de Saúde (SUS) em toda a região atingida. O governo estima também que mais de 300 mil pessoas que perderam suas casas ou trabalho serão indenizadas.
A falta de participação dos atingidos na repactuação
O consenso entre muitas das famílias atingidas e movimentos que as representam, no entanto, é o desgosto pela falta de participação na mesa de repactuação.
Isso teve influência direta, segundo o MAB, na definição de um período longo de 20 anos para a aplicação dos recursos e no baixo valor destinado às reparações individuais. Quem não foi contemplado em indenizações anteriores, por exemplo, receberá apenas R$ 35 mil das mineradoras.
As negociações pelo novo acordo começaram em 2022, mas só em 18 de outubro deste ano, uma semana antes do anúncio, os atingidos participaram da primeira reunião sobre o assunto.
A falta de escuta na formulação dos termos do acordo fez lideranças quilombolas e indígenas da bacia do rio Doce ingressarem com um pedido ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luis Roberto Barroso, para que a repactuação não seja homologada.
Barroso, no entanto, foi um dos entusiastas do novo pacto na cerimônia de lançamento. Ele chegou a declarar que o acordo fortalece o princípio da soberania do sistema de Justiça brasileira.
Julgamento em Londres
Pouco antes do lançamento da repactuação, em 22 de outubro, o Tribunal de Tecnologia e Construção em Londres começou a julgar a responsabilização da empresa anglo-australiana BHP Billiton no crime em Mariana.
Considerada a maior ação ambiental coletiva já registrada na justiça inglesa e um dos maiores julgamentos de cunho ambiental da história, o processo movido por ao menos 620 mil vítimas soma um pedido de R$ 230 bilhões em indenizações.
No momento do rompimento, estava situada em Londres uma das duas sedes globais da BHP, localizada hoje apenas na Austrália. O julgamento, que irá até março de 2025, é considerado um marco na luta dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão e pode acelerar o processo de responsabilização das mineradoras no Judiciário brasileiro.
Há 46 municípios entre os requerentes da ação, além de comunidades quilombolas, instituições religiosas e o povo indígena Krenak. Segundo avaliaram à Agência Pública representantes do escritório Pogust Goodhead, que representa os atingidos na ação europeia, a pressa da Vale e da BHP Billiton para finalizar o novo acordo no Brasil teria a ver com o início do julgamento em Londres.
Hoje há processos movidos na justiça contra a Vale e BHP em quatro países: Brasil, Austrália, Países Baixos e Reino Unido.
Edição: Martina Medina