Em júri realizado no dia 9 de outubro, em Fortaleza, um dos envolvidos na morte de Zé Maria do Tomé foi condenado a 16 anos de prisão pelo crime. Zé Maria do Tomé foi assassinado porque lutava contra a pulverização aérea na Chapada do Apodi, no Ceará.
Mas, 14 anos após seu assassinato, como está a luta contra os agrotóxicos na região? Quais ações estão sendo desenvolvidas na região para combater o uso de agrotóxicos? Para responder essas e outras perguntas, o Brasil de Fato Ceará conversou com João Rameres Regis, professor da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, da Universidade Estadual do Ceará e Membro do Movimento 21 de Abril, o M21. Confira.
Brasil de Fato Ceará: Em júri realizado no dia 9 de outubro, em Fortaleza, um dos envolvidos na morte de Zé Maria do Tomé foi condenado a 16 anos de prisão pelo crime. Como vocês do M21 e como as pessoas e entidades que lutam contra a pulverização aérea de agrotóxicos na Chapada do Apodi receberam a notícia dessa sentença?
João Rameres Regis: Receber uma notícia de uma condenação não é um motivo de felicidade propriamente dita, mas trata-se, na nossa compreensão, de uma justiça que precisava ser feita em relação ao ocorrido no ano de 2010, portanto já se distanciavam aí 14 anos do assassinato do ambientalista Zé Maria do Tomé, pessoa, inclusive, que nós tivemos uma convivência, tivemos vários momentos de lutas aqui juntos, participei de algumas atividades nas quais ele participou também. Então, depois do assassinato, houve essa mobilização pela punição daqueles que estavam envolvidos.
Considero que ainda haja uma etapa posterior, mesmo os supostos mandantes tendo sido despronunciados, acreditamos que essa batalha em torno da punição de quem pensou, quem mandou, quem orquestrou, ainda seja reaberta para que essas pessoas sejam verdadeiramente punidas. Mas essa condenação trouxe esse sinal também para o movimento, sinal de que a luta nunca é em vão.
Zé Maria do Tomé foi assassinado porque lutava contra a pulverização aérea de agrotóxicos na Chapada do Apodi. Como era a realidade dessas famílias que lutavam contra os agrotóxicos no tempo do Zé Maria do Tomé na Chapada do Apodi?
Essa luta do Zé Maria contra a pulverização aérea, na verdade, acabou despertando a sociedade limoeirense, tornando visível, tornando pública uma situação problemática que havia sobre a Chapada do Apodi, que era o uso dos agrotóxicos e, mais especificamente, a pulverização aérea. O Zé Maria do Tomé participou conosco de vários momentos de luta em torno desse combate que ele fazia, mas que nós também já fazíamos aqui, nós do movimento social, que ainda não era chamado de Movimento 21. Então, lá na Chapada do Apodi, a pulverização aérea representava aquilo que havia de mais contaminante para a comunidade, porque o avião, ao despejar a cauda de veneno, não tem controle, por conta até dos próprios ventos, de onde esse veneno vai se localizar. Então, eram comuns as doenças relacionadas a essa exposição ao veneno, que vinha pelo ar, mas que também pela água, porque na comunidade do Tomé não havia um abastecimento regular de água para a comunidade, a água do consumo da comunidade era retirada de um dos tanques do Projeto Irrigado Jaguaribe Apodi, que é o projeto onde se localizam as fazendas.
Essa água é captada em um trecho do Rio Jaguaribe, aqui chamado Pedrinhas. Ela é bombeada em torno de uns 70 metros para a Chapada do Apodi, e na Chapada do Apodi ela vai para esses tanques que vão abastecer os canais para as plantações das fazendas que estão localizadas no projeto. Então, o abastecimento da água da comunidade era desse tanque também contaminado. Nós temos uma foto que é bastante representativa do Zé Maria dentro de um desses tanques, de onde tirava água para o abastecimento e, ali, mostrando a relação, na visão dele, do adoecimento de pessoas, mas também da mortandade de animais pelo consumo dessa água. No caso dos animais, pelo consumo também de frutas, digamos assim, do restolho das frutas, daquilo que sobrava de frutas dessas plantações.
A luta do Zé Maria tornou público algo que, em tese, ainda era meio que invisível, se as pessoas porventura não quisessem ver. Por conta disso vieram os grupos das universidades, em particular o grupo Tramas [Trabalho, Meio Ambiente e Saúde, da Universidade Federal do Ceará], que era coordenado pela professora Raquel Rigotto, que iniciou aqui as pesquisas. Essas pesquisas mostraram esse nível de contaminação. As pesquisas iam em várias direções, mas foram mostrando a contaminação do solo, da água, em testes laboratoriais, como também os estudos epidemiológicos começaram a apontar um nexo causal entre o adoecimento de pessoas da comunidade e até mesmo a morte de alguns trabalhadores que lidavam diretamente com o veneno, e esse estudo foi muito importante para que nós tornássemos público o problema.
E como é que está a luta contra os agrotóxicos atualmente na região?
Nós tivemos momentos importantíssimos. Um, é importante frisar, foi em 2009, quando a Câmara Municipal de Limoeiro do Norte aprovou uma lei proibindo a pulverização aérea, isso em novembro de 2009. O Zé Maria foi assassinado em abril de 2010. Então, em novembro de 2009, quando essa lei foi aprovada, exatamente fruto dessas mobilizações, foi uma iniciativa muito importante e uma vitória dos lutadores. Um mês após seu assassinato, em maio de 2010, a própria Câmara que havia aprovado a lei contra a pulverização aérea em Limoeiro do Norte, aprovou a lei ambiental do município. Um dos artigos revogou a lei aprovada meses antes. Isso tem uma simbologia muito forte do ponto de vista negativo. Para nós, isso representou uma grande derrota nessa luta, mas a luta continuou. Em 2019, foi publicada a lei que proíbe a pulverização aérea no estado do Ceará, mas a luta é permanente.
Por que a luta contra o uso de agrotóxicos é tão importante?
O combate ao uso do agrotóxico a gente não faz somente do ponto de vista discursivo, não apenas do ponto de vista da denúncia. Nós acompanhamos um conjunto de experiência de trabalhadores da agricultura familiar que nós chamamos "em transição para a agroecologia", uma produção sem uso de veneno. Acompanhamos também aquelas atividades que estão vinculadas aos bancos de sementes, ao retorno do uso das chamadas sementes crioulas. Existem várias iniciativas que oferecem alternativa a esse modelo, considerado um modelo de desenvolvimento que traz muito mais destruição e gera commodities para poucos, que são os empresários, os investidores nessas atividades. O que sobra para a população são as doenças, e o que resta também para o serviço público de saúde é cuidar das pessoas que foram adoecidas por conta de uma atividade que visou não o bem-estar da população, mas o lucro daqueles que fizeram investimento aqui nessas áreas.
Quais são os impactos dos agrotóxicos na vida e na alimentação das pessoas?
Os impactos são negativos. Não é à toa que nós temos oferecido modelos alternativos, nessa vontade de que nós avancemos bastante na produção agroecológica. Estamos sempre muito expostas a consumir venenos, alimentos não saudáveis por conta do modelo produtivo, então isso impacta diretamente na alimentação das pessoas. Quando nós falamos de segurança alimentar, falamos não somente da não existência do alimento, da sua escassez, da sua falta para algumas famílias que vivem em situação de pobreza, mas, principalmente, que nós tenhamos alimentos saudáveis para nós e para as gerações vindouras, porque esse processo vem se aprofundando de forma galopante, cada vez mais nós estamos reféns daquilo do que as empresas envolvidas na produção de alimentos ofertam para a sociedade. Nós precisamos encontrar meios alternativos onde a sociedade passe a consumir aquilo que vem da produção agroecológica.
Em 2023 o Senado brasileiro sancionou o projeto de lei 1459/2022, também conhecido como PL do Veneno. O que é esse PL?
Olha, esse PL 1459 é uma afronta à sociedade de um modo em geral. Não é algo que atinge pontualmente, porque o projeto libera vários princípios ativos antes proibidos e que agora estão liberados o seu uso. Então são, vamos falar aqui em uma linguagem mais simples, são venenos que são proibidos em outros países no mundo afora, mas que têm a permissão de serem utilizados no Brasil. É como se nós fôssemos cobaias. E junto com o PL tem o agravante, em alguns estados, inclusive no estado do Ceará, da isenção fiscal para o uso dos agrotóxicos. Isso também representa uma afronta. Deveria ser, inclusive, sobretaxado no meu ponto de vista, porque são produtos que ofendem diretamente a saúde coletiva.
Eu vejo esse cenário muito ruim. Há de ter muita luta no Brasil. Acho que nós regredimos, do ponto de vista político, com esse PL. Se a gente deu algum passo à frente, como a proibição da pulverização aérea, acho que o PL significa dois passos ou três, ou sei lá quantos passos a gente deu atrás nessa luta contra os agrotóxicos.
No Ceará, como você bem falou, existe a Lei Zé Maria do Tomé que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos. Fala um pouco sobre essa lei, quais são os benefícios, como está essa lei atualmente?
Essa lei é de suma importância no combate ao uso dos agrotóxicos, ao iniciar por essa modalidade de pulverização, que é a pulverização aérea. Essa lei tem uma inspiração na luta do Zé Maria do Tomé. é uma lei que já em 2015 foi apresentada pelo deputado Renato Roseno (Psol) na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e foi aprovada em 2019. O exemplo dessa lei no estado do Ceará despertou em outros estados da federação iniciativas semelhantes também para proibirem em seus estados o uso da pulverização aérea.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia