Um policial militar executou, com ao menos oito tiros, um homem negro de 26 anos dentro de uma loja da rede OXXO, na av. Cupucê, zona sul de São Paulo, na noite do último domingo (3). Gabriel Renan da Silva Soares estava desarmado e foi alvejado inclusive no rosto e na orelha. Tentava furtar dois produtos de limpeza da loja. Ele é sobrinho do rapper Eduardo Taddeo, que integrou o grupo Facção Central.
No Boletim de Ocorrência (BO) a que Brasil de Fato teve acesso, a versão do PM Vinicius de Lima Britto é que presenciou um indivíduo "subtraindo mercadorias" e o abordou, se identificando como policial. Ao ser questionado, diz o documento, "Gabriel afirmou que estava armado, colocando a mão dentro da blusa, como se estivesse armado e afirmou estar armado. O que obrigou Vinicius a efetuar disparos contra Gabriel, que veio a óbito no local".
A parte de ter feito menção de estar "armado", repetida três vezes na mesma frase do BO, é contestada pela família, que considera improvável que o jovem tenha tido esta reação diante da abordagem de um policial com uma pistola .40. No próprio BO, consta que com Gabriel foram encontrados apenas um cartão do SUS, dois pedaços de papel, uma nota de dólar e duas fotografias.
Ainda segundo o BO, já baleado, Gabriel saiu do OXXO e em seguida voltou em direção ao policial, repetindo "não mexe comigo, que estou armado, não quero nada do que é seu", sendo novamente alvejado. O policial Vinicius de Lima Britto não estava em serviço pela corporação.
Na segunda-feira (4) pela manhã, procurando Gabriel que não tinha voltado para casa, seu irmão viu o corpo na calçada, sob a chuva. Estava coberto, mas pôde reconhecer a bota do serviço de limpeza urbana que Gabriel prestava para a prefeitura de São Paulo.
"É uma engrenagem de matar favelado"
"No resumo, o que acontece é mais do mesmo. É a naturalização do massacre da juventude pobre e negra. Temos um BO deturpado para justificar uma legítima defesa. Que não é a legítima defesa prevista no Código Penal, é a legítima defesa da resistência seguida de morte. Que é uma farsa que garante excludente de ilicitude, que garante a impunidade no final com a indústria da absolvição", afirmou Eduardo.
"Meu sobrinho foi vítima de tudo isso. Um jovem preto que, infelizmente, estava lutando contra o vício em drogas. Em alguns momentos com vitórias, outras com derrotas. Segundo a Organização Mundial da Saúde trata-se de uma doença. Ele não era uma pessoa sem caráter, era uma pessoa lutando contra um vício, tinha o apoio da família", contou o rapper.
"Pelo preparo de matar favelado, ele atirou primeiro para perguntar depois. Não existe justificativa nenhuma para esse tipo de 'legítima defesa'. E muito pior, não existe justificativa para que a sociedade aceite essa narrativa falaciosa", ressaltou Eduardo Taddeo, durante o velório, realizado na tarde desta terça (5).
"Porque é o que a gente vê normalmente nos processos, nos BOs, no inquérito policial, e o massacre vai sendo naturalizado. Não à toa, aumenta o índice de mortalidade das pessoas pobres. Na gestão Tarcísio, o índice de letalidade, principalmente das pessoas negras, aumentou 82% porque é uma estratégia de matar favelado", afirmou.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) informou que "o caso foi registrado como resistência, morte decorrente de intervenção policial e tentativa de roubo na Divisão de Homicídios do DHPP, onde é investigado".
A rede OXXO informou que "pauta suas ações no respeito às pessoas e lamenta profundamente o ocorrido", que alega ter sido "entre dois clientes". A empresa afirma, ainda, que "as imagens do sistema de segurança estão à disposição dos órgãos competentes a fim de contribuir com a investigação". Não os disponibilizou para a reportagem.
"A periferia precisa se mobilizar"
Enquanto seu sobrinho era executado, Eduardo dava uma palestra em Porto Alegre (RS). "Estava falando que a gente precisa se mobilizar, precisa entender como funciona essa engrenagem de massacrar favelados", disse.
"Está na hora de o Estado compreender que a vida nas periferias importa. E cabe a nós, da periferia, compreender também quem são aqueles que estão no poder público pelo bem da periferia e aqueles que estão pelo genocídio da periferia. A gente tem que se identificar e ser representado pelos nossos", defendeu.
"A gente tem que identificar em cada discurso fascista, homofóbico, genocida, quem é o nosso inimigo. Enquanto a gente não fizer isso e ficar colocando no parlamento e no Executivo os nossos inimigos, a gente vai continuar sendo tratado como número estatístico", avaliou Eduardo.
Gabriel foi sepultado nesta terça (5) no cemitério Campo Grande, a poucos metros de outro rapper, Sabotage, que tem no seu jazigo a inscrição "Maurinho". "Era um menino de ouro, sou suspeito para falar, amava muito. Não merecia esse desfecho, ninguém merece", lamentou Eduardo.
Na segunda (4), pouco depois de saber da morte do sobrinho, Eduardo foi até a loja da rede OXXO. "Falei 'vim aqui falar para vocês que vocês não mataram uma pessoa qualquer. É um jovem preto da periferia. Uma vida que importava. Que para vocês não vale nada, mas vale muito para nós. A posição racista, fascista e genocida de vocês vai ficar estampada", relatou.
"E outra, estou vindo aqui para mostrar que nós não temos medo de vocês, não", completou Eduardo: "A gente vai lutar pela nossa causa e a gente vai lutar até o final, para que coisas como essa não se tornem naturais e não aconteçam mais na periferia".
Edição: Nicolau Soares