O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) passa por uma crise. Responsável por manter ativistas protegidos em seu local de atuação, a política está vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Atualmente é executado por meio de convênio nos estados de Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão.
No Rio de Janeiro, familiares da vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada em 2018, são alguns dos defensores a serem protegidos pelo programa. Por lá, acordos entre os governos federal e estadual e a entidade que executava o programa foram encerrados, deixando indefinida sua execução desde o início deste ano. “Está em crise no Rio de Janeiro e em todos os estados. As pessoas que estão submetidas ao Programa de Proteção já se reuniram e apresentaram recomendações ao Governo Federal. É um programa implantado de forma muito precária. É preciso se que cumpra”, diz Jurema Werneck, Diretora Executiva da Anistia Internacional Brasil.
Além das recomendações enviadas pela sociedade civil, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) protocolaram uma Ação Civil Pública (ACP) contra o governo federal com o objetivo de retomar a definição sobre a execução do serviço. Segundo a ação assinada pelo procurador Julio José Araújo Junior e o defensor público da União Thales Arcoverde Treiger, indígenas, quilombolas, líderes políticos, ativistas e jornalistas que atuam na defesa dos direitos humanos do Rio de Janeiro estão em risco “à integridade física e psicológica”. O MDHC publicou o edital nesta semana, após 10 meses de atraso.
O cenário de desproteção dos defensores de direitos humanos no Brasil coloca o país no ranking dos mais violentos a esses ativistas. Sendo o 2º que mais matou defensores do meio ambiente entre 2021 e 2023, segundo a ONG internacional Global Witness, e o 4º país do mundo em assassinatos de defensores dos direitos humanos, de acordo com relatório anual da Anistia Internacional divulgado em 2023.
No caso dos defensores de meio ambiente, os casos se concentram em quatro países que respondem por cerca de 70% dos assassinatos: Colômbia, Brasil, Honduras e México. O primeiro é o país mais letal do mundo, com 79 mortes registradas em 2023. No mundo, o total de vítimas entre 2021 e 2023 subiu para 2.106. No ano passado, foram 196 mortos, dos quais cerca de 50% eram indígenas.
A falta de responsabilização dos envolvidos em crimes contra protetores de direitos é uma das razões para que o Brasil esteja no topo dessa lista, segundo Werneck. “Essa matança segue crescente porque o Estado brasileiro não garante a responsabilização dos envolvidos, não garante uma comunicação sobre o valor que essas pessoas têm para a sociedade, não garante as reparações para as famílias e comunidades afetadas".
Nesse sentido, o assassinato de Marielle e Anderson é emblemático, pontua a diretora. “O Brasil quase que lava as mãos diante desse assassinato. Nossa mobilização tem sido para que o legado de Marielle seja também esse, que se vire a página da impunidade".
Na última semana, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, executores confessos dos homicídios, foram julgados e condenados a 78 e 59 anos de prisão por matar Marielle e Anderson Gomes. Além da pena privativa de liberdade, eles foram condenados a pagar uma indenização por dano moral de R$ 706 mil para seis pessoas, parentes das vítimas.
Os supostos mandantes ainda não foram responsabilizados. Segundo investigações da Polícia Federal, o ex-deputado federal Chiquinho Brazão e o irmão e ex-Conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCE-RJ) Domingos Brazão, teriam ordenado o assassinato da ex-vereadora. O delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro na época do crime, é acusado de ser um dos mentores do crime e ter prejudicado as investigações. Há ainda outros ex-policiais envolvidos no caso, Robson Calixto, ex-assessor de Domingos Brazão e o major Ronald Paulo Alves Pereira, o primeiro teria ajudado a se livrar da arma do crime e Pereira teria monitorado a rotina de Marielle.
O enfrentamento a loteamentos clandestinos de áreas da mílicia na Zona Oeste do Rio de Janeiro teria sido a principal motivação para o homicídio da vereadora, de acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), em denúncia apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com a PGR, os irmãos "possuíam interesse econômico direto na aprovação de normas legais que facilitassem a regularização do uso e da ocupação do solo, bem como o respectivo parcelamento, especialmente em áreas de milícia e de loteamentos clandestinos na cidade do Rio de Janeiro".
Segundo Werneck é preciso responder ainda outras perguntas como a origem da arma que matou Marielle que em tese pertence à polícia. “De onde veio essa arma? Onde está a arma? Como é que essa arma chegou na mão do assassino?”, questiona.
Como se deu o envolvimento de agentes públicos é outra questão a ser respondida, diz ela. “Como é que essas pessoas conseguiram ficar em posições de autoridade e cometer crimes, tantos, porque possivelmente Marielle não foi o primeiro crime que essas pessoas cometeram. Levou seis anos e sete meses para o primeiro julgamento, com muitas alegações de ocultação de provas, de interferências indevidas. Que interferências foram essas? Quem interferiu? Porque interferiu? Tem uma série de perguntas sem respostas.”
Direita e esquerda falham na segurança
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública deste ano mostrou que a Bahia, estado comandado por Jerônimo Rodrigues do PT, manteve em 2023 os maiores números de letalidade policial do Brasil. Ao mesmo tempo em que a letalidade policial em São Paulo, estado governado por Tarcísio de Freitas, do Republicanos teve um aumento de mais de 71% no primeiro semestre, quando comparado ao mesmo período do ano passado, segundo dados do Ministério Público de São Paulo.
Em ambos os estados chefiados por políticos de espectros políticos opostos a violência é alta, aponta Werneck. “Os governos que mais matam, ora estão à esquerda, ora estão à direita, mas estão sempre do mesmo lado, do lado da matança das pessoas que moram na favela, especialmente jovens negros e negras”.
Jurema Werneck é a convidada desta semana do BdF Entrevista. Na conversa ela fala da sua trajetória no ativismo por saúde pública de qualidade e avalia a gestão do atual governo federal sobre a segurança pública. Ela ainda denuncia a falta de ações estruturantes para combater o racismo.
Respostas para o que ela chama de matança de jovens negros se devem em grande parte a situação atual da política de drogas. “Tem sido uma ferramenta para a matança de pessoas negras, para o assassinato frontal seja pelo Estado, seja por outros agentes não estatais, mas também armados. Então precisa mudar. A droga é um pretexto, está em todos os lugares, em todos os países. Mas aqui se aniquila, se dispara armas e armas do Estado, ou seja, armas financiadas pela sociedade contra os jovens negros”, diz. “Todas as políticas públicas atualmente foram erguidas tendo o racismo na base”, pontua.
A solução diante disso é lutar contra o racismo, alega ela. “O racismo atrapalha a evolução do Brasil, o racismo descumpre as obrigações que o Brasil tem com a própria população que reside aqui. Então a solução para nossa reivindicação é que todo mundo lute contra ele por todos os meios necessários”.
Confira alguns trechos da entrevista abaixo. No vídeo acima, você pode conferir a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: Você é uma das fundadoras da Criola, como ela surge? E a partir de quais demandas?
Jurema Werneck: A principal demanda para o surgimento de Criola é a demanda por espaços de liderança, autonomia e autodeterminação mulheres negras, que nós éramos ativistas naquele tempo, em 1992 e que acreditávamos que tínhamos uma agenda a implementar e desenvolver para lutar pelo direito das mulheres, meninas e adolescentes negras no Rio de Janeiro e no Brasil.
Essa era a principal demanda, porque a gente já era ativista e já estávamos inseridas em outras organizações, seja organizações do Estado, muitas professoras, diretoras de escola, ou organizações da sociedade civil, mas a gente reivindicava um espaço nosso e foi assim que fizemos, a partir do reconhecimento de que o racismo atua de forma diferente sobre mulheres, sobre meninas e sobre adolescentes negras. Então a gente precisava de uma resposta à altura e que o antirracismo reivindicava o protagonismo da nossa voz. Não que a gente ficasse na parte de trás dando suporte à liderança masculina. A gente precisava estar na linha de frente. Foi assim, pra falar de nós, sobre nós e lutar por nós nos nossos termos.
Você costuma dizer que “o racismo faz com que as pessoas adoeçam mais”. Em que pé estamos enquanto país com relação às curas para esse adoecimento?
Olha, o racismo é violência o tempo todo, é exclusão e pressão de aniquilamento. O racismo espera que aqueles que eles consideram racionalmente inferiores desapareçam. Então sim, adoece contribui para o adoecimento de forma brutal. A tradição afro-brasileira, a cultura afro-brasileira diz que a resposta para as contingências e para as violências é a agência, eu explico. A solução é você se responsabilizar por fazer algo, não apenas por você, mas pelo coletivo. Essa tem sido a solução que os nossos antepassados apresentaram, porque a violência contra nós já está aí a séculos. E as reivindicações, as nossas necessidades estão postas a séculos e as resposta que eles deram e que nos deixaram como uma informação é que a solução para isso é lutar, lutar para transformar, lutar para melhorar.
A gente vai perder muitas vezes, a gente vai ganhar muitas vezes, mas a nossa perspectiva é sempre buscar avançar. Para faltar menos. Essa é a cura. Não quer dizer que essa cura signifique a eliminação do sofrimento, da dor, porque o racismo faz doer, não tem jeito. Não quer dizer que essa cura vai significar eliminação da morte. A gente vai morrer, todo mundo vai. Mas você recuperar o seu poder de agenciamento, a sua capacidade de fazer e lutar, esse é o remédio que nossos antepassados disseram que é, então é o que eu faço, esse é o meu remédio, esse é o nosso remédio, como disse Malcolm X é lutar contra o racismo por todos os meios necessários.
Transformações na nossa política de drogas, de segurança pública e carcerária passam por esse processo também?
Sim, com certeza. A política de drogas, da forma como está, tem sido uma ferramenta para a matança de pessoas negras, para o assassinato frontal seja pelo Estado, seja por outros agentes não estatais, mas também armados, para matar jovens negros, principalmente, mas não apenas. Então precisa mudar. A droga é um pretexto. A droga está em todos os lugares, em todos os países. Mas aqui se aniquila, se dispara armas e armas do Estado, ou seja, armas financiadas pela sociedade contra os jovens negros. O problema é o racismo. Então sim, é preciso mudar essa política como todas as outras. Todas as políticas públicas atualmente foram erguidas tendo o racismo na base.
O racismo, eu sempre digo que ele é patriarcal, ou seja, ele funciona diferente para as mulheres e para os homens cis hétero normativo. Funciona diferente para quem é cisgenero, para quem é transgenero, para quem é lésbica, gay, transsexual, bissexual. Ele funciona diferente para cada um, mas tudo isso está na base da construção das políticas públicas como elas existem hoje. Então a gente precisa atuar nas políticas públicas para derrubar a base delas e colocar elementos de antirracismo capazes de enfrentar o racismo em cada uma delas. Aí sim, também será um caminho para isso que você chama de cura.
A Anistia Internacional foi uma das organizações que reivindicou a volta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta durante o governo Bolsonaro. Como você vê a retomada dessa comissão? Que só foi reinstalada em julho deste ano.
O Estado brasileiro cometeu crimes, foram agentes do Estado brasileiro que cometeram os crimes de tortura, desaparecimento forçado, cerceamento, censura, foram uma série de crimes, crimes graves, muito graves. A Comissão da Verdade é para garantir o direito à memória, a gente precisa contar o que aconteceu. As vítimas diretas do regime de ditadura não tiveram, e ainda não tem as reparações necessárias por parte do Estado e algumas pessoas receberam reparações pecuniárias ao longo do tempo, mas não é suficiente, é preciso desnudar, é preciso inclusive mudar a lei, a lei da Anistia, que era tão esdrúxula, que acabou protegendo mais aqueles que cometeram graves violações de direitos humanos, do que as vítimas que foram injustamente acusadas, presas e torturadas.
Mas os que cometeram crimes contra a humanidade, que torturaram, pra isso não cabe anistia. Então é preciso resolver isso também. É preciso que a sociedade não esqueça. O direito à memória existe para que a gente se lembre, para não repetir. Então a Comissão da Verdade é importante, mas é importante que ela tenha todos os poderes necessários para fazer avançar a memória e a reparação. Ela não pode ser cerceada, ela não pode ser censurada. Ela precisa cumprir e fazer cumprir o nosso direito à memória e ao direito de todo mundo que foi afetado. É preciso que ela siga.
Demorou e isso é péssimo, está demorando. Então a nossa expectativa é que avance, mas avance de verdade, porque ainda há desaparecidos, ainda há mortos, que não foram declarados, e perpetradores, torturadores, criminosos que cometeram crimes contra a humanidade que não foram apontados devidamente pelo Estado brasileiro.
Outro lado
O Brasil de Fato questionou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) sobre a situação atual do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que respondeu com a seguinte nota:
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) reitera seu compromisso inabalável com a proteção dos defensores de direitos humanos, ambientalistas e comunicadores atendidos pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH).
Atualmente, 1.250 defensores de direitos humanos estão dentro do Programa de Proteção, que mantem o sigilo, preservando a segurança e a privacidade das pessoas envolvidas.
O governo federal atua nos estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins, que não possuem PPDDH estadual.
O MDHC tem fortalecido a Política Nacional de Proteção, reestruturando e estabelecendo condições para aprimorar as medidas de proteção aos defensores dos direitos humanos. Além disso, o ministério fortaleceu a Equipe Técnica Federal, responsável atualmente por atender outras 18 unidades federativas sem programas estaduais próprios.
A ampliação do orçamentaria do PPDDH mostra o comprometimento do Ministério para reforçar o Programa. Em 2022 o orçamento era de R$ 10,1 milhões, alcançando a marca de quase R$ 18,9 milhões em 2023 e R$ 28,2 em 2024.
Destacamos a atuação do Grupo de Trabalho Técnico (GTT), instalado em 2023, no âmbito do MDHC, que atende à necessidade de redução da letalidade e das ameaças a defensoras e defensores de direitos humanos, que são comunicadores e ambientalistas.
Edição: Nathallia Fonseca