AUSTERIDADE?

'Governo parece ter escolhido governar para Faria Lima', diz economista sobre proposta de cortes de gastos

Programa Três Por Quatro discute o impacto das restrições fiscais e a influência do mercado na política econômica

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Governo Lula fez série de reuniões com ministros, entre eles Fernando Haddad, da Fazenda, para definir cortes que serão anunciados nesta semana - Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
O medo de desagradar o mercado financeiro é o que impede o Brasil de avançar

"Chegamos a este ponto pela incompetência e covardia dos nossos gestores macroeconômicos”, critica Daniel Negreiros, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), referindo-se à postura liberal da gestão atual do governo federal e ao debate sobre cortes de gastos públicos. Segundo ele, ações são "autosabotagem absoluta por parte desse governo".

O podcast Três Por Quatro desta sexta-feira (8), produzido pelo Brasil de Fato e apresentado por Igor Carvalho e Nara Lacerda, aborda as medidas de corte de gastos em estudo pela equipe econômica e o arcabouço fiscal no terceiro mandato de Lula. Além de Daniel Negreiros, o episódio também conta com a participação da economista e comentarista-fixa do podcast, Juliane Furno. Ambos analisam a postura do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e o direcionamento do governo Lula em questões que impactam tanto a sociedade quanto às contas públicas.

Para acelerar as discussões sobre o controle fiscal, Haddad adiou uma viagem à Europa a pedido de Lula e se reuniu ao longo de toda a semana, no Palácio do Planalto, com ministros da Junta de Execução Orçamentária (JEO). os cortes de gastos devem ser anunciados em breve. Furno ainda destaca que “o estado brasileiro nunca quebrou” e, considerando o desempenho promissor do primeiro semestre, com queda do desemprego e desaceleração da inflação, classifica a pauta de corte de gastos como “terrorismo fiscal e macroeconômico”.

A equipe econômica, liderada por Fernando Haddad, enfrenta pressões do mercado financeiro para adotar uma política de ajuste desde o início do mandato do governo Lula, em 2023. Para Negreiros, “o medo de desagradar o mercado financeiro é o que impede o Brasil de avançar”.

O economista alerta que “essa é uma escolha 'antipovo', atende aos interesses de quem lucra com especulação financeira e está longe de contribuir com o desenvolvimento econômico real do país”, que, segundo dados, tem indicadores positivos: o índice de desemprego registrou uma queda no trimestre de julho a setembro de 2024, atingindo a taxa de 6,4%, a segunda menor taxa em 12 anos; a inflação está sob controle e a projeção de crescimento é de 3,4%, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Juliane questiona a ideia de que “o Estado não tem dinheiro, que a confiança dos investidores está ligada ao grau de endividamento do Estado, e que menos participação estatal significa mais concorrência e menores preços”. Ela argumenta que o aumento de gastos públicos, em vez de prejudicar as camadas mais pobres, deve ser visto como investimento social.

Ela explica que essa ideia se deve ao fato de que a atual política fiscal brasileira carrega as marcas de um diagnóstico equivocado que se consolidou desde a crise de 2015, e relembra que o aumento do endividamento público naquele período foi atribuído a “excessos” do Estado, como gastos sociais e intervenção na economia. “Se esse era o diagnóstico, a solução foi cortar, criminalizar a gestão discricionária e limitar o orçamento, com o Teto de Gastos”, completa a comentarista.

Segundo a economista, o Teto de Gastos limitava a capacidade do Estado de responder às necessidades da população, especialmente em períodos de crise. “Estamos falando de uma regra que, na prática, impede o governo de agir conforme o ciclo econômico. Em uma pandemia, por exemplo, mais gastos em saúde e assistência social são cruciais, mas o teto não permite essa flexibilidade”, afirma.

De maneira semelhante, Negreiros também enfatiza que são os trabalhadores que pagam pelo ajuste e que o arcabouço fiscal representa um “sabotador a longo prazo”. No “cabo de guerra”, como define Furno, entre a população mais pobre e os capitalistas liberais, os primeiros são os que mais sofrem com os cortes, afetando principalmente setores de atendimento público.

Equilibrar contas x atender a população

Dado um cenário nacional em que os gastos públicos se referem diretamente a medidas e ações voltadas para a sociedade, eventuais restrições tendem a interferir no bem-estar da população de forma proporcional, cabendo, assim, aos setores responsáveis compreender que medidas assistenciais, que vão desde saúde pública, educação e distribuição de renda, favorecem “condições para que essa renda volte aos cofres públicos na forma de tributação”, como destaca Furno.

Para estabelecer um contraponto às restrições sobre a utilização de verba pública, Furno salienta que, apesar de uma melhora, a vida do brasileiro ainda está longe do ideal, especialmente considerando um governo progressista.

“A [vida] ainda não está boa, o desemprego está baixo, mas os empregos que têm são os mais precários, a renda está crescendo, mas a renda média ainda é muito baixa”, sublinha a economista, referindo-se à instabilidade do mercado de trabalho.

De maneira semelhante, Negreiros enfatiza a visão da população, que não necessariamente prioriza que as contas públicas estejam “sempre azulzinhas”, mas sim que “quer comida na mesa, quer emprego, quer saúde, quer educação, e se esses serviços estiverem encolhendo, o povo fica desesperado”, analisa Negreiros.

Diante da postura liberal de um governo originalmente progressista, Negreiros aponta que “esse governo parece ter escolhido governar para Faria Lima”, beneficiando, segundo ele, uma “elite puramente parasita”.

Desafios para um governo popular

Após o anúncio de cortes, movimentos populares, acadêmicos e parlamentares de esquerda se uniram para lançar o "Manifesto contra o Pacote Anti-Popular". O documento acusa o governo de adotar uma postura "liberal demais" e de atender às pressões da Faria Lima, colocando em risco as conquistas sociais.

Conforme define Juliane Furno, "se por um lado, ele não é um governo neoliberal, por outro lado, ele também não é um governo anti-neoliberal". Mesmo com resultados positivos no ano anterior, como a aprovação da proposta de reforma tributária, muitas das propostas apresentadas pelo presidente não foram aprovadas neste ano. Isso ocorre principalmente devido às cadeiras ainda ocupadas por parlamentares bolsonaristas, que dificultam a aprovação de pautas tipicamente progressistas, especialmente no setor econômico, mas mostram simpatia por aquelas de cunho liberal.

Negreiros vê o manifesto como uma tentativa de alertar o governo sobre o impacto social dessa agenda e aponta: “se o governo continuar seguindo essa linha, pode enfrentar um desgaste severo na sua base popular”.

Ainda que divergente em alguns pontos, Furno também levanta preocupações com a imagem do governo e as implicações políticas dessa decisão. “Nos últimos anos, vimos a ascensão da extrema-direita e uma crescente insatisfação popular. Nesse cenário, qualquer movimento que reduza o papel do Estado na garantia de direitos básicos pode ser arriscado”, argumenta.

Para ela, o governo deveria focar em uma agenda que ampliasse os serviços públicos e fortalecesse a presença do Estado na economia, em vez de adotar medidas que podem aprofundar desigualdades. “A experiência mostra que, quando o governo falha em entregar melhorias materiais, a população tende a buscar alternativas em figuras populistas”.

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.

 

Edição: Nathallia Fonseca