violência de Estado

Militar que deu oito tiros em sobrinho de rapper na Oxxo já foi reprovado em exame psicológico da PM

Vinícius de Lima Britto chegou a mover ação na Justiça, conseguiu prestar novamente o concurso e ingressar na corporação

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Imagem mostra Britto atirando pelas costas em Soares
Imagem mostra Britto atirando pelas costas em Soares - Reprodução das Câmeras de Segurança

Cai uma chuva fina quando a Glock .40 dispara ao menos oito vezes quebrando a monotonia da noite do último domingo (3) no Jardim Prudência, na zona sul de São Paulo. O corpo de um homem negro tomba e se estende na calçada molhada na frente da loja de conveniência Oxxo. Um ano antes, uma rajada produzida por um revólver do mesmo tipo e do mesmo calibre assusta os vizinhos de um bairro residencial de São Vicente, no litoral paulista. Mas agora são dois corpos derrubados no asfalto.

O jovem assassinado ao sair da Oxxo se chamava Gabriel Renan da Silva Soares e era sobrinho do rapper Eduardo Taddeo, fundador do grupo Facção Central, um dos mais populares do gênero. Os dois homens que foram mortos em São Vicente eram Matheus Quintino dos Santos e Davi Emanoel Braz Ferreira. Eles não tinham parentes famosos.

À primeira vista o assassinato desses três jovens são peças desconexas do complexo quebra-cabeças da violência urbana no Brasil. Mas, se você prestar atenção aos detalhes, verá que as três mortes são cenas da mesma história. Detalhes como a mão que aciona o gatilho nas duas noites. Mão que no caso é a do soldado Vinícius de Lima Britto.

Nas duas ocasiões, o soldado De Lima estava de folga quando descarregou sua Glock em várias partes do corpo das vítimas, no peito, na cabeça, na barriga, nas pernas e nos braços. E as vítimas morreram na hora. Nos dois casos, o PM alegou ter agido em legítima defesa ao se sentir ameaçado por criminosos. Mas nenhuma arma foi encontrada em posse dos jovens que morreram.

O soldado De Lima tem 24 anos e está na PM desde janeiro de 2023. Quando prestou concurso, em 2021, ele não conseguiu a vaga ao ser reprovado no exame psicológico. Segundo um laudo assinado pelos psicólogos Daniela Cecília Mancini e Bráulio Roberto da Silva, documento ao qual o Joio teve acesso, durante o teste, De Lima apresentou “descontrole emocional, […] caracterizado pelos traços de emotividade, com presença de aspectos de impulsividade, evidenciando poucos recursos de controle emocional, tendendo a agir fortemente por meio de condutas instáveis e imprevisíveis, com propensão ao desequilíbrio fisiológico e psicológico, podendo agir sem tanta reflexão […]”

Laudo psicológico realizado pela Polícia Militar de São Paulo. Imagem: Reprodução

Ainda segundo os psicólogos da PM, o candidato não conseguiu demonstrar estar apto a “direcionar a sua energia agressiva adequadamente” e nem provou ter “autocontrole necessário frente às situações inesperadas, que são inerentes ao dia a dia da atividade policial-militar […] já que irá deparar-se com momentos de tensão em que raiva e brigas poderão estar presentes”. Os especialistas também reprovaram o candidato nos quesitos “capacidade de liderança” e “relacionamento interpessoal adequado”, previstos no edital do concurso.

Vinícius de Lima não aceitou  a reprovação e acionou a Justiça contra a PM, argumentando que a avaliação dos psicólogos foi puramente subjetiva. Mas perdeu em duas instâncias e o processo acabou extinto. Naquele mesmo ano, ele prestou o concurso novamente e enfim conseguiu ser aprovado.

Um ano de farda: duas mortes em São Vicente

Menos de um ano depois de tomar posse como soldado de 2ª classe, De Lima estava de folga com um grupo de amigos quando se viu em uma daquelas “situações inesperadas, inerentes ao dia a dia policial” descritas em seu laudo psicológico. De acordo com o depoimento que o PM prestou depois, dois homens em uma moto abordaram o grupo em que ele estava e anunciaram um assalto. De Lima e um dos amigos, o também policial Davi dos Santos de Souza, reagiram e mataram Matheus Quintino e Davi Ferreira. O soldado disparou 16 vezes. A perícia verificou nove tiros em um dos corpos. 

No inquérito que investiga o caso, a polícia afirmou que Matheus e Davi já respondiam a acusações de roubo e de tentativa de homicídio contra policiais. A investigação sobre aquela noite em São Vicente ainda está em curso.

Dois anos de farda: uma morte em São Paulo

O soldado De Lima trabalha no 22º Batalhão da Polícia Militar, que fica a menos de 1,5 km da loja Oxxo onde ele estava na noite do último domingo. Por volta das 10h45 da noite, o jovem Gabriel Soares entrou vestindo um moletom vermelho e furtou alguns pacotes do setor de materiais de limpeza. 

O sobrinho do rapper Eduardo Taddeo tinha 26 anos e usava K2, uma droga sintética que tem se espalhado pelas grandes cidades do país. Segundo a família, por esse motivo ele já havia sido internado, mas ficou apenas um dia na clínica. Embora já tivesse se envolvido em um roubo anos atrás, agora estava buscando emprego.

A família não sabe o motivo que levou Gabriel a furtar os pacotes de produtos de limpeza naquele domingo. Ao sair da loja com eles, Gabriel escorregou na calçada molhada. O soldado De Lima notou a queda, se aproximou, percebeu o furto e atirou ao menos oito vezes. O que aconteceu nesses segundos entre o furto e os tiros é alvo de controvérsia.

Um vídeo feito a partir da câmera de segurança de um imóvel vizinho mostra Gabriel chegando ao mercado e, trinta segundos depois, caindo ao ser atingido. Reproduções estáticas dos vídeos das câmeras da Oxxo mostram o soldado empunhando a arma em direção a Gabriel, que parece estar de costas no momento do primeiro tiro. Em nota, a Oxxo afirmou ter entregue o vídeo completo à Polícia Civil, que investiga o caso.

Estabelecer o que de fato aconteceu nesses trinta segundos é fundamental para a Justiça definir se o que houve naquela noite foi um homicídio ou um ato de legítima defesa.

Ao prestar depoimento, no mesmo dia, o soldado De Lima disse que, quando abordou Gabriel, o rapaz afirmou estar armado e levou a mão ao bolso. Por causa disso, para evitar uma iminente “injusta agressão”, o soldado teria disparado. Mas uma testemunha relatou à polícia uma sequência diferente. O atendente da Oxxo disse ter visto Gabriel furtando, tropeçando ao sair da loja e sendo abordado pelo PM. Na versão do atendente, o soldado disparou logo após Gabriel colocar a mão no bolso, gesto que teria indicado que ele estava armado. Ainda de acordo com o atendente, Gabriel então teria caminhado em direção à calçada, retornou à loja e, aí sim, avisou que carregava uma arma. O PM disparou outras vezes.

Nenhuma arma foi encontrada com Gabriel, mas o policial argumenta que atirou porque ouviu o jovem dizer que tinha uma. Já a família de Gabriel defende que ele foi executado.

“Nos vídeos a gente vê que o policial atira pelas costas”, disse a mãe dele, Silvia Aparecida da Silva. “O meu filho estava indefeso, desarmado, não justifica esse monte de tiro. Foi uma execução misturada com maldade. Esse policial é uma pessoa muito má. Você vê pela forma que ele matou meu filho, com tiro no rosto. Se você é um policial preparado você dá voz de prisão ou você chama de canto. Mas não faz essa crueldade. O que eu espero pra esse policial é justiça, que ele fique preso.”

A loja Oxxo não fechou depois da morte de Gabriel e não foi isolada de maneira a preservar a cena do crime. A reportagem teve acesso a um vídeo gravado da sacada de um prédio na região, no qual é possível ver policiais ao lado do corpo caído no estacionamento do local, sem proteção e à vista dos clientes, que passam por perto com suas sacolas de compras.

A Glock .40 usada naquela noite foi apreendida pela polícia, que analisa as imagens e os depoimentos para esclarecer a sequência dos fatos.

Procurada, a Polícia Militar de São Paulo não deu retorno até a publicação da reportagem.

O soldado De Lima não foi o único candidato reprovado no exame psicológico naquele concurso de 2021. Nesses casos, muitos tentam conseguir a vaga através da Justiça. Foi o que aconteceu com 32 policiais que conseguiram judicialmente entrar na PM em 2020, mesmo reprovados no exame psicológico, segundo um levantamento do site Intercept

Nas redes sociais e no YouTube, influenciadores, advogados e psicólogos se dedicam a vender dicas e mentorias para treinar os candidatos a passarem nos testes de personalidade.

Procurada, a rede Oxxo informou que lamenta a morte de Gabriel e que está colaborando com as investigações. Episódios de violência são comuns nas lojas da rede, que tem se espalhado pela capital e pelo interior de São Paulo. O Joio publicou reportagens mostrando como clientes e funcionários convivem com roubos e furtos nesses estabelecimentos, que costumam funcionar em horário estendido e sem segurança privada.

A empresa ressaltou que o PM De Lima não trabalha para ela. Leia a nota na íntegra:

“O Oxxo pauta suas ações no respeito às pessoas e lamenta profundamente o ocorrido na noite de 03 de novembro, na unidade da Avenida Cupecê, entre dois clientes. A rede informa que seus colaboradores acionaram imediatamente as autoridades e que as imagens do sistema de segurança estão à disposição dos órgãos competentes a fim de contribuir com a investigação.”