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Congresso sobre psicodélicos tem primeira mesa com indígenas com apelo para pautas além da ayahuasca

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Palestrantes defenderam a importância da defesa das pautas indígenas para além do consumo das plantas tradicionais, como a luta contra o marco temporal - Carolina Apple
Presença dos povos originários era uma cobrança latente do público desde a primeira edição do evento

Para celebrar e discutir o renascimento do que nunca morreu – os psicodélicos –, a Associação Psicodélica do Brasil promoveu no último fim de semana na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o 2º Congresso Brasileiro sobre Psicodélicos, que contou nesta edição com a primeira mesa composta por indígenas e representantes dos conhecimentos nativos do Brasil e do Peru para falar sobre as plantas maestras e também sobre pautas que vão além do uso das medicinas da floresta, como a ayahuasca. A articulação da mesa foi feita pelo meu colega de profissão, também especializado na cobertura dos psicodélicos, o jornalista Carlos Minuano, que é o fundador do site Psicodelicamente e colunista da Carta Capital.

Uma das participantes da mesa foi Kellen Natalice Vilharva Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Kellen é mestra em Biologia Geral/Bioprospecção e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Clínica Médica, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pesquisa na área de Conhecimento Tradicional Indígena, atuando principalmente em temas como etnofarmacologia de plantas e animais utilizados na medicina tradicional indígena.

A doutoranda fez um apelo à plateia quando falou da importância de ser confluente da causa indígena para além das pautas relacionadas às medicinas tradicionais, como é o caso da luta contra o marco temporal e o genocídio dos povos originários.

"Temos lutado e sobrevivido desde 1500 a todos os tipos de violência e temos lutado pelos nossos direitos em todos os âmbitos. E quando retiram os nossos saberes, nossas plantas, nossos conhecimentos do contexto, é mais um tipo de violência, porque como que eu vou falar de uma planta, de um saber, registrar os conhecimentos de um pajé, de um xamã, sem falar sobre o território? Considerar que aquele território está sendo rodeado por garimpo, que a terra está contaminada ou que aquela área não foi demarcada ainda, que tem um perigo iminente do marco temporal e assolando? Então, é muito importante as pesquisas, os pesquisadores e os professores sempre trazerem todo o contexto do povo indígena. Enquanto estudante, doutoranda, vejo nossos conhecimentos, nossa cultura e toda a nossa ancestralidade muitas vezes sendo desrespeitados nas salas de aula por pesquisadores", diz a pesquisadora.

Kellen ressalta que existe uma popularização dos conhecimentos das medicinas indígenas e que esses saberes existem para beneficiar a sociedade, melhorar a qualidade de vida das pessoas. Ela alerta, no entanto, para o risco de retirada dessas plantas de contexto e de cerimônias ou uso das plantas serem feitas por pessoas não preparadas. "Dentro de cada povo indígena tem um estudo, uma pesquisa que as pessoas fazem. Várias das nossas plantas, dos nossos conhecimentos, originaram medicamentos, cosméticos, alimentos que estão hoje no dia a dia do brasileiro."

As preocupações em relação ao descaso social se estendem ao afastamento da academia do reconhecimento das experiências espirituais, uma vez que a espiritualidade não é uma tema recorrente de estudo, mesmo os pesquisadores se propondo a estudar substâncias de uso essencialmente espiritual de acordo com a prática nativa, que busca conexão com ancestrais, acesso ao mundo dos espíritos, etc. Não é à toa que a ayahuasca significa "cipó dos mortos" e outras traduções covalentes. 

Randy Gonzalez, curandeiro mestre vegetalista da região de San Martín, na Amazônia peruana, e membro da equipe do Lis, um centro vegetalista recém-inaugurado na região serrana do Rio de Janeiro, demonstrou na sua fala a importância de estreitar a relação com as plantas maestras a partir do seu uso, trazendo uma narrativa que demonstra o grande apelo dessas substâncias para viver experiências para além dos laboratórios, livros e artigos. 

"Eu recomendo primeiro conhecer o mundo dessas plantas, vivenciar o processo de uma dieta e, depois, falar sobre o que é a planta. Hoje, a ayahuasca é uma planta que está muito na moda, mas que anda sendo muito mal administrada, o que acarreta em muitas irresponsabilidades. É uma questão de respeito. Você não pode entrar em uma casa sem pedir permissão, é o mesmo com as plantas, você tem que pedir permissão para poder conhecer o espírito delas, para que elas possam passar seus conhecimentos para curar a alma. Não se deve brincar, manipular ou profanar esse conhecimento, porque poderá enfrentar muitos perigos e consequências", explica o curandeiro.

E, para além do caráter utilitarista da ayahuasca em meio a questões de adoecimento mental promovidas pelo modo insustentável de vida da sociedade ocidental moderna, Randy recorda que não se trata de tomar o chá só para tratar alguma doença ou transtorno. "A experiência com as plantas é, por essência, espiritual. Você não precisa necessariamente estar doente para tomar essas plantas. É possível tomar também para desenvolver  e conhecer a espiritualidade. Não estou falando de uma espiritualidade católica, evangélica… é uma espiritualidade mais profunda, uma espiritualidade do nosso interior, do nosso eu, uma espiritualidade sem filtro, digamos, pura, cristalina", afirma.

E para as próximas edições…

A mesa composta por representantes dos povos originários era uma cobrança latente do público desde a primeira edição – inclusive minha. Como todo movimento de vanguarda, a organização do congresso convive com diversas críticas (muitas feitas de forma pública pela plateia) que, se ouvidas e direcionadas, só tendem a colaborar com a construção de um evento cada vez mais plural, equilibrado e justo. 

Tenho me mantido por perto da organização para criar pontes de diálogo cada vez mais efetivas nessa edificação do movimento psicodélico no Brasil, principalmente quando se trata do campo da pesquisa acadêmica, onde, infelizmente, é comum encontrar cenários de apagamentos, epistemicídios e descuido com informações importantes que ajudam a perpetuar narrativas reducionistas e equivocadas sobre, principalmente, as questões sociais e raciais que tangem o uso dessas substâncias. 

* Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Thalita Pires