O atentado provocado por um homem-bomba em Brasília (DF) na quarta-feira (14) deve enterrar a proposta de anistia para os golpistas dos ataques aos prédios dos três Poderes na capital, em 8 de janeiro do ano passado. A avaliação é de um conjunto de parlamentares e outras autoridades da República que, nesta quinta (14), comentaram o assunto e defenderam um reforço na responsabilização de vândalos envolvidos nesse tipo de ação. Objeto do projeto de lei (PL) 2858/22, a ideia de anistiar os manifestantes do 8 de janeiro vinha sendo utilizada por bolsonaristas e aliados como moeda de troca política em negociações no Congresso Nacional.
Para a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), a tentativa de fazer o PL 2858 avançar "perdeu muita força" agora. "É evidente que o que aconteceu é fruto de uma escalada de banalização e normalização de golpistas, sejam eles organizados em grupos empresariais, entre parlamentares, em instituições onde infelizmente ainda atuam ou entre pessoas ligadas ao [partido] PL, do Bolsonaro, seus seguidores e apoiadores. O recado da sociedade brasileira desde ontem é o de que a gente não pode mais tolerar conviver com esse tipo de tentativa porque isso representa risco à segurança, à vida, ao funcionamento da democracia no país. Anistiar pessoas que tenham envolvimento com o golpismo significa achar natural que ações como essa de ontem sigam adiante."
Nos últimos meses, o principal palco das disputas em torno da anistia no Congresso foi a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, hoje presidida pela bolsonarista Caroline de Toni (PL-SC). O colegiado tentou votar o PL 2858, que acabou sendo enviado pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), para análise em uma comissão especial criada no final de outubro. O colegiado ainda não começou a operar e não teve os membros indicados pelos partidos.
"É mais difícil que lideranças do partido da direita liberal, o chamado 'centrão', tenham agora condições de sustentar esse PL 2858, de votar a favor, e mesmo o próximo presidente da Câmara. Ele terá muito mais dificuldade pra pautar esse projeto ou a comissão especial, como o Lira sinalizou nas negociações em torno da eleição da mesa diretora, porque vai ter muita pressão institucional e da sociedade brasileira pra que isso não aconteça", projeta Sâmia, que é uma das integrantes da CCJ.
A proposta de anistia é de autoria do ex-deputado Major Victor Hugo (PL-GO), que atuou como líder do governo Bolsonaro na Câmara durante a gestão do ex-capitão. O texto do PL propõe que sejam liberadas de responsabilização as pessoas que participaram de manifestações “em qualquer lugar do território nacional” entre os dias 30 de outubro de 2022 – data do segundo turno do pleito daquele ano, quando Bolsonaro foi derrotado pelo atual presidente Lula (PT) nas urnas – e a data em que a eventual legislação entrar em vigor. O projeto aponta que "ficam anistiados manifestantes, caminhoneiros, empresários e todos os que tenham participado de manifestações nas rodovias nacionais, em frente a unidades militares ou em qualquer lugar do território nacional".
O texto do PL abrange "crimes políticos ou com estes conexos e eleitorais", destacando ainda participações em termos de "financiamento, organização e apoio de qualquer natureza, além de falas, comentários ou publicações em redes sociais ou em qualquer plataforma na rede mundial de computadores" que possam estar relacionadas com as manifestações de que trata o PL 2858.
"O que aconteceu ontem certamente vai colocar uma pá de cal em cima dessa proposta de anistiar os que participaram do 8 de janeiro e de atos semelhantes no Brasil. A gente não pode ver o que aconteceu ontem como um fato isolado. Não é um caso isolado, assim como não é um ponto fora da curva. É só a gente lembrar alguns fatos", disse ao Brasil de Fato o deputado Hélder Salomão (PT-ES), integrante da CCJ e um dos vice-líderes da Federação PT-PCdoB-PV. Ele cita os desdobramentos oriundos da insatisfação de apoiadores de Bolsonaro com o resultado das eleições de 2022.
"[Tivemos] a tentativa de explodir uma bomba perto do aeroporto de Brasília após as eleições de 2022; o quebra-quebra e a tentativa de invadir a sede da Polícia Federal (PF), também em 2022; os atos de 8 de janeiro, que foram atos terroristas e que promoveram quebradeira no Congresso, no Planalto e no STF, além de outros atos que ocorreram, como os acampamentos antidemocráticos e, frente aos quartéis. Todos esses atos têm conexão com movimentos da extrema direita no mundo e no Brasil. Então, é anistia zero pra esse gente porque eles estão atentando contra aquilo que é mais sagrado no Brasil e no mundo, que é a democracia."
Para o parlamentar, a iniciativa do homem-bomba na quarta-feira (13) em Brasília pode ser diretamente associada aos discursos político-ideológicos que Bolsonaro incentivou nos últimos anos. "São discursos que inflamam um fanatismo político-religioso muito perigoso, porque são discursos de ódio, de intolerância, autoritários e, portanto, esses atos estão nessa linha de atuação da extrema direita. É só a gente recordar alguns vídeos que circulam ainda na internet com o ex-presidente fazendo uma multidão repetir 'eu juro entregar a minha vida pela minha liberdade', por exemplo. Isso incita o ódio, o ato terrorista, o fanatismo político-religioso, e isso vem sendo colocado na cabeça das pessoas", associa Salomão.
Para o petista, a ideia de anistiar os golpistas contrasta com a busca por uma cultura de paz no ambiente político nacional. "Quem propõe anistia não quer pacificar o país. Anistia é algo que já foi possível no Brasil e em muitas partes do mundo em um contexto de pacificação do país. A prova de que eles não querem pacificar o país e a maior justificativa pra que a gente não tenha anistia aqui são os atos de ontem, que mostram a intolerância, o ódio e a tentativa de afrontar os poderes constituídos."
Cobranças
Para Sâmia Bomfim, os últimos episódios tendem a ampliar o coro por uma efetiva responsabilização de lideranças e articuladores envolvidos no 8 de janeiro, cujos desdobramentos renderam apenas a prisão de manifestantes da base do movimento. Nenhum mentor chegou a ser preso após o início das investigações, que envolvem PF, Ministério Público Federal (MPF), STF e outras frentes de atuação estatal.
"Ou seja, ao invés de aliviar, termos que cobrar duramente de políticos, empresários, militares, civis que estejam envolvidos com esse tipo de organização no Brasil. É preciso avançar em medidas concretas nesse sentido e, claro, reforçar o inquérito que vem sendo tocado no STF. É preciso ter apoio político e apoio popular porque alguns tentam enfraquecer o inquérito, desgastando inclusive a figura do ministro Alexandre de Moraes, que é quem leva adiante esse tema no Supremo, mas é importante deixar claro que esse tema tem apoio na sociedade brasileira e no parlamento, pelo menos daqueles que prezam pela democracia."
Governo
O tema da anistia repercutiu também entre outros atores políticos em Brasília nesta quinta-feira. O ministro da Secretaria de Relações Institucionais (SRI) da Presidência da República, Alexandre Padilha, disse que as explosões fortalecem a maré contrária à ideia de despenalização dos envolvidos nesse tipo de ação. "É mais um episódio fruto da cultura de ódio, de atacar o STF e nossas instituições democráticas, o que reforça ainda mais um ambiente no Congresso para que não se pense em anistiar quem pratica crimes contra a democracia, em especial todos os atos preparatórios ao 8 de janeiro", disse o petista.
A ideia de perdão aos envolvidos no 8 de janeiro também foi rechaçada por ministros do Supremo. Alexandre de Moraes, por exemplo, afirmou que o episódio de quarta-feira resulta do avanço da cultura do ódio. "Só é possível a necessária pacificação do país com a responsabilização de todos os dos criminosos. Não existe possibilidade de pacificação com anistia a criminosos. O criminoso anistiado é um criminoso impune, e a impunidade vai gerar mais agressividade, como gerou ontem", acrescentou. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, disse que anistiar os envolvidos seria um "equívoco".
"A anistia antes mesmo da condenação parte do pressuposto de que não aconteceu nada grave nem relevante. Acho que é um equívoco. A discussão sobre anistia é uma discussão própria do Congresso, pela Constituição. Agora, geralmente, você não anistia antes sequer de ter julgado. Isso aqui foi tudo destruído, com pessoas que se articularam. O discurso de que algumas pessoas inocentes e ingênuas estiveram aqui não é um discurso verdadeiro", afirmou a jornalistas nesta quinta.
Edição: Thalita Pires