A razão de ser da Educafro é a defesa intransigente do povo negro como condição à verdadeira democratização da sociedade brasileira. Suas iniciativas, em diferentes áreas e níveis governamentais, respondem a esse desafio. Infelizmente, mais uma vez, não estamos vindo a público para celebrar, mas, sim, enfrentar o racismo institucional sistêmico. Os órgãos que tinham o dever de garantir a plena eficácia da Lei 12.990/14 decidiram fraudar a norma e garantir sua plena ineficácia. Perseguiram este objetivo por 10 anos e muitas ainda continuam perseguindo. Uma afronta ao Estado Democrático de Direito.
Assistimos com muita tristeza o lançamento do relatório A implementação da lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes, realizado pelo Observatório Opará, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU). O relatório trouxe à superfície, com evidências muito seguras, apresentadas em quase mil páginas, como as instituições se organizaram para impedir a plena eficácia da Lei de Cotas Raciais no serviço público federal.
Em parceria com o Opará construímos, conjuntamente, o ambiente para o ingresso da ADI 7654 no Supremo Tribunal Federal (STF) que garantiu, mesmo sem aprovação do Congresso Nacional, a continuidade da Lei de Cotas Raciais. Participamos de encontros e lives para divulgar o relatório. Estivemos, inclusive, com o Opará na entrega do relatório ao ministro Luís Roberto Barroso, Presidente do STF.
Lutamos por muitos anos para que as ações afirmativas fossem implementadas no serviço público federal. Fizemos parte das mobilizações e das discussões sobre a sua constitucionalidade (ADC 41). Esperávamos uma mudança importante do perfil dos servidores públicos federais, o que de fato não aconteceu.
O ministro Luís Roberto Barroso, na ocasião da ADC 41, alertou que a própria administração pública tentaria fraudar a Lei nº 12.990/2014. Naquele momento, não sabíamos do real significado deste alerta. Uma sociedade racista tende a manter seu status quo. Precisaria de muita vigilância dos órgãos para que isto não acontecesse.
O relatório do Observatório Opará mostrou a extensão e profundidade do racismo nas instituições. Em vez das instituições se mobilizarem para garantir a máxima eficácia da lei, resistiram um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez anos. Algumas, a maioria, até hoje insistem em interpor mecanismos de fraudes entre o direito da população negra e os destinatários da norma.
Nos espanta também a condescendência dos órgãos que têm o dever de garantir o direito fingindo que nada está acontecendo. Oportunidades foram tiradas do nosso povo negro. Recursos financeiros e sociais deixaram de chegar ao povo negro por conta do racismo institucional. O relatório do Opará identificou, para 61 instituições periciadas, um impacto de R$ 3,4 bilhões que deixaram de transformar vidas negras. Vidas negras importam mesmo?
O Governo Federal tinha o dever de monitorar suas instituições para evitar as fraudes. O Governo Federal tinha o dever de avaliar a implementação da lei. Falhou o órgão indicado no Estatuto da Igualdade Racial (art. 56) para garantir a plena eficácia da norma. Hoje, o Estado brasileiro tem um instrumento de repercussão constitucional, que é o Decreto nº 10.932/2022 (Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância). Não podemos dispensar a força da constitucionalização das ações afirmativas, por meio do decreto, como instrumento para se fazer justiça.
Já não bastasse as fraudes, assistimos atônitos que nenhuma discussão no âmbito do Governo Federal está sendo realizada para reparar os prejuízos causados ao povo negro. A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) são exemplos isolados. Voluntariamente, decidiram reparar as vagas por má aplicação da lei. A Universidade Federal de Sergipe (UFS) se comprometeu, via acordo judicial, a reparar as vagas. A Universidade Federal de Uberlândia (UFU), via Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), junto ao Ministério Público Federal (MPF), irá reparar parcialmente as vagas. No entanto, não assistimos até agora nenhuma iniciativa do Ministério da Igualdade Racial (MIR) em se colocar ao lado do povo negro prejudicado.
Ciente do seu compromisso com esta agenda, a Educafro, assim como o Movimento Negro Unificado (MNU), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e União Geral dos Trabalhadores (UGT), aceitou a mais este chamado do Observatório Opará para propor uma mesa de diálogo, junto à Presidência da República, para fazer justiça social. Os órgãos federais não podem enfrentar o Estado Democrático de Direito desta forma. Disseram não à lei aprovada pelo Congresso Nacional. Disseram não à promulgação da lei pela presidenta Dilma Rousseff. Disseram não ao STF ao não observarem o que diz a ADC 41. Ou seja, os órgãos enfrentaram todo o Estado brasileiro sem serem incomodados. Aquele que causou dano tem o dever de reparar!
A reparação da escravidão, distante deste marco temporal, apesar de necessária, é implicada por fatores complexos. No entanto, reparar as fraudes na implementação da Lei nº 12.990/2014 apresenta um único desafio: o desejo de realmente fazer justiça ao povo negro.
A Educafro assinou o pedido de criação da mesa de diálogo porque acredita no governo Lula. A Educafro assinou o pedido de criação da mesa de diálogo porque acredita no Estado Democrático de Direito. A Educafro assinou o pedido de criação da mesa de diálogo porque nunca abandonou o povo negro a sua própria sorte.
Esperamos que este Novembro Negro alimente a nossa esperança de que é possível construir um Brasil justo racialmente. Haverá muita comemoração. Mas, queremos mais do que isto, queremos ver o direito subtraído reparado.
Hoje, o grupo com maior expertise na Lei nº 12.990/2014, o Observatório Opará, nos convocou na certeza de que poderemos mudar essa realidade. Ao servir como documento para orientar a autorização da reparação feita pela Advocacia Geral da União (AGU) e ao servir como evidência para a manutenção da Lei de Cotas Raciais pelo STF, demonstrou que não falta ao movimento negro capacidade técnica para superar este desafio.
Acreditamos na sensibilidade de todas as pessoas que têm poder de decisão à criação da Mesa de Diálogo. Toda a reparação que tarda, falha!
A Educafro quer justiça. Reparação Já!
*Frei David é diretor-executivo da Educafro.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires