E com Trump?

Relação entre EUA e Haiti foi marcada por ocupações e missões da ONU

Donald Trump usou o Haiti durante a campanha eleitoral para impulsionar bandeira contra imigração

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Episódios de violência levaram à renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry, e a população haitiana aguarda a nomeação de um governo de transição - Clarens SIFFROY / AFP

O impacto da eleição de Donald Trump já está sendo calculado por diferentes países ao redor do mundo. Se para as grandes potências as mudanças nas relações são quase imediatas, para os países com economias periféricas essa diferença será sentida a médio prazo. O Haiti é um dos principais exemplos. 

O país caribenho sempre teve uma relação muito próxima com os Estados Unidos, mas foi alvo de Trump durante a campanha eleitoral. O republicano chegou a dizer que imigrantes haitianos que viviam em Springfield, no estado de Ohio, estavam comendo cachorros e gatos. A fala foi usada como parte de uma das principais bandeiras levantadas por Trump antes do pleito: a expulsão de imigrantes. 

Os ataques e a interferência dos Estados Unidos nas questões internas do Haiti remontam a Revolução Haitiana, o primeiro processo de independência que colocou no centro da transformação o negro.

O Haiti foi a primeira colônia das Américas a conquistar a independência e a única revolução independentista realizada por negros e escravizados. A revolução haitiana teve início em 1791, quando a então colônia francesa era chamada de Santo Domingo. Após uma luta de 12 anos, em 1804, foi proclamada a independência e o país passou a chamar-se Haiti, nome de origem indígena. A revolução haitiana combinou a luta pela independência da metrópole com a luta pela libertação dos escravizados. 

Segundo Saint Loius, advogado haitiano especialista em Política Internacional, esse processo fez com que o Haiti passasse a representar uma ameaça aos Estados Unidos e às grandes potências. 

“O Haiti começa a ser uma ameaça para os EUA e para o sistema da escravidão. Apesar de os EUA já terem conquistado a independência da metrópole, as leis seguiam iguais e o país mantinha a escravidão, principalmente nos estados do Sul. O Haiti foi o primeiro país do mundo a eliminar o sistema escravista em 1801”, disse ao Brasil de Fato.

Após a luta de independência haitiana, concretizada em 1801, o líder do processo revolucionário Jean Jacques Dessalines ajuda a redigir a nova Constituição em 1805 que já proibia a escravidão e definia políticas públicas para a redistribuição de terras e a proteção aos ex-escravos. 

Ainda como colônia francesa, o Haiti tinha uma relação próxima com os Estados Unidos e chegou a colaborar com as lutas independentistas estadunidenses. Até hoje há um monumento no estado da Georgia em homenagem a essa participação, especialmente da tropa de colonos Chasseurs-Volontaires de St Domingue. Logo depois da revolução haitiana, a relação entre os dois passa a tensionar, com uma grande pressão externa contra os haitianos. 

De acordo com o professor de Relações Internacionais João Fernando Finazzi, o Haiti passa por um processo de isolamento generalizado em um movimento que partiu das grandes potências.  

“Os EUA não reconhecem o Estado haitiano pós-revolução. Os EUA ainda eram um país com escavidão principalmente nos estados do sul e o Haiti pós-revolução em 1804 é condenado ao ostracismo internacional. Há um isolamento e um não reconhecimento generalizado do Estado haitiano, principalmente pelas potências europeias. Os EUA se recusam a reconhecer o Haiti até 1862, primeiro ano da Guerra Civil Americana”, disse o Brasil de Fato.

A antiga metrópole, França, afirma que só reconheceria a independência do Haiti se o país reduzisse em 50% os impostos para produtos franceses e pagasse uma indenização de 150 milhões de francos. A justificativa era que a guerra de independência tinha deixado milhares de plantações destruídas e os fazendeiros franceses precisam ser ressarcidos. Mas a ameaça não se limitava ao não reconhecimento do Haiti como Estado soberano. Os franceses também afirmavam que, caso o valor não fosse pago, haveria um bloqueio naval militar contra o país.

Ainda que os Estados Unidos não reconhecessem o governo haitiano, o comércio entre os países segue de maneira informal. De acordo com Finazi, é a partir da Guerra Hispano-Americana, em 1898, que os EUA fortalecem o processo de intervenção e imperialismo contra os países caribenhos e da América Latina. 

“Depois que os EUA ganham a guerra contra a Espanha, eles iniciam o processo de expansão imperial no Caribe, América Central e partes do Pacifico. Esse é um momento em que os EUA mudam a relação com todo o mundo. É um momento em que o capital do país se expande internacionalmente e fundamenta a intervenção de 1915”, afirma. 

A intervenção a que ele se refere foi realizada na esteira da política do Big Stick, orientação da política externa estadunidense de promover os interesses do país com uso da força. Naquele momento, o Haiti vivia uma instabilidade política que levou a morte do presidente recém-eleito, Vilbrun Guillaume Sam. Os EUA assim um tratado com o Congresso haitiano que permitia o controle da economia local e autorizava eventuais incursões militares para “colocar ordem”.

Um documento do setor de história do Departamento de Estado dos EUA revela que o pano de fundo para a atuação naquele período foi “proteger os ativos” estadunidenses que estavam em solo haitiano.  “O presidente [Woodrow] Wilson enviou os fuzileiros navais ao Haiti para evitar a anarquia. Na realidade, esse ato protegeu os ativos dos Estados Unidos na área e evitou uma possível invasão alemã”, diz o texto. 

Segundo Finazzi, a relação entre Estados Unidos e Haiti muda novamente com essa ocupação, mas dessa vez de uma aproximação ainda maior entre setores militares e a oligarquia haitiana com o Departamento de Estado.

“A ocupação de 1915 altera de novo a relação com os EUA no sentido de aproximar muito mais esses países. Durante essa ocupação de 19 anos há uma forte aproximação e de consolidação das relações do governo haitiano com as elites haitianas, principalmente os militares. Os EUA fazem uma ampla reforma no Exército haitiano e, com isso, estabelecem uma tônica de aproximação dos militares haitianos com os EUA. Houveram tensionamentos e distencionamentos que duraram quase todo o século 20”, afirmou.

Operações recentes

Nas últimas décadas, a participação dos Estados Unidos no Haiti foi marcada pelas operações das Nações Unidas, especialmente a Missão para a Estabilização no Haiti (Minustah), que durou de 2004 a 2017. Liderada pelo governo brasileiro, a iniciativa foi responsável pela morte de milhares de haitianos e por violações sistemáticas dos direitos humanos.

A Minustah foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU em um contexto de crise política que levou ao golpe de Estado contra o então presidente Bertrand Aristide, um líder popular que tinha sido um padre salesiano ligado à teologia da libertação. Ao todo, 16 países fizeram parte das tropas da ONU que tinham como objetivo "estabilizar o país" e "promover eleições livres". 

Cerca de 37,5 mil soldados brasileiros fizeram parte da missão, organizados em contingentes em permanente rotatividade a cada seis meses. Ao todo, a Minustah deixou mais de 30 mil mortos e 2 mil vítimas de abusos sexuais, em sua maioria mulheres e crianças. 

Segundo Finazi, a Minustah foi o simbolo de uma participação dos Estados Unidos no Haiti mais focada nos bastidores do que na linha de frente das ações.

“Em 2004 a intervenção da Minustah é o governo de Bush com uma intervenção menos expressiva dos EUA e atuando mais em bastidores do lado político que propriamente o engajamento de tropas. A partir do fiasco de 1994, os EUA incentivam a participação de outros países ao invés do seu envolvimento direto”, disse.

A atuação da Minustah atravessou governos republicanos (com George W. Bush) e democratas (com Barack Obama). Nesse período, a política foi a mesma em relação ao Haiti. 

Para Finazzi, no entanto, há uma diferença clara nas gestões republicanas e democratas no que diz respeito ao país caribenho, que é a importância dada ao país na política externa estadunidense. De acordo com ele, a gestão de Trump marcará mais uma vez a redução de importância que os EUA dão ao Haiti na política externa.

“A expectativa é de que você tenha uma diminuição da pauta, que cresceu ao longo do ano por causa da posição democrata, eles costumam dar mais atenção a isso e mesmo assim essa operação com problemas. Então agora com Trump é um tema que terá dificuldade de se estabelecer como um tema de atuação das relações internacionais dos EUA”, disse.

Trump e Haiti

Durante a campanha eleitoral dos Estados Unidos, nenhum dos dois candidatos mencionou como seria a política externa voltada para os países da América Central e Caribe. O foco foi o combate a imigração e os ataques contra essas populações que vivem em território estadunidense.

Trump, no entanto, já tem um histórico de ter prejudicado missões internacionais mesmo que de maneira indireta. Em seu primeiro ano de governo, ele cortou uma série de financiamentos para ajuda humanitária da ONU. Isso fez com que diversas agências da organização não tivessem dinheiro para seguir projetos. Um deles foi a própria Minustah, que foi encerrada naquele ano.

Em setembro, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a ampliação da atual Missão Multinacional de Apoio à Segurança (MSS) no Haiti, por mais um ano. Dessa forma, a força liderada pelo Quênia poderá operar no país até 2 de outubro de 2025. O projeto de resolução foi apresentado pelos Estados Unidos e pelo Equador. O objetivo inicial era transformar a operação em uma missão formal de manutenção da paz da ONU, de modo que não dependesse mais de contribuições voluntárias, como acontece atualmente, e tivesse financiamento estável da ONU. 

A China e a Rússia se posicionaram contra e vetaram a mudança no caráter da missão. Para os analistas ouvidos pelo Brasil de Fato, os Estados Unidos enfrentam uma postura diferente de russos e chineses em relação a missões de paz no Haiti e devem manter a política de não interferir no país caribenho, reduzindo ainda mais a importância haitiana para a gestão republicana.

“Com Trump não dá pra esperar que vai melhorar ou piorar. Vai ser a mesma política contra o Haiti. Para os Estados Unidos, França, Canadá e Reino Unido, o Haiti representa a resistência negra. O Haiti é a causa da humanidade. Então se o Haiti está nessa situação, eles controlam todo o caribe. Cada vez que Martinica e Guadalupe tentam ser livres da França, os franceses mostram a foto do Haiti, da parte mais pobre. ‘Olha, é o primeiro país negro livre e olha como estão’. O que eles não explicam é o processo para o Haiti ter chegado nessa crise social e política”, afirma Saint Louis.

Edição: Rodrigo Durão Coelho